domingo, 26 de fevereiro de 2012

Minas além do som, Minas Gerais

A Carlos Drummond de Andrade

Todos os caminhos do mundo se abriram em veredas,
veredas de sertão mineiro, severo, agreste.
Todos os muros se fizeram montanhas,
montanhas de Minas, graves, austeras.
Corri países, mudei constelações
de vário brilho e diferente estrela.
Descobri parentes vascos e belgas,
duas tias em Lião.
- Outra fala, outra costela,
distinto sangre, nova pele.
Primos de todos os graus,
dos quatro cantos da terra,
completaram a família
em Cocais e Cláudio começada
e hoje, longe, tão  longe dos gerais
ganha continentes, espalha-se sobre o mapa,
em roda larga, completa.
Mas no fim de cada estrada
Minas me espera, de alcatéia.
Na esquina de mim mesma
entre calle street strasse e boulevard,
no agudo da incerteza,
da angústia, do desassossego,
Minas me diz: presente!
Olhos fechados, livre de todo medo,
os músculos me ensinam
montanha, ferro e aço:
regresso às minhas veredas.
No sertão alucinado
a paz se restabelece.
Minas existe.
Vivo de sua herança: ilesa.

Paris, dezembro de 1971.

QUEIROZ, Maria José de. Como me contaram... fábulas historiais. Belo Horizonte: Imprensa/Publicações, 1973. p. 221-224.

Minas Gerais, "estado d'alma"










Para Manuel Bandeira

Minas soluça em todos os nossos remorsos.
Em cada abstinência, sacrifício,
em cada continência, frustração.
Entre os grandes, amordaçar-se,
entre os pequenos, calar-se;
presença quase ausência,
nenhum desejo de ser notado.
Os olhos baixos, o riso raro,
a modéstia escondida
na voz tímida, no gesto tardo.
O mineiro se exime de escândalo
para condenar-se ao hábito.
Na alma, o maior dos pecados:
a vaidade de não ter vaidade.
Sobriedade no vestido,
mesa frugal, alguma carne;
feijão, angu e couve,
pouco açúcar, queijo, café ralo.
Nos pés calçados de ferro,
o peso da gravidade.
Longe de Minas o luxo, o mar, o alarde.
Metade da vida se perde
no silêncio prolongado,
na saudade das grandes águas,
na nostalgia de longos praias.
Na montanha elevada,
a nossa maior audácia:
o olhar arrebatado
inventa façanha e obstáculo.
No sonho de liberdade tardia,
a Utopia malograda;
na cisma do cigarro de palha,
metafísica de fumaça;
no latim e na gramática,
a rêmora do Caraça;
na linguagem monossilábica,
retórica de estilo ático;
no culto da família, tradição e propriedade,
ronha de sacristia,
muita traça.
No sertão bravo e zona da mata,
a filosofia do asfalto:
Arinos e Riobaldo.
a verdade verdadeira é que Minas soluça
em todos os nossos remorsos;
os gerais justificam
a nossa lentidão e cansaço:
Minas Gerais, "estado d'alma".

Belo Horizonte, dezembro de 1971.

QUEIROZ, Maria José de. Como me contaram... fábulas historiais. Belo Horizonte: Imprensa/Publicações, 1973. p. 14-16.

quinta-feira, 5 de janeiro de 2012

Rayuela, de Julio Cortázar

Rayuela (1963), de Julio Cortázar, obra-prima da "nova" literatura hispano-americana (que hoje se deu de chamar "latino-americana"), também foca a vida num manicômio. O interesse da intriga concentra-se em algumas personagens cuja permanência numa clínica para doentes mentais pouco tem a ver com a demência. Horacio Oliveira, um dos protagonistas, pode vislumbrar, da janela do seu quarto, os riscos do jogo da amarelinha no pátio do hospital. Uma noite, assiste dali do seu posto à tentativa malograda de Talita, de fazer passar a pedra do jogo ao número 8. Ela falha, e é nesse instante que ele descobre tê-la confundido com Maga, sua amante. Jogo do amor? Jogo da amarelinha? Iluminação súbita?

QUEIROZ, Maria José de. A literatura alucinada: do êxtase das drogas à vertigem da loucura. Rio de Janeiro: Atheneu Cultura, 1990, 139-140.

terça-feira, 3 de janeiro de 2012

1789-1790

Que sílabas latinas ressoassem em terras incultas e que a aplicação aos estudos significasse apenasmente amor desinteressado à ciência e ao saber parecia coisa absurda aos olhos e ouvidos dos promotores da Devassa da Inconfidência Mineira. Não nos compete, no entanto, desentender-lhes os argumentos. A história já os deu por entendidos. Vamos além.

Das inúmeráveis doutrinas registradas no Século XVIII avulta em importância, e em prestígio, a Ilustração. E Luís Vieira da Silva, como tantos outros inconfientes, não só a conhecia como a professava no silêncio da sua biblioteca frequentada pelo diabo,* inspirador da Enciclopédia e do racionalismo.

Se é verdade que raramente se sabe, ao certo, aquilo em que se crê, a ninguém, mais que ao Cônego suspeito de sublevação, se deveria aplicar  o aforismo. Ilustrado, nutrido de boa ciência, bem informado, muito natural que Voltaire, grande agitador de ideias, e o abade Mably, utopista, lhe ensinassem política e rebeldia. Contudo, a sua memória, espelho de  noites e dias de leitura, pouco o ajudou durante o interrogatório da Ilha das Cobras. Não lhe lembrava se entre as pessoas da sua amizade jamais se tivesse falado sobre a matéria do levante nem que dele lhe tivessem dado qualquer notícia.

Todo o seu passado de dedicação à Igreja, pois era sacerdote exato e de firme crença católica, bem como o prolongado empenho no saber, de nada lhe valeram. O seu primeiro sentimento, os autores o comprovam, foi o de eximir-se de toda culpa, declarando-se alheio à conspirata infame. Depois, instado uma e mais vezes para que confessasse a verdade, à qual tinha faltado, respondeu,"cuidando só dos seus deveres, tratando como mais importante do bem espiritual sem se embaraçar com o corpo, (...) dizer tudo o que sabe, cumprindo com isso as obrigações de fiel vassalo que Sua Majestade tome as providências que for servido."**

Essas coisas aconteceram em 1789 e 1790.

Antes que chegasse ao seu fim, o Cônego Luís Vieira da Silva se viu privado da sua livraria, todos os seus bens confiscados pelo Governo. Só não lhe confiscaram a erudição, penosamente adquirida. Confiscou-a a morte, impiedosa. Não se procedeu, então, a devassa nem se lavrou auto de sequestro.

* Leia-se, de Eduardo Frieiro, O diabo na livraria do Cônego. (Belo Horizonte, Editora Itatiaia Ltda., 1957). O autor avalia, à vista do catálogo dos livros confiscados, o apetite de cultura do inconfidente que o malogro da conspiração frustrou para sempre.
** Cf. Autos de Devassa da Inconfidência Mineira, p. 299.

