sábado, 15 de junho de 2013

Amorem


"En mi cuerpo tu buscas el monte,
a su sol enterrado en el bosque.
En tu cuerpo yo busco la barca
en mitad de la noche perdida."

(Octavio Paz)








Ingênuo alumbramento
dos sentidos acordados
na exaltação do afeto
ainda ontem refutado.

Nos ombros sacrificamos
orgulho de muitas casas,
preconceitos alarmados
de rochas e duas aras.

O tempo,
entre lábio e lábio
suspenso,
esquece horas,
relógio,
cinza, angústias e mágoa.

Em abraço confundidos,
na ávida procura de nós mesmos,
olhos nos olhos nos miramos,
olhos nos olhos nos perdemos.

Em delírio prosseguindo
a nossas bocas sedentas
chegam carícias sem verbo,
falamo-nos em silêncio,
nos ouvimos a tato e medo.
Na voz febril do gesto,
ora sôfrego, ora manso,
percorremos o alfabeto.

Quando a sede se aplaca,
a ternura sobre às asas
e em espirais adeja,
ambiguamente casta.

Como de Formentor
a repetida vaga,
a vertigem dos sentidos
de novo nos arrebata.
Eis-nos embarcados,
e náufragos,
ainda uma vez,
e mais, e mais, 
entre pedra e água.

Quando tuas mãos recuperam
seu antigo exercício
tudo volta ao que fora:
cabeça, tronco e membros,
a cada qual seu desempenho.

Olhos nos olhos nos buscamos
olhos nos olhos,
no olvido da ampulheta 
e dos ponteiros.

Na tentação de existir,
Eu e Outro,
tu e eu.
corpo e alma,
corpo e alma entrelaçados,
afogamos dissabores
de rocha, âncoras e aras.

Entre luz e sombra
de outonal brumário,
mar alto, terra ao longe,
longe praia,
inventamos nosso porto
na encruzilhada das águas.

QUEIROZ, Maria José de. Resgate do real: amor e morte. Coimbra: Coimbra, 1978. p. 29-31.

Amoris


O meu melhor vestido
ou
revisão da fábula

Nas tuas mãos, o meu melhor vestido:
trama inconsútil, gesto leve,
carícia e ritmo.

Lento, lento urdes a tela:
malha, ponto e linha,
fiel ao risco.

Dispenso organza e brocado,
de seda vulgar me dispo.
Na nudez encontras matéria
para mais belos motivos.

Em noite de amor e arte
celebram-se os sentidos:
ramagens astros e nuvens,
asas delgadas de pássaros
golfos e mais enseadas

O fio ao romper-se te obriga
ao enredo de novos laços:
os lábios correm em auxílio
dos dedos menos hábeis.

Plenilúnios, lagunas e lagos,
torrentes, fontes, cascatas
disfarças com breves toques,
unindo o esquivo ao raro.

A trama se complica
no requinte do tecido,
na sutileza do fio,
imponderável,
diáfano.

À fugaz beleza cálida
da teia secreta, apertada,
juntas suspiros e ais.

Toda inteira recoberta
de renda franjas e vozes,
rivalizo à madrugada,
com o claro vestido de névoa
estendido à flor do mar.

À inocente denúncia
à nudez falaciosa
(para a revisão da fábula)
em outros termos se declara:

o rico vestido de ouro,
de pedras e joias caras
- invenção de quem o talha,
veste-o quem nele acredita,
em dia de festa pública
ou em noite de amor e gala.


QUEIROZ, Maria José de. Resgate do real: amor e morte. Coimbra: Coimbra, 1978. p. 27-28.

Amor

"... para salvarme y salvarte, con amor te deletreo." 
(Gabriel Celaya)

Palavra a declinar-se
em cinco casos
e uma invocação: 
amor, amoris.
Nome de vasto império,
lei, culto, servidão.
Nos cinco sentidos
a sua garra.
O mistério se faz carne,
o corpo aprende a ser corpo
habitado:
amorosa iniciação.
Do nominativo ao ablativo
a carne se entende e se explica,
cumprindo-se em si mesma
em cópula fabular
de clara dicção.

