domingo, 12 de maio de 2013

A íntima experiência do desterro

"Veio-me o ensejo de pôr-me num romance que viria a ser uma autobiografia - fala ao leitor. - Um romance em que queria pôr a mais íntima experiência do meu desterro, criar-me, eternizar-me sob os rasgos do desterrado e proscrito. E agora penso que a melhor maneira de fazer esse romance é contar como se deve fazê-lo". De si e per si complexo, porque envolvia personagens inconciliáveis, o Eu e o Outro, o pacto autobiográfico exige de Unamuno uma ampla e nem sempre auspiciosa revisita ao passado. À mercê do próprio Eu - amigo-inimigo -, debate-se no círculo estreito da criação. Ali mesmo, no "presente eterno" em que representa a "tragédia misteriosa" "da vida histórica e espiritual", põe, vis-à-vis, o Eu e seu duplo: "O Unamuno da minha lenda, do meu romance, o que temos feito juntos, o meu eu amigo e o meu eu inimigo e os demais, meus amigos e meus inimigos, este Unamuno me dá vida e morte, me cria e me destrói, me sustenta e me afoga. É minha agonia". 

QUEIROZ, Maria José de. Os males da ausência ou A literatura de exílio. Rio de Janeiro: Topbooks, 1998. p. 319.

sábado, 4 de maio de 2013

Homem ocupado em refazer a vida

É Artaud, dentre todos os supra-realistas, o mais comprometido com a interpretação do enigma proposto pelo Eu e jamais decifrado pelo "outro" que nele vige. Sua experiência instala-se no uso da palavra e na consciência do "impoder" - (l'impuissance), porque inibe a ação (im + impouvoir). O verbo roubado, o corpo em exílio forçado, longe do espírito, eis seus maiores tormentos. "Eu penso na vida", revela em Position de la chair. "Todos os sistemas que poderei edificar jamais igualarão os meus gritos de homem ocupado em refazer a vida... Essas forças informuladas que me assaltam, será preciso que um dia a razão as acolha, que elas se instalem no lugar do pensamento alto, essas forças que de fora têm a forma de um grito. Há gritos intelectuais, gritos que provêm da fina pasta das vértebras. É isso, de mim para mim, que eu chamo a Carne. Eu não separo o meu pensamento da minha vida. Eu refaço, em cada uma das vibrações da minha língua, todos os caminhos do pensamento na minha carne... Mas que sou eu no meio dessa teoria da Carne ou, para melhor dizê-lo, da Existência? Sou um homem que perdeu a vida e que procura por todos os meios fazê-la retomar o seu lugar... Mas é preciso que eu inspecione o sentido da carne que deve dar-me uma metafísica do Ser e o conhecimento definitivo da vida".

QUEIROZ, Maria José de. A literatura alucinada: do êxtase das drogas à vertigem da loucura. Rio de Janeiro: Atheneu Cultura, 1990. p. 125.

quinta-feira, 25 de abril de 2013

A doçaria portuguesa dos gerais

Em Baú de ossos, Nava documenta a filiação portuguesa da doçaria dos gerais, via Convento da Ajuda - o mesmo convento de que vieram as compotas e marmeladas para o jantar festivo do "Episódio de 1814" das memórias de Brás Cubas. As beatas de Juiz de Fora e arredores desciam ao Rio para visitar as freiras e subiam a Mantiqueira com receitas de doces e pasteis. Não as repetiam, talqualmente, de torna viagem. Davam-lhe cor local, recorrendo aos ingredientes mais à mão: "Os sobrepastos vernáculos e lusitanos mudavam no Brasil, como por exemplo os de ovos - que viraram noutros à simples adição do coco. Olha o ovo-mole do Aveiro, que é pai do quindim! Desses acréscimos, aos do Reino, nasceram os doces da Terra". 