QUEIROZ, Maria José de. Como me contaram: fábulas historiais. Belo Horizonte: Imprensa/Publicações, 1973. p. 69-73.



quinta-feira, 29 de dezembro de 2011

Ano novo, vida nova

Talvez comece aí a minha novela. Não me tenta, contudo, a ficção oclusa, cerrada em si mesma: o vivido camuflado pelo escrito. Não submeteria a minha personagem, ainda que autobiográfica, à contingência de uma existência puramente fictícia, alheia ao presente e às suas vicissitudes. Gostaria de inserir-lhe a vida numa intriga jamais inaugurada, jamais concluída. Sem princípio nem fim. De modo a fazê-la participar da essência mesma do tempo. Contínua e sempre continuada. Será isso possível? Ficção sem fixação. Para reencontrar, realmente, os sentimentos e as emoções experimentadas.

QUEIROZ, Maria José de. Ano novo, vida nova. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1978, p. 30.

domingo, 6 de novembro de 2011

Todos os males da alma

Não há como negar: os trágicos gregos diagnosticaram todos os males da alma. A Shakespeare, Dostoievski, Flaubert e Zola caberia, andando o tempo, atualizar os sintomas de algumas das suas patologias e vincar o caráter mórbido dos seus desvios. Quando Freud chegou, só teve, mesmo, o embaraço da escolha. A primeira anamnese, a mais extensa, de nossas paixões como de nossos vícios e, também, de nossas virtudes, já estava feita. À ciência competia a comprovação, o estudo de casos, a identificação de édipos e eletras, hamlets, macbeths e karamazovs na conduta psicopatológica dos burgueses do nosso século, assegurada a validade científica da identificação. Tudo se passa como se o psicanalista ouvisse do cliente a mais perfeita auto-análise de um caso clínico. E o que é excepcional, nos termos próprios e sem atentados à língua. A literatura põe à disposição o que poucos pacientes estão habilitados a fazer: o mergulho no inconsciente. Com os olhos abertos, sem traumas, sem megalomanias e sem delírios. Tal requinte descritivo dificilmente ocorreria ao analista, muito mais atento ao "fenômeno", e a tudo que aproxime o sujeito da patologia, do que à sua essencial individualidade (inerente à criação literária). Que resta à ciência? A responsabilidade de uma nomenclatura adequada e o endosso idôneo de um especialista, apto a divulgá-la.

QUEIROZ, Maria José de. Amor cruel, amor vingador. Rio de Janeiro: Record, 1996, p. 11-12.

sábado, 30 de julho de 2011

A pobreza: João Antônio, a fotografia

Salvo melhor juízo, difícil será apontar um autor contemporâneo, de prosa requintada, se bem que popular, que melhor se alinhe neste acervo da pobreza que João Antônio, o autor do clássico Malagueta, perus e bacanaço. Não podemos aproximar-nos do cotidiano de ternura, aspereza e sofrimento das suas personagens sem um descortino da literatura proletária - escrita por operários, e da literatura popular - de autores cultos. Porque tudo está aí, nesse clássico. Todos os percalços e todas as conquistas do gênero, que se mimetiza com o meio, que sorve e absorve o ambiente para transmiti-lo no sentimento, nas emoções, nos gestos e o boleio das frases num tom tão afinado que torna o autor parente, senão pai, do mendigo, da prostituta, do jogador de sinuca, do malandro, do ladrão, do meninão do caixote.

QUEIROZ, Maria José de. Em nome da pobreza. Rio de Janeiro: Topbooks, 2006. p. 191.

sábado, 25 de junho de 2011

Os males do exílio: um inventário, por Lyslei Nascimento

Uma página fundamental da história do exílio no Ocidente é Os males da ausência ou A literatura do exílio de Maria José de Queiroz. O olhar sensível da escritora fazem um inventário dos males da ausência e rastreiam, nas obras dos expatriados, a “síndrome do desterro”: o sofrimento e a dor do exílio.

Dedicado aos brasileiros exilados – de ontem e de sempre –, o ensaio parte do mais remoto exílio de que se tem notícia – o do egípcio Sinuhe (cerca de 2000 a . C.) até o arquivo de Herman Görgen, “o amigo do Brasil”. Dante, Camões, Leão Hebreu, além de Defoe e Victor Hugo, só para citar alguns, são autores estudados pela ensaísta que se envereda também pelo destino dos jesuítas desterrados, pela reescrita irônica da correspondência de Voltaire, pelas ilhas de Rosseau, pelo passado reinventado de Nabokov e pela narrativa angustiante do exílio e morte de Walter Benjamin: a primeira verdadeira perda que Hitler impôs à literatura alemã.

O leitor – aquele que deverá acompanhar a ensaísta por esse mapa de infâmia – não pode perder de vista a nostalgia e as privações em terra alheia de que dá notícia a palavra no exílio. Além de ser agraciado com uma narrativa que aponta, não só para o mal, o leitor perceberá as saídas dos escritores na contingência do desterro. Esse tom do ensaio – entre os males da ausência e as estratégias de sobrevivência – aponta para questões cruciais pra o estudo da literatura do exílio: o sentimento patriótico, as tradições e as culturas que se entrecruzam e a dependência à língua.

Os capítulos dedicados ao exílio e ao êxodo bíblicos são primorosos. Neles, Maria José reflete sobre a fundação da primeira cidade pelo desterrado Caim; a configuração mítica de Jerusalém e o exílio na Babilônia. A diáspora do povo judeu até a bíblica Sefarad (Hispânia) e os anos de ouro do convívio pacífico entre judeus e muçulmanos são apontados pela escritora como fatores determinantes do progresso da literatura, da arte e da ciência.

No capítulo “Amargo ar do exílio – vinho envenenado”, o leitor acompanhará as narrativas dos escritores russos emigrados como Nabokov, Brecht e Nina Berberova. Em “A outra Alemanha”, Maria José desfia as malhas do poder que determinam o degredo e o sentimento de alijamento da “terra ancestral” e da língua.

Algumas frases dos escritores do exílio, citadas pela escritora, iluminam o ensaio, como por exemplo a reflexão sobre a pátria de Séneca: “O mundo inteiro é nossa pátria para que o nosso valor se prove com amplidão”; o pensamento de Hannah Arendt “A língua materna é a única coisa que se pode levar consigo quando se deixa a velha pátria” e a sentença de Peter Weiss: “Aquele que emigra uma vez será sempre emigrante”.

O ensaio é acompanhado por dois cadernos iconográficos, cerca de quarenta reproduções fotográficas, que trazem para o leitor a imagem de alguns dos escritores analisados. Destacam-se, célebres, a especialíssima fotografia da expulsão de Soljenitsine da Rússia e a de Bertold Brecht e Oskar M. Graf numa cervejaria. Também acompanha Os males da ausência ou A literatura do exílio uma extensa bibliografia, cerca de 800 títulos, que constitui uma valiosa contribuição para estudiosos e pesquisadores que se têm debruçado sobre a história dos intelectuais.

A escrita do exílio examinada pela escritora configura-se, assim, como um vasto painel do pensamento humano que aflora das páginas do ensaio em sua beleza e pertinência. Nesses tempos em que a luta contra os poderes arbitrários se faz tão necessária, instiga-nos, no livro de Maria José de Queiroz, o olhar lúcido do intelectual brasileiro para a produção cultural do Ocidente e suas reverberações na instância das relações entre o homem, a escrita e os seus algozes.

QUEIROZ, Maria José de. Os males da ausência ou a literatura do exílio. Rio de Janeiro: Topbooks, 1998, 714p.