Amor
, amoris:
em genitivo de posse
em dativo de entrega,
ou de ablação,
nome, nome, sempre nome,
de humana declinação.
Singular ou plural,
étimo e desinência,
com residência na terra
– sangue, instinto, vocação.

QUEIROZ, Maria José de. Resgate do real: amor e morte. Coimbra: Coimbra 1978. p. 23-24.

terça-feira, 11 de junho de 2013

O amante e a amada


O amante e a amada:
o céu, os astros,
as grandes águas.
Arquipélagos e promontórios,
barcas a sabor,
mar alto.

L'heure exquise:
horizonte sem estradas.
A emoção da viagem
no ritmo delirante das vagas.
Abismos insondáveis,
nenúfares sombrios,
opalescência de nácares.

O amante e a amada:
prodígio multiplicado.
O sal do tempo
na pele ácida.
Estrelas de nardo e espuma
nas sílabas sincopadas.
Os olhos de todas as ilhas
vendados pelos penhascos,
os ouvidos invisíveis da noite
surdos ao grito e ao milagre.

O amante e a amada:
a hora redonda, estática.
Na argila suave,
o criador, a criatura, o incriado.
A imagem e os seus espelhos,
a alma e os seus fantasmas.
A pedra informe, áspera:
estátua viva. Parla!

O amante e a amada:
nas vacilações da luz,
fulgor de muitas espadas;
nas sombras galopantes,
lestos corcéis alados.
Entre o amanhecer e o crepúsculo
o tempo cala a eternidade.

O amante. A amada.
Terra próxima:
no azul largo, o horizonte habitado.
As gaivotas ferem o céu:
himeneu ao romper da aurora.

Firme na sua duração,
sucessivo, tenaz,
o dia invade as ruas,
o sol desperta a cidade,
indiferente ao gravitar sem medida,
alheio à eternidade fugaz.
O pêndulo em equilíbrio,
os ponteiros dissipam as horas.

Ele. Ela. O relógio.
Passos e pés escravos.
O pão. O salário.
O amante e a amada
sonham noite interminável.

QUEIROZ, Maria José de. Resgate do real: amor e morte. Coimbra: Coimbra, 1978. p. 17-19.

Receita para fabricar outono
















"Tudo (entre um dia e o outro dia) por um velho capricho do relógio e, outro, da geografia." 
                                                                                                                    (Cassiano Ricardo)


Paris: as duas margens do Sena sugerem rivalidades.
O Pont Neuf as elimina em mágica transcendência.

O mito passeia disponibilidade vaga
entre as duas margens:
éramos dois.

O tempo e seu ponteiros
mediram nosso verbo de dilatada ressonância.

De passadas primaveras, ecos apagados,
vestígios dispersos de caminhos percorridos,
dualmente.
Hoje, o sursis.
Amanhã, o inverno monologal.

Paris, outono, 1969.


QUEIROZ, Maria José de. Exercício de levitação. Coimbra: Atlântida, 1971. p. 13.


sexta-feira, 31 de maio de 2013

Árvore

Fotografia: Lyslei Nascimento, 30/5/2013, UFMG - Belo Horizonte/MG - Brasil.
O que tomas à terra,
entregas ao vento: 
folhas, flores, verde musgo.

Chuva, orvalho, sol e lua
– tudo convertes em fruto.

Na aspereza do tronco
a seiva se transmuda.
No mais tenro botão
a raiz se renova a custo
de esforço lento, lento, 
sostenuto 

A tempo preciso
ao ramo envias 
o necessário sustento:
nem muito nem pouco,
assaz bastante
– a medida justa.




No gosto esmerado, caprichoso,
de evitar a monotonia
e o abuso,
o sabor apuras de cada fruto;
nos tons e entretons
a tua riqueza se insinua.