QUEIROZ, Maria José de. A literatura e o gozo impuro da comida. Rio de Janeiro: Topbooks, 1994. p. 287.

domingo, 7 de abril de 2013

Dulce hebrea





"Dulce hebrea, desclava mi tránsito de arcilla;
desclava mi tensión nerviosa y mi dolor
Desclava, amada eterna, mi largo afán y los
dos clavos de mis alas y el clavo de mi amor!" (Cesar Vallejo)




A angústia que se depreende desses versos, de agudo erotismo agônico, poderá classificar-se como fruto de dicotomia existencial, de impossível erradicação, porque provém, segundo Erich Fromm, da própria condição humana. Condicionado à natureza, o homem, ao mesmo tempo em que se sujeita as suas leis físicas, sendo, portanto, incapaz de modificá-las, transcende todas as demais classes do reino animal.

QUEIROZ, Maria José de. Cesar Vallejo: ser e existência. Coimbra: Atlântida, 1971. p. 133.

domingo, 31 de março de 2013

Na perplexidade do naufrágio


"Nem tormenta nem tormento
nos poderia parar
(Muitas velas. Muitos remos
Âncora é outro falar...)
Andamos entre água e vento
procurando o Rei do Mar" (Cecília Meireles)


Na perplexidade
do naufrágio,
as derrotas
de alma
e alma.

No desvario
da bússola,
velas em pânico,
o desespero
do seguro porto.

Nas âncoras distantes,
o apelo da terra,
de terreno pranto
e terrestre pena.

No reencontro
a mundificação da alma
no lustral batismmo
dos sentidos.
Oh naufrágios!
Oh naves derrotadas!

Nos olhos
a úmida ternura
e
a

no líquido itinerário
do milagre.

Paris, 3/3/1970


QUEIROZ, Maria José de. Exercício de levitação. Coimbra: Atlântida, 1971. p. 40-41.

quinta-feira, 21 de março de 2013

A Jorge Luis Borges, Anouilh e Cortázar



Um livro, todos os livros,
o fogo, todos os fogos
– juízo de livre arbítrio
de um morto, todos os mortos.

No homem, a humanidade,
no vício, todos os vícios,
num dia, toda a vida,
numa hora, a eternidade.

Presente, passado, futuro,
condicional, supino, gerúndio
concentram-se no segundo
de insaciável relógio
que devora tempo, riso, luto.

No som, todos os sons,
do grave ao mais agudo.
Numa voz, todas as vozes
de todos os homens do mundo.

Na boca do faminto,
a fome universal.
Na dor do encerrado,
o sofrimento coletivo.
Na lágrima do infeliz
o pranto que alaga a terra,
salga todo fruto,
confunde árabes e judeus,
comove pecadores e justos.

Na prece medrosa e tímida,
toda a piedade humana:
a virtude do mais humilde
toda a virtude resume.

Na mínima parcela
a grandeza se insinua:
o grão de mostarda anuncia
prodígio de floração futura.

A ofensa ao mais pequeno
fere toda a humanidade.
No homem, todos os homens,
em todos a mesma garra.

Paris, inverno de 1970.

QUEIROZ, Maria José de. Exercício de gravitação. Coimbra: Atlântida, 1972. p. 15-16.

sábado, 9 de março de 2013

Dominadores e dominados

À fala de Marcelo, no Hamleto: "Algo está a apodrecer na Dinamarca", replicaríamos: "Algo apodrece há muito na nossa civilização". Ao indígena, ser à parte, a civilização não o reconhece como seu. Poucas vezes lhe deu esperanças. Muitas, muitíssimas, o desiludiu. Capatazes, bárbaros, cholos ressentidos, rábulas, charlatães, gamonales, juízes venais postam-se entre os representantes da civilização junto dos naturais. Transcorrem séculos, os dominadores se sucedem, mas as injustiças ficam.




QUEIROZ, Maria José de. Do indianismo ao indigenismo nas letras hispano-americanas. Belo Horizonte: Imprensa da UFMG, 1962. p. 136-137.

terça-feira, 26 de fevereiro de 2013

Gula e gulodice

Incluída pela Igreja entre os pecados mortais, a gourmandise desvincula-se do vício para elevar-se, na Fisiologia do gosto, a apanágio do homem (a tradução ao português seria, nesse caso, gulodice e não gula). Para Brillat-Savarin ela se opõe à gula latina: inimiga de todo excesso, caracteriza-se pela preferência, embora apaixonada, por tudo quanto lisonjeie o gosto. Graças a ela, as especiarias atravessam a terra de um a outro pólo, os vinhos e licores são exportados aos cinco continentes. É ela que atribui preço proporcional às coisas que são medíocres, boas ou excelentes, seja porque suas qualidades provem da arte, seja porque a própria natureza assim as criou.