A América, essa nebulosa, por Lyslei Nascimento

A América é, de modo muito significativo, o mundo ao qual se arrebatou o nome. Essa epígrafe de Arturo Uslar Pietri introduz os instigantes ensaios de Maria José de Queiroz em A América sem nome. Na série de ensaios que compõem o livro, a escritora retoma algumas reflexões teóricas iniciadas em A América: a nossa e as outras, 1992. Esses ensaios intentam localizar a América Latina no contexto mundial contemporâneo, explorar algumas manifestações culturais como o tango argentino e a poesia antilhana, compor os perfis dos escritores César Vallejo e Pablo Neruda e dar uma visão literária de Perón e do peronismo.

No ensaio intitulado “A América Latina no mundo moderno”, Queiroz focaliza o ponto de vista dos americanos do Norte para a qual, segundo a autora, a América do Sul, não passa de uma unidade nebulosa “sacudida por tormentas políticas, varrida pelos ventos da discórdia civil e militar” e composta por países exóticos cujas cidades - Rio de Janeiro ou Buenos Aires - são apontadas como “capitais de qualquer um dos países desse aglomerado de republiquetas sem história e sem tradição”.

Outra preocupação da ensaísta é o nacionalismo que se apresenta com um duplo corte: o que reduz a pátria às fronteiras do mundo conhecido e que reduz o conceito de nação à terra cultivada, a paisagem rural ou urbana onde se planta a casa, o lar; e, por outro lado, “o nacionalismo às avessas que valoriza o que vem de fora em detrimento daquilo que existe, que se produz e que se realiza dentro das fronteiras”.

No ensaio “A Literatura hispano-americana - essa desconhecida”, a escritora, aborda a dificuldade de se referir a América, diante da diversidade e do fragmentarismo, mas aponta para uma possibilidade de equilíbrio ao refletir sobre uma “consciência integradora” que não exclui a herança ocidental, mas que a assimila e a absorve na sua modalidade atlântica. Por essa via, Maria José de Queiroz refere-se a alguns exemplos da intrusão americana na literatura européia. Como, por exemplo, o judeu sefardita Leão Hebreu, o mexicano Juan Ruíz de Alarcon e Jorge Luis Borges.

Em “O homem macho e a hombría: variações em torno do machismo”, a escritora parte da distinção entre “exercício de bravura” e o “machismo exibicionista”. De acordo com a autora, a o culto da hombría, da virilidade agressiva aparece, geralmente, nas sociedades em formação e que os principais herdeiros do patrimônio violento, sagaz e mítico são, entre outros, os vaqueiros, os cowboys, os tropeiros, gaúchos. Nesse ensaio, Maria José de Queiroz estuda a interessante figura do Don Juan e a incerta certidão de virilidade conferida por sua vasta biografia amorosa. Segundo a autora, a fome de amor e a insatisfação exibem no caráter do “burlador de Sevilha” sua falência enquanto “homem viril e inteiro”.

QUEIROZ, Maria José de. A América sem nome. Rio de Janeiro: Agir, 1997, 197p.

sábado, 11 de junho de 2011

Amore


















Minhas mãos anoiteceram
na negra prisão dos teus cabelos.

No teu olhar sombrio
repousei alacridades claras
da luz fatigante do dia.

Fez-se noite,
Noite escura, densa,
de noturno apassionato,
con brio.

Rendida ao seu sortilégio,
entre sombra e penumbra,
abriguei pudores,
disfarcei deliquios.

Nos teus ombros firmes
busquei asas,
precipitei-me contigo.

À margem dos teus nervos
ouvi derivarem rios.

Nos teus músculos tensos
peixes e cardumes
fugiam ao meu abraço
e na fugida me levavam,
rápidos, umentes, frios.

No coleio das águas envolvida,
ficava e repartia.
Ao apelo da ribeira,
ora dilatava,
ora corria.

De surpresa em surpresa empolgada
diante de mim tuas constelações se abriram:
recitei tuas estrelas,
de caricioso pastoreio,
enquanto nos teus olhos esplendia
céu de azul profundo - maravilha!
noturno apassionato, con brio.

QUEIROZ, Maria José de. Resgate do real: amor e morte. Coimbra: Coimbra, 1978. p. 35.

A herança de Caim


O doce Abel
Caim, o mau.
A inocência lastimada,
a violência impune
murmuram nos nossos ouvidos
melopéia inquietante
de fatigado estribilho.
O seu eco nos atormenta
com triste acento
e renovado luto.
A morte de Abel
- crime sem vingança,
sangra nas nossas mãos:
o seu corpo, insepulto,
povoa o vazio obscuro
onde a dor é castigo.
Nas suas pálpebras lentas
a noite flui
como um pássaro fúnebre
em nebuloso aprendizado
de guerra e discórdia.
Nas nossas trevas,
um imóvel esplendor:
a herança de Caim multiplicada.

QUEIROZ, Maria José de. Resgate do real: amor e morte. Coimbra: Coimbra, 1978. p. 41. 

Os animais pastam, o homem come; apenas o homem de espírito sabe comer


E quem sabe comer é gastrônomo. A dignidade da gastronomia apoia-se não só numa forte estrutura econômica, que lhe confere peso, medida e cifra, como se exalta, igualmente, no refinamento da mais imediata das funções fisiológicas. Assim, a alegria de sentar-se a mesa para responder a uma das leis da sobrevivência deve antecipar-se na leitura do cardápio, expandir-se na discussão das iguarias, concretizar-se na degustação e prolongar-se em gesto e palavra de louvor à sua forma, feitio, cor e apresentação. O conviva celebra no silencioso e recolhido ato de saborear a comida o talento do artista criador. Pouco importa o caráter efêmero da obra criada: a receita é partitura que se repete e volta a deliciar indefinidamente.

QUEIROZ, Maria José de. A comida e a cozinha: iniciação à arte de comer. Rio de Janeiro: Forense-Universitária, 1988. p. 60.

domingo, 15 de maio de 2011

Entre o ensaio e a ficção, por Maria José de Queiroz


É preciso esclarecer: sou uma estudiosa. Tenho passado grande parte da minha vida nas bibliotecas e nas salas de aula. Concederam-me até o privilégio de permanecer, trancada à chave, durante o almoço, em Coimbra, na sala de leitura da biblioteca da Universidade, em Frankfurt, na Deutsche Bibliotek, e, em Paris, na Bibliothèque de la Sorbonne. Vivo numa torre de papel. Entenda-se: não de marfim. Ainda assim, longe dos lugares onde se decide a nomeada do best seller. Vivo para os livros, não dos livros. Digo que tenho cinco leitores. Para minha surpresa, sempre aparece quem se declare meu sexto leitor. É para ele que escrevo; os demais são cativos. Incluo-me, portanto, entre os autores de 'imensa minoria'. Não que escreva 'difícil'. A clareza é a polidez do escritor. E para não distanciar-me da rua nem do povo, freqüento o humano, o demasiadamente humano: o amor, a droga, a loucura, a violência, a prisão, a comida, o automóvel, o tango... Esses, os meus temas. Tratei de humilhados e ofendidos, de excluídos e de minorias. Escrevi extensamente sobre o índio e sobre o negro, sobre os judeus, a mulher e o espaço urbano, o exílio e a pobreza. Por que não tenho mais audiência?...
O ensaio é a minha forma natural de expressão, pois sou professora, professora de literatura. Mas como me dirijo, na página escrita, ao leitor comum, varro do texto o jargão catedrático. E... principalmente, não dou respostas. Deixo isso para os filósofos. Tento, ensaio (aí está) explicar, de forma acessível, o assunto abordado. Ao modo de Montaigne, o autor dos Ensaios, guia-me o acaso. E escrevo até que julgue ter levantado um número suficiente de questões. Claro que não esgoto o assunto. Foi o que fiz ao falar do exílio e dos exilados: voltei aos hebreus, cheguei aos dias de hoje, mas não esgotei o repertório da infâmia. Ensaiei. Apenas isso.
Nada existe de mais grato aos sentidos e à inteligência do escritor que escrever. Mas, também, nada mais terrível, nem mais angustiante. Quando se escreve ensaio – veículo natural do estudo, apto à análise de interesse e mérito literário, sociológico ou filosófico – escolhe-se, antes de enfrentar a página branca, o tema a abordar. No caso da ficção, nem sempre isso acontece. Parte-se de um pretexto: uma notícia na imprensa, um episódio subitamente resgatado pela memória, um incidente que desperte nossa atenção sem motivo claro, plausível.
A verdade verdadeira é que, grato ou angustiante, o ato da criação nos redime das misérias do cotidiano. Por isso, e muito mais, estou pensando em deixar o ensaio e instalar-me, mala e cuia, na ficção. Adeus notas de rodapé, citações, índices, prefácios, posfácios, bibliografias exaustivas... Viva a criação.