Arredondas linhas e formas,
dentro dos limites exatos,
fiel a ti mesma, à flora, ao uso.
Aborreces a pressa e o escândalo:
sem alarde nem tumulto
ofereces à fauna voraz
o teu dom apreciado, maduro.

Obediente às estações,
atenta ao céu e à nuvem,
repetes em cada galho
o compromisso do caule:
servidão de alta fronte,
alheia à sedução da brisa
e ao convite do vento.

Firme no teu posto
aprendes paisagem,
ensinas permanência.
Teu itinerário reiventas
no território ocluso
a que raiz e tronco te condenam:

no voo dos hóspedes
teu roteiro alado
pelos quatro cantos da terra.

Nas asas ligeiras
teus sonhos se resolvem:
partes e permaneces.

No azul, és pássaro;
na terra, és verde.

Árvore, árvore,
verde pássaro azul,
verde, verde.

Paris, 1971.

QUEIROZ, Maria José de. Exercício de fiandeira. Coimbra: Coimbra, 1974. p. 44-46.

sábado, 25 de maio de 2013

Privada de distração

Privada de distração, procurou a igreja. Ia à missa das seis mas também assistia à das sete e à das oito. Voltava ao meio-dia para o Angelus e à  noite para a benção e para a reza. De capela em capela fazia suas orações. Ficava mais tempo diante da imagem de Santo Antônio, cujo altar ela floria, de alto a baixo, todas as terças-feiras. Carregava mais de dúzia de livrinhos de devoção, colecionava novenas de todos os santos do céu. Trazia bentinhos, relíquias e escapulários pendurados no peito por uns seis ou sete alfinetes de mola. O rosário de contas de lágrimas na mão, seus lábios repetiam, incansavelmente, mistérios gozosos, dolorosos, gloriosos.



QUEIROZ, Maria José de. Amor cruel, amor vingador. Rio de Janeiro: Record, 1996. p. 125.

segunda-feira, 20 de maio de 2013

Amor eterno

Toda emoção e sentimento relacionados com a vida transmitem ao indivíduo a mesma essência limitativa. Há quem faça promessas de devotamento eterno ao ser amado. Há quem creia no "per omnia saecula saeculorum" de humana intenção. Apesar de tudo, sempre haverá a morte a estabelecer fronteira. Chegados, contudo, ao seu domínio, não nos ocupa nem preocupa a ideia da limitação. Semeia-se no seu campo a eternidade. Transferindo para além da vida o compromisso amoroso, tem o poeta a certeza de garantir-lhe a perenidade. O salto confere ao sentimento humano, imanente e efêmero, a virtude da transcendência. Os chamados amores eternos só logram essencialidade se marcados pela morte.

QUEIROZ, Maria José de. César Vallejo: ser e existência. Atlântida: Coimbra, 1971. p. 111.

quinta-feira, 16 de maio de 2013

Nas ficções de Borges

Nas Ficcciones de Borges temos a melhor expressão dessa bem nascida segurança que deixou de copiar para inventar. Espanta ao europeu a tranquilidade da sua erudição, a espontaneidade da sua palavra que cria situações fantásticas, imagina mitos, interpreta heresiarcas, desenreda labirintos e desvenda os segredos da Cabala.

QUEIROZ, Maria José de. Presença da literatura hispano-americana. Belo Horizonte: Imprensa/Publicações, 1971. p. 27.

domingo, 12 de maio de 2013

A íntima experiência do desterro

"Veio-me o ensejo de pôr-me num romance que viria a ser uma autobiografia - fala ao leitor. - Um romance em que queria pôr a mais íntima experiência do meu desterro, criar-me, eternizar-me sob os rasgos do desterrado e proscrito. E agora penso que a melhor maneira de fazer esse romance é contar como se deve fazê-lo". De si e per si complexo, porque envolvia personagens inconciliáveis, o Eu e o Outro, o pacto autobiográfico exige de Unamuno uma ampla e nem sempre auspiciosa revisita ao passado. À mercê do próprio Eu - amigo-inimigo -, debate-se no círculo estreito da criação. Ali mesmo, no "presente eterno" em que representa a "tragédia misteriosa" "da vida histórica e espiritual", põe, vis-à-vis, o Eu e seu duplo: "O Unamuno da minha lenda, do meu romance, o que temos feito juntos, o meu eu amigo e o meu eu inimigo e os demais, meus amigos e meus inimigos, este Unamuno me dá vida e morte, me cria e me destrói, me sustenta e me afoga. É minha agonia". 