QUEIROZ, Maria José de. A comida e a cozinha: iniciação à arte de comer. Rio de Janeiro: Forense-Universitária, 1988. p. 101.

domingo, 17 de fevereiro de 2013

Toda presença é conflito

Por que a palavra ríspida, a ironia venenosa e a impaciência? Por que o desabafo de desgosto? Que motivo me afasta das pessoas? A abundância de vida, acredito. O tumulto dos sentimentos exteriorizado em signos visíveis e audíveis, nem sempre agradáveis. É a imagem que me comove – o que fica como soma e síntese, fusão final. A face em que se confundem tiques, expressões e hábitos. Só a separação, a distância e a morte nos oferecem a pessoa na sua integridade, no seu retrato total – de corpo e alma. Salva dos desnorteios da razão, das bruscas mudanças de comportamento, ela – a pessoa, aparece-nos finalmente aliada à sua personagem. É a eternidade que comparece no exercício repetido a que a memória nos obriga. A presença, na sua solicitude importuna, na sua riqueza compósita, dispersa e dissipa. Ameaçadoramente subversiva, ela põe em perigo a estabilidade, o equilíbrio. Toda presença é conflito. O físico perturba, confunde, embaraça. Submete-nos a uma constante revisão de conceitos. Se tentamos guardar figura que o represente, saímos logrados: fluida, tremida, indistinta, ela assemelha-se ao vulto da fotografia fora de foco. A ausência, pelo contrário, concentra, reúne, aglutina. E só a morte – ausência definitiva – confere aos monumentos, às estátuas e aos seres humanos as dimensões da imortalidade. Assim entendo o verso de Mallarmé "Tel qu'en lui même enfin l'éternité le change", a propósito de Edgar A. Poe. O apelo à sacralização instaura no nosso íntimo o gosto da perfeição, o capricho na caracterização de cada gesto e de cada palavra, dentro da continuidade do vivido. Do já vivido.

QUEIROZ, Maria José de. Invenção a duas vozes. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1978. p. 106.



sábado, 9 de fevereiro de 2013

Imigração interior

Hannah Arendt comenta que o nome - emigração interior, é, já de si, ambíguo. Óbvio. Porque aquele que emigra, emigra para fora, é o emigrante. O seu antônimo é imigrante. Mas para livrar-se de censura, ou para justificar-se ante as patrulhas ideológicas do após-guerra, convinha adotar o mesmo substantivo - emigrante, e o coletivo correspondente - emigração, com que uma parte dos habitantes - temerários, comunistas ou inconsequentes, passara a ser conhecida. Que fazem os "resistentes"? Juntam aos substantivos o adjetivo "interior". E pronto. Acontece que muita gente  que colaborou ou compactuou com o regime buscou abrigo debaixo desse paradoxo engenhoso.


QUEIROZ, Maria José de. Os males da ausência ou A literatura do exílio. Rio de Janeiro: Topbooks, 1998. p. 595.

sábado, 26 de janeiro de 2013

Chocolate

 

Passam-se os anos. Passam-se os séculos. E o chocolate não perde o seu visgo. "Visgo de agarrar fêmea", diz Guilherme Figueiredo. E continua: "A Inglaterra, graças à colônia da Costa do Ouro, a Alemanha, a Suíça, a França tomaram conta da industrialização do filtro erótico". Informado acerca do perigo que representa para as coronárias, o escritor brasileiro comenta: "Veneno terrível, criador de hábito, vingança do Novo Mundo em revide às mazelas venéreas recebidas do Civilizado Mundo Europeu, mas perigoso do que a coca degenerante e o trabalho cancerígeno, porque nem mesmo pertence hoje à gastronomia: pertence à glutonaria." (FIGUEIREDO, Guilherme. Chocolate, vício solitário. In: _____. Comes e bebes. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira/MEC, 1978. p. 124.)