Fonte: http://www.klickescritores.com.br/mjqueiroz00.html

segunda-feira, 9 de maio de 2011

Nem todos os caminhos são para todos os caminhantes

Nem todos os caminhos são para todos os caminhantes. É necessário saber escolher. E bem. Nada de insegurança. Ao verdadeiro homem se conhece nos momentos de decisão. E tomada a decisão, aquele que tem fibra arca com as consequências. Chegado o momento, assuma suas responsabilidades. E não peça licença à sua mãe, nem ao seu pai, nem ao seu tio, nem ao cura nem ao delegado para viver. Viva a sua vida. Seja dono do próprio nariz. Se quebrá-lo, é seu. Ninguém tem nada a ver com isso. Homem de nariz quebrado, continua homem. E nariz a gente conserta. O que não se conserta, nem se remenda é a dignidade. Não está na cara, como o nariz. Apesar disso, é visível. E se estampa, com muita manha, nos olhos e nas vozes dos outros. Até no escuro. Convém, portanto, tratar de conservá-la. Vá, mundo afora, observando e aprendendo. Tire lição da vida alheia. Defeito visto ensina mais que elogio. E guarde silêncio: ouça e cale-se. Sempre que possível. Chamado a manifestar-se, comece por agir. Só dê opinião quando consultado. Se falar, fale afinado: na hora certa, sem fugir à medida do costume, no tom exato. Porque se replicarem, você fala mais alto, e domina a situação. Ninguém vence o cauteloso. Agora, em tempo de baile e de folga, não se faça de rogado: dance e cante. Obedecendo, sempre, ao compasso, atento aos costumes da sala. Uma coisa é certa: se o divertimento é bom, o trabalho é melhor. De experiência posso afirmar que o amor, o jogo, a comida e a bebida só enfeitam o mundo. O que dá sentido a tudo é o trabalho. Observe, por onde andar, como os homens e as mulheres trabalham. E chegará à seguinte conclusão: os mais felizes são aqueles que descobriram que o trabalho faz parte do dia, é tempero necessário à vida. Função natural leva ao amor, ao jogo, à comida e à bebida. Ainda aí, não se esqueça: toque afinado. O mundo é música escrita que você deve ler e interpretar. Prepare o fôlego, exercite as mãos e saiba usar os olhos. A vida é um dom. E viver, meu sobrinho, é uma vocação. 

QUEIROZ, Maria José de. Homem de sete partidas. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1980. p. 42.

Folhas ao vento

Desde a Idade Média os corações apaixonados descobriram nos versos forma natural de expressão. Não é difícil comprová-lo. Mas, a despeito da generosa cumplicidade da poesia, "quase irmã do amor", os versos sujeitam-se, à revelia do sentimento, às emergências do acaso e da necessidade.
Desde o mood for love aos modos de amar, todas as gamas da paixão, com sua euforia e seus tormentos, chamejam ao calor da moda, ou de modismos eróticos, tanto como se deprimem à fria luz dos mitos freudianos.
No entanto, o que mais surpreende o leitor, enamorado ou não, é que a poesia nem sempre favorece a vida amorosa. E embora não se ouse afirmar que lhe seja nefasta, a aspereza do cotidiano se encarrega de despejá-la da vida e, muito mais frequentemente do que se crê, de separá-la do seu quase irmão, o amor.

QUEIROZ, Maria José de. Folhas ao vento. In: LEAL, Carlos. (Ed.) 21 histórias de amor. Rio de Janeiro: Francisco Alves, 2002. p. 243.

Nó da história

Não convém ignorar, no nó da história, que em rede bem urdida as  malhas todas dependem umas das outras, em cadeia longa, interminável. E se os homens esquecem às vezes a sutileza do tecido, não a esquecem os tecelões, demiurgos implacáveis. No enredo da vida humana, não há fios livres. Nem autônomos. A perniciosa dinastia dos homens sós perdeu-se, faz séculos, na história.

QUEIROZ, Maria José de. Amor cruel, amor vingador. Rio de Janeiro: Record, 1996. p. 119. 

domingo, 6 de fevereiro de 2011

A comida é refeição, é convívio.

O simpósio, o banquete e o festim crismam-se como instituições sociais. E vinculam-se a todos os gêneros literários. O calor e as emoções do convívio abrangem inúmeros registros: da conversa amena à sátira mordaz, dos propos de table à oratória, dos almoços de negócios aos jantares diplomáticos e às ceias fúnebres. Embora dissimulada, a pretexto de mais nobres objetivos, a sensibilidade gustativa se faz aí representar: é em torno da mesa, sob a inspiração de um cardápio, no horário costumeiro das refeições, que os comensais se reunem. E o gosto fatalmente se insinua. A consequencia dessa ambiguidade? A metáfora do saber e do sabor: a língua que sabe é a língua que saboreia, que degusta.

QUEIROZ, Maria José de. A literatura e o gozo impuro da comida. Rio de Janeiro: Topbooks, 1994. p. 20.

terça-feira, 2 de novembro de 2010

Maria José de Queiroz: um verbete

Verbete: Maria José de Queiroz
Lyslei Nascimento[1]
NASCIMENTO, Lyslei. Maria José de Queiroz. In: ANDRE, Maria Claudia.; BUENO, Eva Paulino (Ed). Latin American Women Writers: an enciclopedia. New York/London, 2008. p. 433-435.