QUEIROZ, Maria José de. Os males da ausência ou A literatura de exílio. Rio de Janeiro: Topbooks, 1998. p. 319.

sábado, 4 de maio de 2013

Homem ocupado em refazer a vida

É Artaud, dentre todos os supra-realistas, o mais comprometido com a interpretação do enigma proposto pelo Eu e jamais decifrado pelo "outro" que nele vige. Sua experiência instala-se no uso da palavra e na consciência do "impoder" - (l'impuissance), porque inibe a ação (im + impouvoir). O verbo roubado, o corpo em exílio forçado, longe do espírito, eis seus maiores tormentos. "Eu penso na vida", revela em Position de la chair. "Todos os sistemas que poderei edificar jamais igualarão os meus gritos de homem ocupado em refazer a vida... Essas forças informuladas que me assaltam, será preciso que um dia a razão as acolha, que elas se instalem no lugar do pensamento alto, essas forças que de fora têm a forma de um grito. Há gritos intelectuais, gritos que provêm da fina pasta das vértebras. É isso, de mim para mim, que eu chamo a Carne. Eu não separo o meu pensamento da minha vida. Eu refaço, em cada uma das vibrações da minha língua, todos os caminhos do pensamento na minha carne... Mas que sou eu no meio dessa teoria da Carne ou, para melhor dizê-lo, da Existência? Sou um homem que perdeu a vida e que procura por todos os meios fazê-la retomar o seu lugar... Mas é preciso que eu inspecione o sentido da carne que deve dar-me uma metafísica do Ser e o conhecimento definitivo da vida".

QUEIROZ, Maria José de. A literatura alucinada: do êxtase das drogas à vertigem da loucura. Rio de Janeiro: Atheneu Cultura, 1990. p. 125.

quinta-feira, 25 de abril de 2013

A doçaria portuguesa dos gerais

Em Baú de ossos, Nava documenta a filiação portuguesa da doçaria dos gerais, via Convento da Ajuda - o mesmo convento de que vieram as compotas e marmeladas para o jantar festivo do "Episódio de 1814" das memórias de Brás Cubas. As beatas de Juiz de Fora e arredores desciam ao Rio para visitar as freiras e subiam a Mantiqueira com receitas de doces e pasteis. Não as repetiam, talqualmente, de torna viagem. Davam-lhe cor local, recorrendo aos ingredientes mais à mão: "Os sobrepastos vernáculos e lusitanos mudavam no Brasil, como por exemplo os de ovos - que viraram noutros à simples adição do coco. Olha o ovo-mole do Aveiro, que é pai do quindim! Desses acréscimos, aos do Reino, nasceram os doces da Terra". 

QUEIROZ, Maria José de. A literatura e o gozo impuro da comida. Rio de Janeiro: Topbooks, 1994. p. 287.

domingo, 7 de abril de 2013

Dulce hebrea





"Dulce hebrea, desclava mi tránsito de arcilla;
desclava mi tensión nerviosa y mi dolor
Desclava, amada eterna, mi largo afán y los
dos clavos de mis alas y el clavo de mi amor!" (Cesar Vallejo)




A angústia que se depreende desses versos, de agudo erotismo agônico, poderá classificar-se como fruto de dicotomia existencial, de impossível erradicação, porque provém, segundo Erich Fromm, da própria condição humana. Condicionado à natureza, o homem, ao mesmo tempo em que se sujeita as suas leis físicas, sendo, portanto, incapaz de modificá-las, transcende todas as demais classes do reino animal.