QUEIROZ, Maria José de. A América, a nossa e as outras: 500 anos de ficção e realidade. Rio de Janeiro: Agir, 1992. p. 81.

domingo, 23 de dezembro de 2012

Rol de signos


Para, olha, medita:
o mundo,
carta de enigmas,
abre aos teus olhos
extenso rol de signos.
No espelho das águas,
Narciso e o mito;
no profundo mar, submerso,
o sonho imperecível de Ícaro;
na penha tenebrosa,
Prometeu acorrentado
à eternidade do delito.

O rosto e a imagem
- perfil ambíguo,
ele e eu, eu e ele, confundidos;
a fuga ao chão,
na vertigem das asas livres,
a envergadura em equilíbrio;
o raio aprisionado
na frágil argila
- risco tosco,
forma indecisa...
assim começa,
e recomeça,
nosso itinerário de equívocos.

A libélula ao redor da luz,
o sapo e a víbora,
a árvore  da ciência,
o canto do pássaro
que cabe, eterno,
no pulsar do sangue,
entre dois versículos da Bíblia,
as cores todas do céu,
o disco de Newton
- do amarelo ao rubro,
dentro do branco de Leonardo,
inicial e receptivo...
Tudo é enigma.
A esfinge hierática,
quimera voraz,
vela à porfia:
mistério denso
nos chama
do fundo as suas pupilas.
Seu sexo, inviolado,
negros perfumes transpira.
Ah, tentação de possuí-la!

Belo Horizonte, outubro, 1978.

QUEIROZ, Maria José de. Para que serve um arco-íris? Belo Horizonte: Imprensa, 1982. p. 13-14.

quarta-feira, 24 de outubro de 2012

Miudezas

Se repito igualzinho igualzinho, nem tem mais graça! O encanto do caso está nessas miudezas que vêm e que vão e que tanto podem enfeitar história triste como história alegre, acontecida deveras ou inventada só - reclamava Itacolomi. Eu, contudo, exigia fidelidade da imaginação à versão original. E não arredava daí a teimosia de ouvinte minuciosa. Queria também que as miudezas aparecessem na hora certa e no lugar conhecido. Quando ele vacilava, eu puxava da sua língua e da memória [...].

QUEIROZ, Maria José. Joaquina, filha do Tiradentes. São Paulo: Marco Zero, 1987. p. 25.

domingo, 14 de outubro de 2012

A dor de pertencer à humanidade

Amargurada, desci à Amazônia com uma frase de Cocteau na cabeça: "J'ai mal d'être homme." Também eu carrego como peso a dor de pertencer à humanidade. Como é que pode haver tanta gente ruim no mundo? Será que pertencemos, todos, ao mesmo gênero humano? Ao fazer essa pergunta a Ostrov, já em convalescença, em casa, ele me respondeu:
- Tenho minhas dúvidas. Não conhecendo a frase de Cocteau, contentava-me em repetir o verso de Neruda - "Sucede que me canso de ser hombre" -, bem próximo, no seu pessimismo, da frase que me citou. Mas não creia que alguém escape da miséria humana. Ninguém é perfeito. A ruindade, os vícios, o crime são nosso patrimônio comum.

QUEIROZ, Maria José de. Vladslav Ostrov, príncipe do Juruena. Rio de Janeiro: Record, 1999. p. 159.

sábado, 6 de outubro de 2012

Das uvas e dos dentes dos filhos

Quando contei à comadre Elvira que os meus escrúpulos de consciência não me deixavam dormir, ela não se admirou. Era pior que eu. Em pecado grave, mortal, não amamentava os filhos. Temia que Deus punisse o inocente para castigá-la. Perguntei-lhe de onde tinha tirado isso. Da Bíblia. Da Bíblia? Pois não está escrito que "Os pais comeram uvas verdes e os dentes dos filhos ficaram embotados"? Fiquei horrorizada. Não sosseguei enquanto não obtive do padre Arduíno uma boa explicação para a sentença bíblica. E corri a participar à comadre que podia amamentar o coitadinho do afilhado sem susto: as uvas verdes nada tinham a ver com o leite materno. Helena, sua irmã, me contou que Elvira tinha mania de pecado.

QUEIROZ, Maria José de. Homem de sete partidas. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1980. p. 65.

sexta-feira, 14 de setembro de 2012

Decálogo que rege o paladar, de Brillat-Savarin

Ei-los:

I - O Universo só existe pela vida e tudo que vive se alimenta.