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Os estudos culturais e interdisciplinares, os avanços da globalização e a relação entre América Latina e Brasil trouxeram para o universo literário questões que, em ensaios e na ficção, Maria José de Queiroz, já abordava há muito em sua obra. Como escritora e intelectual no Brasil, sua obra se configura como um vasto painel dessa rede inusitada de vozes, letras e imagens que é a América Latina, æreconhecendo, no entanto, as diferenças e as heranças da cultura e das artes que aqui aportaram com os conquistadores e que, deles, com eles e contra eles, pôde-se, enfim, engendrar o novo continente

Ao acompanhar o seu trajeto e refazer o percurso de cada livro seu no momento em que me predispus a estudar o romance Joaquina, filha do Tiradentes, 1987,* em minha dissertação de Mestrado, apresentada ao Curso de Pós Graduação em Letras: Estudos Literários da Faculdade de Letras da UFMG, não tinha ideia da enorme riqueza que os seus escritos me proporcionariam. O romance lançou-me, também, ao estudo da pintura, da música e da fascinante história de Minas Gerais que permeia os seus escritos. Fez-me ler os relatos dos viajantes no Brasil e reler os sermões de Vieira, descortinou para mim toda uma literatura empenhada em rever e reler a ficção que se entrelaça aos acontecimentos históricos e as artes em geral.
Joaquina, filha do Tiradentes inscreve-se nessa produção contemporânea caracterizada pelo entrecruzamento da ficção com a História, da literatura e outras artes e campos do conhecimento. Compõem-se esses textos de produtos híbridos, promovedores de um discurso interdisciplinar que intenta, pela invenção e pelo preenchimento de lacunas historiográficas, principalmente, suplementar ou mesmo reescrever o registro ficcional.
A análise dessas narrativas põe o leitor diante de textos tensionados pela preocupação em recolher a crônica histórica e o desejo de preservar o passado. O trabalho fabulador da ficcionista passaria, assim, por uma espécie de ambivalência: ser, ao mesmo tempo, romancista e historiadora, ou seja, a voz que fala no romance construiria sua trama a partir de elementos factuais apropriados da narrativa histórica, e de elementos ficcionais, construídos pela imaginação.
Na dissertação, originada dessa pesquisa, estudo essas delicadas relações entre ficção e História, a partir do romance Joaquina, filha do Tiradentes. Ao privilegiar nesse romance a História, a romancista busca recompor, com o maior grau de verossimilhança possível, os contornos históricos do século 18, conjugando-os com a composição de uma vida ficcional para Joaquina, a filha bastarda do herói-mártir da Inconfidência, Joaquim José da Silva Xavier, o Tiradentes. Ao fazer falar uma voz que a História "nem se lembrou de esquecer", como afirmou Carlos Drummond de Andrade em um pooema dedicado a Joaquina. A romancista promove, então, no texto uma série de convergências entre os registros da Inconfidência e a invenção, cujo resultado é um texto de requintada orquestração.
A relevante produção de Maria José de Queiroz, cerca de trinta títulos, incluindo prosa, poesia e ensaios críticos, é marcada por um constante exercício de estilo que evidencia esse rigor com que a escritora delineia o seu trabalho. Pedro Nava aponta essas qualidades de estilo da ficcionista mineira, salientando que "catar, separar, escolher" são atitudes básicas da escritora e que esse trabalho artesanal passaria por um empreendimento pautado pela erudição e pelo requinte da elaboração pormenorizada de cenários e cenas da vida mineira. 
 
Por caminhos e tinta de América








O espírito crítico, indispensável ao ensaísta, tem dirigido a minha pena, e penas. Contudo, a tentação da análise, rendida sempre à inspiração alheia, talvez me leve a arar o meu próprio campo...

                                                                       Maria José de Queiroz

Maria José de Queiroz é uma das raras escritoras brasileiras que são perfiladas pelo rótulo, às vezes pouco lisonjeiro, de eruditas. A crítica feita a sua obra ressalta, quase sempre, as qualidades do estilo e da prática da língua, como salientou Pedro Nava, na apresentação do romance Homem de sete partidas, publicado em 1980. Nava define-a como artista e artesã da palavra pela sua perícia em:

catar, separar, escolher a palavra adequada, o verbete justo, a expressão insubstituível – ao seu manejo, num jeito que encanta pela simplicidade, pelo correntio, que são o resultado do que é incansavelmente trabalhado até poder se apresentar em estado de pureza e da supressão de todo o supérfluo.[2]

Esse trabalho artesanal da escritora de catar, separar e escolher a palavra insubstituível passa, certamente, pela idéia de perfeição e de concepção de um empreendimento pautado pela erudição. O artesanato textual a que Nava se refere não aproxima a construção do texto de Maria José de Queiroz de um fazer literário descompromissado com os rigores da língua: Nava reconhece na autora uma busca incansável pela palavra ideal. A fluidez do estilo não se distancia, portanto, do uso de termos raros e pouco usuais do vernáculo.
O pitfall em que cai o leitor, segundo Nava, é uma trama que pode ser construída a partir da escolha do termo exato, da palavra que não pode ser outra. O uso obrigatório de certos vocábulos instaura uma leitura decifradora, além de evidenciar o rigor da autora que construiu o texto e que parece ter sempre em vista os leitores ideais, capazes de ler o que não foi escrito e capazes de entender o que não foi dito, como registra a dedicatória manuscrita feita ao Mestre Frieiro, no livro Exercício de Fiandeira.
A tese de doutoramento de Maria José de Queiroz, A poesia de Juana de Ibarbourou (1961), e o livro de ensaios Do indianismo ao indigenismo nas letras hispano-americanas (1962) põem em relevo a marca peculiar do seu trabalho: a construção de um percurso voltado para um trato refinado tanto com a palavra quanto com os temas escolhidos.
Desde o estudo que enfoca a obra da escritora uruguaia Juana de Ibarbourou delineia-se o corpus crítico-literário da escritora, suas preferências e modelos. Empenhada em refletir sobre temas e aspectos culturais hispano-americanos, Maria José de Queiroz inicia a sua obra em busca do que poderia ser visto como um vasto painel literário cujo múltiplo e variado desenho comporta desde o tango argentino – baile, canção e diabrura que desafia o tempo – até a comida, iniciação e gozo impuro.
Em toda a extensão dessa obra, há um esforço em elaborar, por meio de uma galeria de temas, autores e livros, uma enciclopédia cultural da América Latina. Revela-se, assim, o perfil de uma pesquisadora que pretende construir, tanto em ensaio como em ficção, uma obra eminentemente voltada para um projeto crítico da produção cultural dos países de língua portuguesa e espanhola na América. Sua galeria de estudos se inaugura com A poesia de Juana de Ibarbourou. O livro revela uma preocupação em delimitar, sob o título de "Paralelos", a filiação da autora uruguaia, através da busca das influências e fontes. Maria José de Queiroz empreende esse estudo ao buscar seguir os fios de uma rede que o texto de Juana de Ibarbourou fornece. O laço entre os textos e os autores arrolados pela ensaísta dá-se pela constatação do espelhamento entre vida e arte, e como essa relação se manifesta numa determinada época do processo de produção intelectual da escritora uruguaia. Perpassa nesse olhar da ensaísta o desejo de atar as pontas da vida e da ficção e uma preocupação que pode ser detectada em toda a sua obra: o arrolamento de precursores e fontes da criação. Essa abordagem deixa transparecer, além de um liame com a erudição – Maria José de Queiroz transita entre o texto analisado e os que a ele fazem referência – , uma construção de retratos multidimensionais e interdependentes da literatura da América Latina.
O conjunto de ensaios intitulado Do indianismo ao indigenismo nas letras hispano-americanas marca uma preocupação de Maria José de Queiroz com uma certa "busca da expressão própria" do indígena na literatura hispano-americana e brasileira. Apontados pela autora como duas pragmáticas literárias, o indianismo e o indigenismo revelariam duas perspectivas distintas de se encarar a figura do indígena.
Determinada em delimitar esse retrato, a autora começa por historiar a descrição que dele é construída desde a conquista da América. De acordo com a ensaísta, os autores que deram relevo à figura do indígena, muitas vezes, afastados pela língua, costumes e religião, recorriam a convenções literárias e utilizavam um senso comum ditado pela imaginação para construir-lhes, na ficção, perfil e figuração. Isso é feito, ora descrevendo-os por uma perspectiva que visaria salientar o aspecto mítico do indígena, utilizando a idéia do heroísmo sob os postulados de Rousseau, ora considerando-os como criaturas tristes e miseráveis: nem mito, nem símbolo, nem herói. Espelhando-os como os espoliados e explorados pelos brancos e esquecidos pela civilização dominante, a poética indigenista também se afastaria do ideal de representação indígena.[3]