QUEIROZ, Maria José de. Cesar Vallejo: ser e existência. Coimbra: Atlântida, 1971. p. 133.

domingo, 31 de março de 2013

Na perplexidade do naufrágio


"Nem tormenta nem tormento
nos poderia parar
(Muitas velas. Muitos remos
Âncora é outro falar...)
Andamos entre água e vento
procurando o Rei do Mar" (Cecília Meireles)


Na perplexidade
do naufrágio,
as derrotas
de alma
e alma.

No desvario
da bússola,
velas em pânico,
o desespero
do seguro porto.

Nas âncoras distantes,
o apelo da terra,
de terreno pranto
e terrestre pena.

No reencontro
a mundificação da alma
no lustral batismmo
dos sentidos.
Oh naufrágios!
Oh naves derrotadas!

Nos olhos
a úmida ternura
e
a

no líquido itinerário
do milagre.

Paris, 3/3/1970


QUEIROZ, Maria José de. Exercício de levitação. Coimbra: Atlântida, 1971. p. 40-41.

quinta-feira, 21 de março de 2013

A Jorge Luis Borges, Anouilh e Cortázar



Um livro, todos os livros,
o fogo, todos os fogos
– juízo de livre arbítrio
de um morto, todos os mortos.

No homem, a humanidade,
no vício, todos os vícios,
num dia, toda a vida,
numa hora, a eternidade.

Presente, passado, futuro,
condicional, supino, gerúndio
concentram-se no segundo
de insaciável relógio
que devora tempo, riso, luto.

No som, todos os sons,
do grave ao mais agudo.
Numa voz, todas as vozes
de todos os homens do mundo.

Na boca do faminto,
a fome universal.
Na dor do encerrado,
o sofrimento coletivo.
Na lágrima do infeliz
o pranto que alaga a terra,
salga todo fruto,
confunde árabes e judeus,
comove pecadores e justos.

Na prece medrosa e tímida,
toda a piedade humana:
a virtude do mais humilde
toda a virtude resume.

Na mínima parcela
a grandeza se insinua:
o grão de mostarda anuncia
prodígio de floração futura.

A ofensa ao mais pequeno
fere toda a humanidade.
No homem, todos os homens,
em todos a mesma garra.

Paris, inverno de 1970.

QUEIROZ, Maria José de. Exercício de gravitação. Coimbra: Atlântida, 1972. p. 15-16.

sábado, 9 de março de 2013

Dominadores e dominados

À fala de Marcelo, no Hamleto: "Algo está a apodrecer na Dinamarca", replicaríamos: "Algo apodrece há muito na nossa civilização". Ao indígena, ser à parte, a civilização não o reconhece como seu. Poucas vezes lhe deu esperanças. Muitas, muitíssimas, o desiludiu. Capatazes, bárbaros, cholos ressentidos, rábulas, charlatães, gamonales, juízes venais postam-se entre os representantes da civilização junto dos naturais. Transcorrem séculos, os dominadores se sucedem, mas as injustiças ficam.




QUEIROZ, Maria José de. Do indianismo ao indigenismo nas letras hispano-americanas. Belo Horizonte: Imprensa da UFMG, 1962. p. 136-137.

terça-feira, 26 de fevereiro de 2013

Gula e gulodice

Incluída pela Igreja entre os pecados mortais, a gourmandise desvincula-se do vício para elevar-se, na Fisiologia do gosto, a apanágio do homem (a tradução ao português seria, nesse caso, gulodice e não gula). Para Brillat-Savarin ela se opõe à gula latina: inimiga de todo excesso, caracteriza-se pela preferência, embora apaixonada, por tudo quanto lisonjeie o gosto. Graças a ela, as especiarias atravessam a terra de um a outro pólo, os vinhos e licores são exportados aos cinco continentes. É ela que atribui preço proporcional às coisas que são medíocres, boas ou excelentes, seja porque suas qualidades provem da arte, seja porque a própria natureza assim as criou.