II - Os animais pastam; o homem come, só o homem de espírito sabe comer.

III - O destino das nações depende do modo pelo qual se alimentam.

IV - Diz-me o que comes e dir-te-ei quem quem és.

V - Ao obrigar o homem a comer para viver, o Criador convida-o a fazê-lo pelo apetite e o recompensa pelo prazer.

VI - A gulodice é o ato do julgamento pelo qual manifestamos nossa preferência pelas coisas que são agradáveis ao gosto em detrimento daquelas que não têm essa qualidade.

VII - O prazer da mesa é de todas as idades, de todas as condições, de todos os demais prazeres e é o último que resta para consolar-nos da sua perda.

VIII - A mesa é o único lugar onde jamais nos entendíamos na primeira hora.

IX - A descoberta de um novo prato faz mais pela felicidade do gênero humano que a descoberta de uma estrela.

X - Os que têm indigestão ou que se embriagam não sabem comer nem beber.

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QUEIROZ, Maria José de. A comida e a cozinha: iniciação à arte de comer. Rio de Janeiro: Forense, 1988. p. 107-108.

domingo, 9 de setembro de 2012

As amazonas

As amazonas - Carybé, Hector Julio Páride Bernabó (1969)
Francisco de Orellana, o primeiro a cruzar o "rio-mar" em 1542, vinculou-lhe o nome à lenda das mulheres guerreiras, estranhas habitantes das margens do rio Caimé, ao sul do Solimões, entre o Ucaiale e o Madeira. O encontro do conquistador com uma tribo indígena, armada de arcos e flechas, os cabelos longos ao vento, tornou-se objeto de repetidas reelaborações míticas. À vista do grupo aguerrido, figurou-he a memória um antigo quadro, de longíqua fixação no imaginário europeu: o das fabulosas amazonas das margens do Termodonte, na Capadócia. Em resposta ao inesperado lapso da fantasia, o bravo espanhol não teve dúvida: atribuiu nova morada às guerreiras que respondiam, na Antiguidade, pelos nomes de Pentesilea, Antíope, Valestris, Tomiris... (...)

O mito das amazonas divulgou-se em numerosas crônicas de viagem. O rio, inicialmente cognominado Orellana, acabou por denominar-se rio das Amazonas, prova evidente e efetiva do crétidito atribuído à lenda. O próprio Humboldt, inteiramente consagrado à ciência e zeloso, sempre, da verdade, esquivou-se a negá-la: preferiu explicar que não se destituía de funamento a tradição veiculadas pelos primeiros conquistadores. 

QUEIROZ, Maria José de. A América: a nossa e as outras. 500 anos de ficção e realidade. 1492-1992. Rio de Janeiro: Agir, 1992. p. 139.

domingo, 2 de setembro de 2012

Vila Rica, vila pobre

A Eduardo Frieiro

Vila Rica, vila pobre,
gente rica, gente pobre,
pobre gente!
Os cavalos de Filipe entram na história:
a galope.

Vila Rica, vila pobre,
gente rica, gente pobre,
pobre gente!
Corda ao pescoço, traje infame,
Tiradentes sofre injúria,
vira estátua, vira selo,
crescem-lhe barbas, cabelo.
Enquanto se arrasta o processo,
a liberdade tardia
– sonho inútil, utopia –,
vira forca, devassa, degredo.

Vila Rica, vila pobre,
gente rica, gente pobre,
pobre gente!
Rimas pobres, rimas ricas,
bela Marília menina,
noiva mineira esquecida,
rico enxoval sem destino.

Rimas pobres, rimas ricas,
Bárbara do mau caminho,
estrela do norte perdida,
no desnorteio do afeto,
na razão em desvario.

Rimas pobres, rimas ricas,
Cláudio inventa suicídio
para desculpa de assassinos.

Vila Rica, vila pobre,
gente rica, gente pobre,
pobre gente!
O braço se abre em cinzel,
alonga-se em gesto preciso
de mão sábia, dedo em riste.
No alto do Matosinhos,
longe da Vila Rica,
braços e mãos em festa
compensam falha divina:
nosso manco genial
acusa e vaticina.
No aceno dos profetas,
a sua maior conquista.