Diante dessa face bifronte que Maria José de Queiroz apresenta, nota-se a denúncia de que essa face seria esculpida pelo colonizador. A ensaísta amplia a questão quando aponta para a necessidade de fazer-se ouvir a voz do indígena. A flecha no ar, metáfora que a escritora denomina de "a expressão própria" do indígena, passa por uma perseguição a uma expressão universalmente válida, sem importar muito o fator geográfico, que pode ser real, mas não é decisivo, ante a necessidade de expressar-se o indivíduo, expressando-se a um tempo a esquiva realidade do mundo.[4]
Enquanto reflete sobre a posição do indígena face às construções do imaginário do colonizador, a ensaísta parece apontar para a possibilidade de construção de uma escrita universal que, no entanto, reconheça as diferenças e não seja disposta em um todo indiferenciado. Quando admite a alteridade do sujeito com a conseqüente diferença nos discursos, a perspectiva do estudo torna-se mais ampla e aponta para uma interdiscursividade, uma possibilidade de intercâmbio entre as culturas.
No estudo sobre Juana de Ibarbourou, Maria José de Queiroz adota um procedimento crítico que vai marcar também seu trabalho com a obra de César Vallejo: a influência da vida sobre a obra do autor. Na tese de doutoramento em que enfoca a escritora uruguaia, sob o título "Autobiografia: vida e obra", a ensaísta busca estabelecer as relações entre obra e escritor, a partir do postulado de Eduardo Frieiro: "Para se penetrar a complexidade dessas relações era preciso, primeiro, analisar e definir o caráter do autor. Eis aí a dificuldade maior. A personalidade humana é um mundo fechado a qualquer tentativa de reconhecimento."[5]
A partir dessa perspectiva, a ensaísta aponta, em sua análise, o "tom confessional e declaradamente autobiográfico" de Juana de Ibarbourou, terminando por concluir que:

sua riqueza em aspectos humanos, geográficos e temporais permite-nos avaliar a importância da intromissão da vivência no domínio da experiência poética.[6]

No ensaio César Vallejo: ser e existência, publicado em 1971, Maria José de Queiroz continua a dar prioridade aos relevos autobiográficos que a obra literária pode privilegiar. Segundo a ensaísta, o caráter sofrido da obra do poeta se definiria pelos contornos reais da vida do autor peruano.
Distanciando-se dos conceitos de “eu lírico” ou "sujeito poético", a ensaísta se prende ao poeta enquanto autor e define, a partir daí, a sua "poética da dor". Movido pela necessidade de comunicação, o poeta Vallejo nortearia a sua poesia como uma atividade vital, lúdica e imprescindível. Além disso, sua linguagem poética é pensada pela ensaísta como uma tentativa de ordenação do caos interior do artista.
Em Vallejo, Maria José de Queiroz descobre o valor do pormenor. Os horizontes da casa, do guarda-roupa, das gavetas e dos armários, a secreta intimidade que garantiria a consciência do sujeito passam a ser explorados em todos os seus trabalhos, a exemplo de Vallejo. É a partir do autor peruano que Maria José de Queiroz começa a arar o seu campo, tanto ensaístico como ficcional, inventariando objetos e acessórios que funcionam como uma tentativa de estabelecer um ponto de referência para o sujeito: "[...] vestidos, sapatos, bolsa, certidão de nascimento, o azul dos olhos, o comprimento dos cabelos e o tamanho das mãos. Eleva-os à categoria de portadores de identidade. Acaba, por fim, reconhecendo-lhes valor existencial. Privado deles, desconhece-se como homem." [7]
O procedimento detectado em Vallejo pela escritora se incorpora à sua obra e lhe confere um dos grandes méritos do seu trabalho, ou seja, a exploração dos ambientes em sua constituição minimalista, com uma câmera que microscopicamente emoldura e invade o cotidiano privado das casas, dos quartos, dos gestos e olhares de cada personagem que cria.
Esses dois perfis de escritores de língua espanhola na América – Juana de Ibarbourou e César Vallejo – acabam por provocar a produção de uma série de ensaios que foram publicados sob o título de Presença da literatura hispano-americana, em 1971. Como um convite a "amigos de viagem por caminhos e tinta de América", Maria José de Queiroz traça um percurso literário que começa por enfocar o obstinado comportamento dos povos americanos de língua espanhola de se ignorarem entre si. A ensaísta demonstra que também os brasileiros, talvez no repúdio ao antepassado colonizador, revelam a perda da noção de parentesco. Diz ela:
renunciamos à Hispânia, berço comum peninsular, e confundimos, na renúncia, toda a descendência continental que moreja e padece ao nosso lado. [...] Também ela, a América espanhola, nos retribui na mesma moeda.[8]

Longe de querer delinear um mapa de territórios hermeticamente enclausurados, Maria José de Queiroz busca desenhar, com sua escrita, contornos literários que estimulem o leitor a um livre trânsito entre países e livros. Leitor que atravesse esse território não com passaporte de turista acidental, mas como portador de um olhar que reconheça, as diferenças peculiares de cada texto e de cada autor, estabelecendo conexões e vínculos com sua própria cultura.
Ao analisar autores e suas produções literárias na prisão, Maria José de Queiroz faz outra série de estudos, agora sobre o tema que dá nome ao ensaio: A literatura encarcerada, publicado em 1971. Empenhada nesse projeto, a escritora se detém sobre autores e obras que, em "prisão de corpos", encarregam-se de criar "subterfúgios de liberdade" pela linguagem.
Dessa galeria quase macabra, a autora ressalta que a literatura do cárcere – memórias, cartas, confissões, libelos, denúncias e manifestos – esbarra em censura, sigilo e em questões de segurança nacional, o que acaba por não conceder a palavra ao réu ou à vítima. Além de grifar a fortaleza do espírito humano, esses documentos introduziriam o leitor no território da Justiça e do Direito. A literatura do cárcere permitiria, pois, um olhar sobre a realidade, via ficção. É assim que, arando campos interdisciplinares, Maria José de Queiroz busca criar um vínculo entre a produção do artista e o seu lugar na sociedade em que vive.
Um encadeamento pode ser, assim, traçado entre autores: cria-se uma relação, aparentemente díspar, por exemplo, entre os escritos bíblicos de Paulo de Tarso e as memórias de Graciliano Ramos. A inteligência como capacidade de adaptação às circunstâncias marca esses "habitantes de aquários", essas "aranhas fechadas num frasco", presos em "sarcófagos de cimento e ferro" e em "submarinos em expedição".[9]

A perspectiva inicial da escritora de que a obra literária dos autores estaria vinculada a suas vidas os inscreve numa "história universal da injúria", ou seja, os escritos do cárcere alcançariam valor de testemunho político cuja importância histórica e arqueológica comporia o tecido de uma nefasta memória.