QUEIROZ, Maria José de. A comida e a cozinha: iniciação à arte de comer. Rio de Janeiro: Forense-Universitária, 1988. p. 101.

domingo, 17 de fevereiro de 2013

Toda presença é conflito

Por que a palavra ríspida, a ironia venenosa e a impaciência? Por que o desabafo de desgosto? Que motivo me afasta das pessoas? A abundância de vida, acredito. O tumulto dos sentimentos exteriorizado em signos visíveis e audíveis, nem sempre agradáveis. É a imagem que me comove – o que fica como soma e síntese, fusão final. A face em que se confundem tiques, expressões e hábitos. Só a separação, a distância e a morte nos oferecem a pessoa na sua integridade, no seu retrato total – de corpo e alma. Salva dos desnorteios da razão, das bruscas mudanças de comportamento, ela – a pessoa, aparece-nos finalmente aliada à sua personagem. É a eternidade que comparece no exercício repetido a que a memória nos obriga. A presença, na sua solicitude importuna, na sua riqueza compósita, dispersa e dissipa. Ameaçadoramente subversiva, ela põe em perigo a estabilidade, o equilíbrio. Toda presença é conflito. O físico perturba, confunde, embaraça. Submete-nos a uma constante revisão de conceitos. Se tentamos guardar figura que o represente, saímos logrados: fluida, tremida, indistinta, ela assemelha-se ao vulto da fotografia fora de foco. A ausência, pelo contrário, concentra, reúne, aglutina. E só a morte – ausência definitiva – confere aos monumentos, às estátuas e aos seres humanos as dimensões da imortalidade. Assim entendo o verso de Mallarmé "Tel qu'en lui même enfin l'éternité le change", a propósito de Edgar A. Poe. O apelo à sacralização instaura no nosso íntimo o gosto da perfeição, o capricho na caracterização de cada gesto e de cada palavra, dentro da continuidade do vivido. Do já vivido.

QUEIROZ, Maria José de. Invenção a duas vozes. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1978. p. 106.



sábado, 9 de fevereiro de 2013

Imigração interior

Hannah Arendt comenta que o nome - emigração interior, é, já de si, ambíguo. Óbvio. Porque aquele que emigra, emigra para fora, é o emigrante. O seu antônimo é imigrante. Mas para livrar-se de censura, ou para justificar-se ante as patrulhas ideológicas do após-guerra, convinha adotar o mesmo substantivo - emigrante, e o coletivo correspondente - emigração, com que uma parte dos habitantes - temerários, comunistas ou inconsequentes, passara a ser conhecida. Que fazem os "resistentes"? Juntam aos substantivos o adjetivo "interior". E pronto. Acontece que muita gente  que colaborou ou compactuou com o regime buscou abrigo debaixo desse paradoxo engenhoso.


QUEIROZ, Maria José de. Os males da ausência ou A literatura do exílio. Rio de Janeiro: Topbooks, 1998. p. 595.

sábado, 26 de janeiro de 2013

Chocolate

 

Passam-se os anos. Passam-se os séculos. E o chocolate não perde o seu visgo. "Visgo de agarrar fêmea", diz Guilherme Figueiredo. E continua: "A Inglaterra, graças à colônia da Costa do Ouro, a Alemanha, a Suíça, a França tomaram conta da industrialização do filtro erótico". Informado acerca do perigo que representa para as coronárias, o escritor brasileiro comenta: "Veneno terrível, criador de hábito, vingança do Novo Mundo em revide às mazelas venéreas recebidas do Civilizado Mundo Europeu, mas perigoso do que a coca degenerante e o trabalho cancerígeno, porque nem mesmo pertence hoje à gastronomia: pertence à glutonaria." (FIGUEIREDO, Guilherme. Chocolate, vício solitário. In: _____. Comes e bebes. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira/MEC, 1978. p. 124.)


QUEIROZ, Maria José de. A América, a nossa e as outras: 500 anos de ficção e realidade. Rio de Janeiro: Agir, 1992. p. 81.