Vila Rica, vila pobre,
gente rica, gente pobre,
pobre gente!
No silêncio da capela,
música esquecida.
Nos ouvidos surdos,
ferro e hematita.
Que voz estrangeira nos cante
a nossa melhor missa:
Joaquim Emerico Lobo de Mesquita.

Vila Rica, vila pobre,
gente rica, gente pobre,
pobre gente!

Paris, fevereiro de 1971.

QUEIROZ, Maria José de.  Vila Rica, vila pobre. In: ______. Como me contaram... fábulas historiais. Belo Horizonte: Imprensa/Publicações, 1973. p. 47-51.




Ribeirão do Carmo, 1696 - Ouro Preto, 1698

Se qualquer destino se inventa, ou se constrói, na indivisível duração do segundo, convençamo-nos: o Coronel Salvador Fernandes Furtado de Mendonça e Miguel Garcia da Cunha endossaram essa velha crença já autorizada pelas biografias ilustres (e nem por isso mais conhecidas) de Alexandre e Aníbal. Ao compreender que o mundo começava ali no Mato Dentro, não recuaram. Diante do quase infinito horizonte vincularam a biografia à história do sertão, esquecendo dissidências e conflitos.
Passar do sonho à realidade, prever o imprevisível, não é fácil. Contudo, o Coronel chamou a si o encargo: arrancou-se do êxtase e deu o sinal de marcha. Assumindo a própria vida, tranformou em prólogo a desilusão da Itaperava exausta. Do alto do Tripuí fitou o mundo, e dele tomou posse. Foi num domingo, 16 de julho de 1969, festa da Virgem.
Diogo de Vasconcelos, na História Antigas das Minas Gerais, I, VIII, ratifica essa versão. E acrescenta: "Os companheiros, ergendo então os machados, fizeram retumbar o côncavo das florestas aos golpes da posse, e desceram para as fraldas da serra, de onde começaram a ouvir o estrépido soturno das águas. " Ao longo da praia do Ribeirão do Carmo enfileiraram as primeiras cabanas espalharam as primeiras bateias. Os granitos saltaram. Cor de aço. Esquecidos de que o céu ordena as coisas e a terra as padece exultaram felizes. Recriaram, nos corações, o mais gratos dos mitos. Para aboná-lo, recorreram a Artur de Sá, responsável pelas ordens régias e pelas minas. Os dentes trincaram o metal. Um nome encheu-lhe a boca: ouro! Em Taubaté o eco repetiu: ouro, ouro. Veio o edito.
A história refere que ao retumbar o estrondo do descobrimento a corrida começou nas vereias do Embaú. E também as derrotas e descaminhos. Até que numa manhã fria de junho, sob a invocação de São João Batista, o santo do dia, a mesma palavra, mil vezes repetida, despertou a terra no grio, Ouro Preto! Foi nessa madrugada que as nossas inquietudes geralistas tiveram nascimento. As Minas Gerais viraram geografia: o Itacolomi, à distância, anunciava a Vila Rica.

QUEIROZ, Maria José de.  Ribeirão do Carmos, 1669 - Ouro Preto, 1698. In: ______. Como me contaram... fábulas historiais. Belo Horizonte: Imprensa/Publicações, 1973. p. 25-28.

terça-feira, 21 de agosto de 2012

América, em oração, de Pablo Neruda

Há uma América a nossa espera: a nossa América. A cada um de nós ela se revelará distintamente. E a muitos aparecerá como a Pablo Neruda, em forma de oração:

"AMÉRICA, no invoco tu nombre en vano.
Cuando sujeto al corazón la espada,
cuando aguanto en el alma la gotera,
cuando por las ventanas
un nuevo día tuyo me penetra,
soy y estoy en la luz que me produce,
vivo en la sombra que me determina,
duermo y despierto en tu esencial aurora
dulce com las uvas, y terrible,
conductor del azúcar y el castigo,
empapado en esperma de tu especie,
amamantado en sangre de tu herencia".

QUEIROZ, Maria José de. Presença da literatura hispano-americana. Belo Horizonte: Imprensa/Publicações, 1971. p. 23.