A estréia de Maria José de Queiroz como poeta e ficcionista acontece com a publicação de Exercício de levitação, 1971, Exercício de gravitação, 1972 e, depois de Como me contaram... fábulas historiais, 1973, Exercício de fiandeira, em 1974. Os três "exercícios" denunciam-lhe as leituras e os entrecruzamentos de textos. Delineia-se, dessa forma, uma postura metodológica em relação à palavra que lembra a pertinente observação de Pedro Nava quanto ao rigor do estilo da autora. O vocábulo "exercício" remete o leitor a uma prática escritural vinculada a uma perspectiva de aprimoramento, a um desejo de alcançar certa perfeição que vem pelo contínuo refazer.
Exercício de levitação, além de revelar o fazer poético que, do ponto de vista da autora, constitui-se quase como uma busca mística da palavra rara, indispensável, como demanda de uma aprendizagem do fazer literário. Já Exercício de gravitação é construído sob perspectivas e signos de escritores latino-americanos. Elegendo temas e imagens desses autores, Maria José de Queiroz pensa, em "um livro como todos os livros, e o fogo como todos os fogos e de um morto, todos os mortos"; como queriam Borges e Cortázar.
Ao trançar o seu texto com outros textos, a escritora apropria-se de uma galeria de poetas, denunciando-lhes uma "fome universal", uma grandeza que se insinua num grão de mostarda. Calderón, Hernani Cidade, Henriqueta Lisboa e Carlos Drummond de Andrade são evocados nesse livro e, no último poema, dedicado a um anônimo "colecionador de melancolias", vislumbra-se um emaranhado de signos que apontam para um lirismo em que "fantasmas habitam castelos onde deixaram suas almas". Os livros se apresentam como corpos vivos numa biblioteca imaginária carregada de sons que são guardados pela memória da leitora Maria José de Queiroz.
No Exercício de fiandeira, marcado pelo tom do refrão "fia, fia, fiandeira, tua roca em monotonia", espelham-se escrita e escritura. O fazer literário, via poesia, é ilustrado e recuperado como texto artificiosamente construído. A palavra poética reflete, por citação entrecruzada em epígrafe ou no corpo do poema, o registro de leituras da autora. Memórias de outros autores e de outros textos, de viagens e de pessoas, embaralham-se na trama poética, como para suprir uma grande ausência que insiste em transformar o tecido literário numa renda: um texto filigranado e roído pelo tempo.
O livro Como me contaram... fábulas historiais, publicado durante a produção dos três exercícios poéticos, é um conjunto de histórias e fábulas recolhidas por uma narradora que se encena como uma cronista de Minas Gerais. O subtítulo "fábulas historiais" deve-se ao estudo feito pela escritora sobre Garsilaso de la Vega. No ensaio sobre o escritor, Maria José de Queiroz esclarece que as suas crônicas eram assim designadas porque, a um tempo, poderiam ser reais ou fabulosas, o que seria uma precaução contra possíveis críticas à autenticidade dos depoimentos por ele arrolados. Com o uso da expressão de Garsilaso de la Vega, Maria José de Queiroz imprime em suas narrativas o mesmo tom indefinido entre verdade e ficção. A partir dessa chancela, a narradora passa a registrar relatos ouvidos de habitantes de cidades do interior de Minas, sem a preocupação de ser copista fiel dos relatos.
O projeto da escritora é recuperar parte da memória cultural e histórica de Minas através da ficção, sem o rigor historiográfico tradicional. Pelas narrativas orais que não estão sujeitas ao encarceramento de datas, fatos e documentos precisos, ela acaba por compor um mosaico cultural das Minas Gerais. Todo o valor dos dados factuais é desconstruído pela narradora que, travestida em cronista familiar, registra, aparentemente sem nenhuma pretensão histórica, casos de Minas, lembranças estruturantes do imaginário cultural mineiro.
Do latim, Maria José de Queiroz resgata a palavra "amor" em Resgate do real: amor e morte: Amor, amoris. Nesse livro de poemas ela explora poeticamente o tema da morte nas mais variadas culturas e significações. De Osíris ao canto do cisne, ela concebe uma série de poemas que buscam desfiar a trama da morte presente desde a cultura egípcia até às lendas chinesas. A morte é encenada como um "resgate do silêncio" daqueles que já não têm mais voz.
Em Para que serve um arco-íris?, escrito no verão de 1974, em Paris, ela manipula palavras que deixam entrever um apelo ao sentido da visão do leitor; por exemplo, no poema homônimo, ela brinca com versos como:
André deu o nó à gravata
e olhou-se no espelho;
Joana prendeu aos cabelos seu laço de fita;
Colar de três voltas, brincos, pulseira,
Emília ajeitou o vestido,
sorriu satisfeita.
Arco-íris de alegre bonança
coloriu a tarde chuvosa.[10]

O tecido da gravata, do vestido e do laço de fita alia-se ao colar, brinco e pulseira. Todos esses vocábulos e expressões são sintetizados pela imagem do arco-íris, alegria e bonança que colore a tarde cinza. De volta à prosa, Maria José de Queiroz empreende uma aventura bilíngüe em Ano novo, vida nova, 1978. Romance em que a escrita se desdobra e se faz metalinguagem. Em cenário parisiense, ela urde uma trama amorosa em que a personagem-narradora reflete sobre a possibilidade de escrever uma história em português e em francês. O duplo registro da linguagem confere ao texto um caráter de charada, de esfinge, que faz vislumbrar a complexidade do fazer literário.
A invenção da narrativa e a distância entre o sentir e o dizer chegam ao ponto máximo no enredo de Invenção a duas vozes, 1978. Presos, durante o carnaval, no espaço limitado do banheiro, um casal reflete sobre a vida e as representações sociais. A máscara familiar é atacada na mesma proporção em que a tensão entre os personagens delineia a escrita. O texto contido e censurado é espelhado pelo espaço físico reduzido em que os personagens, enclausurados, revêem o sentido do casamento e da comunicação.
De um romance que tem como cenário o espaço exíguo de um banheiro, Maria José de Queiroz parte para a construção de outra narrativa que abre roteiros para as terras sul-americanas. Em Homem de sete partidas, Bernardo é uma personagem que busca o tio desaparecido para desvendar-lhe a vida e conhecer-lhe as aventuras. A partir desse pretexto, a escritora sulca sobre os campos da América Latina um mapa cujo risco tenta conduzir narrador e leitor a uma viagem por entre as andanças de um personagem andarilho.
Se em Como me contaram... fábulas historiais, Maria José de Queiroz compõe um mosaico de histórias, pequenas narrativas em que se costuram casos e pertences mineiros, em Joaquina, filha do Tiradentes, 1987, a construção desse mosaico concentra-se no entrecruzamento da ficção com o fio temático do acontecimento histórico da Inconfidência.
A personagem-narradora do romance encena a romancista-historiadora transitando entre o registro asséptico da história e a invenção livre engendrada pela escritura. Suas atividades de bordadeira, costureira e copista espelham o trabalho de corte e costura de textos e a atividade da enunciadora do discurso em sua tarefa de construir de viés uma história entremeada de fato e invenção.
A Joaquina, filha do Tiradentes segue-se o romance Sobre os rios que vão, 1990, com o qual Maria José de Queiroz oferta aos amigos judeus sefarditas uma narrativa permeada de metáforas estruturantes do imaginário judaico. Desdobrando os versos "Babel e Sião", de Camões, ela empreende a construção de um texto que faz circular signos como o exílio, a duplicidade do nome próprio e a condição de estrangeiro dos sefarditas. A língua hebraica aparece como um significante que aponta para uma espécie de heterogeneidade, da qual o povo judeu poderia ser metáfora.
A literatura alucinada: do êxtase das drogas à vertigem da loucura, 1990, é uma coleção de ensaios que tematizam a literatura e as relações entre escrita, drogas e loucura. Na esteira de A literatura encarcerada, essa obra expõe, também como uma galeria, autores e poetas que empreenderam uma "viagem" pelo mundo das letras. Construindo um mapa das exaltações artificiais usadas pelos escritores na literatura, a ensaísta analisa a droga enquanto uma metáfora com a qual o homem procura intoxicar-se a fim de escapar à opressão e à dor.
Em A literatura e o gozo impuro da comida, 1994, a escritora revela na cozinha delirante da literatura – e sob os olhares ávidos do leitor – a mesa e suas relações com a arte, desde Homero até Pedro Nava, passando por Eça de Queirós e Machado de Assis. Esses ensaios, juntamente com A comida e a cozinha: iniciação à arte de comer, 1988, que os precedeu, indicam uma preocupação estética que busca delinear a mesa na literatura e ampliam um projeto iniciado por Eduardo Frieiro em Feijão, angu e couve: ensaio sobre a comida dos mineiros.[11] Ao compor um cardápio da mesa mineira, o autor lançou as bases para a pesquisa que Maria José de Queiroz, posteriormente, desenvolveu e à qual deu dimensões cosmopolitas.
Em A América: a nossa e as outras, 1992, a escritora estuda o ponto de vista das nações colonizadoras em relação à América. O Velho Mundo, segundo sua perspectiva, vê nosso continente como "uma América em retalhos", um patchwork composto de tecidos diversos, de cortes aparentemente pouco seguros. A produção intelectual e artística da América Latina estaria, assim, fadada a figurar na banca dos refugos, em relação ao Velho Mundo.
Reverter esse ponto de vista requer uma possibilidade de encontro dos países do Novo Mundo, a realizar-se no território de papel da literatura, em que letras e tintas das Américas possam confluir numa polifonia, numa variedade de sentidos, arremata. Nesse lugar privilegiado, peruanos, argentinos, chilenos e brasileiros poderiam reconceituar a própria produção artística e literária, e assim redescobrir a si próprios no convívio e no entendimento coletivo.
A América em retalhos, imagem que Maria José de Queiroz utiliza para pensar a condição americana, produz-se entre as meadas da narrativa, como que fora da linearidade que é cobrada do latino-americano: segundo a escritora, uma narrativa em labirinto de mil babélicas vozes, amarradas no texto e trazendo cada uma o seu sentido, poderia acabar por conferir uma significação ao todo.
Uma produção assim, embora fragmentada e estilhaçada, ostentaria, em paralelo, vozes distintas, multilíngües, e o leitor seria um andarilho pelas terras latino-americanas, aprendendo a costurar o tecido colorido das letras da América.
A variedade de temas abordados por Maria José de Queiroz, tanto em sua obra ensaística como na ficcional, aponta para um mosaico que a escritora compõe e com o qual constrói o pitfall a que se referia Nava. Delineia-se, a partir desse vocábulo, o caráter de trama e enredamento em que o leitor se vê envolvido. No exercício de fiar o texto, a escritora arma uma estrutura que se oferece ao leitor como urdidura, trama que convida e instiga o leitor a deslindar as suas estratégias de elaboração.



[1] Professora de Literatura na UFMG.
* QUEIROZ, Maria José de. Joaquina, filha do Tiradentes. São Paulo: Marco Zero, 1987. (Este ensaio foi realizado a partir dessa primeira edição que não foi publicado em sua versão integral. Dez anos depois de publicado, em 1997, a Editora Topbooks reedita-o em sua versão integral com posfácio da escritora.).
[2] NAVA, Pedro. Apresentação. In: QUEIROZ, 1980, p.11– 14.
[3] QUEIROZ, Maria José de. Do indianismo ao indigenismo nas letras latino-americanas. Belo Horizonte: Imprensa da UFMG, 1962.
[4] QUEIROZ, 1962, p.25.
[5] FRIEIRO. A ilusão literária. Belo Horizonte: Itatiaia, p.164.
[6] QUEIROZ, 1961, p.64.
[7] QUEIROZ, Maria José de. César Vallejo: ser e existência. Coimbra: Atlântida, p.81.
[8] QUEIROZ, Maria José de. Presença da literatura hispano-americana. Belo Horizonte: Imprensa da UFMG, 1971, p.11.
[9] QUEIROZ, Maria José de. A literatura encarcerada. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1971, p.156.
[10] QUEIROZ, Maria José de. Para que serve um arco-íris? Belo Horizonte: Imprensa da UFMG, 1982, p.22.
[11] FRIEIRO, Eduardo. Feijão, angu e couve: ensaio sobre a comida dos mineiros. Belo Horizonte: Centro de Estudos Mineiros/UFMG, 1966.

domingo, 17 de outubro de 2010

A arma de maltrapilhos, famélicos e miseráveis

Maltrapilhos, famélicos e miseráveis nada têm além das algemas com que os acorrentavam os opressores. A sua arma: o fusil do calibre duplo: sangue e sangue. Toda a força lhes vem da humilhada debilidade, como ocorreu aos "Tácitos defensores de Guernica, / oh suaves ofendidos, / que os eleváis, crecéis y llenaís de poderosos débiles el mundo!"
No momento em que até os mortos de vigilantes ossos abandonam a sossegada tranquilidade da tumba para chorar as derradeiras mágoas, "tan muertos a los viles opresores, / reanudaron entonces sus penas inconclusas, / acabaron de llorar, acabaron / de esperar, acabaron de sufrir, acabaron de vivir, / acabarón, en fin, de ser mortales!" [...].


QUEIROZ, Maria José de. César Vallejo: ser e existência. Coimbra: Coimbra, 1971, p. 39.

Três tempos de dança



Para Jacques Cantel
Nos pés, o ritmo.
No corpo - acorde em movimento,
a harmonia.
Na linha imaginária – invenção caprichosa,
o horizonte em fuga,
a melodia.
Isadora dança.
Libélula frágil,
sopro em pausa,
o palco habita.
No equilíbrio instável
a tentação jamais lograda
de ser, apenas, forma volátil,
transparência sutil.

No espaço vago,
ocupado,
o tempo se concentra:
gesto e brio.
Nijinski dança.
A geometria em liberdade,
o gravitar ameaçado,
a espiral em delírio...

Ah, volúpia de alcançar,
no salto,
a quadratura do círculo,
o vértice do abismo!
A terra, coreógrafa do visível,
arrebata ao pequeno deus
o privilégio das asas,
lábil investidura
sujeita a pena e castigo.

Na eloquencia do concreto
a medida humana,
exata,
entre tempo e espaço contida.
Béjart dança:
ao solo se prende,
ao território se agarra.
Acorrentou-se o mito.

Londres, inverno de 1978.

QUEIROZ, Maria José de. Três tempos de dança. In: _____. Para que serve um arco-íris. Belo Horizonte: Imprensa Universitária, 1982, p. 28-29.