quinta-feira, 21 de março de 2013

A Jorge Luis Borges, Anouilh e Cortázar



Um livro, todos os livros,
o fogo, todos os fogos
– juízo de livre arbítrio
de um morto, todos os mortos.

No homem, a humanidade,
no vício, todos os vícios,
num dia, toda a vida,
numa hora, a eternidade.

Presente, passado, futuro,
condicional, supino, gerúndio
concentram-se no segundo
de insaciável relógio
que devora tempo, riso, luto.

No som, todos os sons,
do grave ao mais agudo.
Numa voz, todas as vozes
de todos os homens do mundo.

Na boca do faminto,
a fome universal.
Na dor do encerrado,
o sofrimento coletivo.
Na lágrima do infeliz
o pranto que alaga a terra,
salga todo fruto,
confunde árabes e judeus,
comove pecadores e justos.

Na prece medrosa e tímida,
toda a piedade humana:
a virtude do mais humilde
toda a virtude resume.

Na mínima parcela
a grandeza se insinua:
o grão de mostarda anuncia
prodígio de floração futura.

A ofensa ao mais pequeno
fere toda a humanidade.
No homem, todos os homens,
em todos a mesma garra.

Paris, inverno de 1970.

QUEIROZ, Maria José de. Exercício de gravitação. Coimbra: Atlântida, 1972. p. 15-16.

sábado, 9 de março de 2013

Dominadores e dominados

À fala de Marcelo, no Hamleto: "Algo está a apodrecer na Dinamarca", replicaríamos: "Algo apodrece há muito na nossa civilização". Ao indígena, ser à parte, a civilização não o reconhece como seu. Poucas vezes lhe deu esperanças. Muitas, muitíssimas, o desiludiu. Capatazes, bárbaros, cholos ressentidos, rábulas, charlatães, gamonales, juízes venais postam-se entre os representantes da civilização junto dos naturais. Transcorrem séculos, os dominadores se sucedem, mas as injustiças ficam.




QUEIROZ, Maria José de. Do indianismo ao indigenismo nas letras hispano-americanas. Belo Horizonte: Imprensa da UFMG, 1962. p. 136-137.

terça-feira, 26 de fevereiro de 2013

Gula e gulodice

Incluída pela Igreja entre os pecados mortais, a gourmandise desvincula-se do vício para elevar-se, na Fisiologia do gosto, a apanágio do homem (a tradução ao português seria, nesse caso, gulodice e não gula). Para Brillat-Savarin ela se opõe à gula latina: inimiga de todo excesso, caracteriza-se pela preferência, embora apaixonada, por tudo quanto lisonjeie o gosto. Graças a ela, as especiarias atravessam a terra de um a outro pólo, os vinhos e licores são exportados aos cinco continentes. É ela que atribui preço proporcional às coisas que são medíocres, boas ou excelentes, seja porque suas qualidades provem da arte, seja porque a própria natureza assim as criou.





QUEIROZ, Maria José de. A comida e a cozinha: iniciação à arte de comer. Rio de Janeiro: Forense-Universitária, 1988. p. 101.

domingo, 17 de fevereiro de 2013

Toda presença é conflito

Por que a palavra ríspida, a ironia venenosa e a impaciência? Por que o desabafo de desgosto? Que motivo me afasta das pessoas? A abundância de vida, acredito. O tumulto dos sentimentos exteriorizado em signos visíveis e audíveis, nem sempre agradáveis. É a imagem que me comove – o que fica como soma e síntese, fusão final. A face em que se confundem tiques, expressões e hábitos. Só a separação, a distância e a morte nos oferecem a pessoa na sua integridade, no seu retrato total – de corpo e alma. Salva dos desnorteios da razão, das bruscas mudanças de comportamento, ela – a pessoa, aparece-nos finalmente aliada à sua personagem. É a eternidade que comparece no exercício repetido a que a memória nos obriga. A presença, na sua solicitude importuna, na sua riqueza compósita, dispersa e dissipa. Ameaçadoramente subversiva, ela põe em perigo a estabilidade, o equilíbrio. Toda presença é conflito. O físico perturba, confunde, embaraça. Submete-nos a uma constante revisão de conceitos. Se tentamos guardar figura que o represente, saímos logrados: fluida, tremida, indistinta, ela assemelha-se ao vulto da fotografia fora de foco. A ausência, pelo contrário, concentra, reúne, aglutina. E só a morte – ausência definitiva – confere aos monumentos, às estátuas e aos seres humanos as dimensões da imortalidade. Assim entendo o verso de Mallarmé "Tel qu'en lui même enfin l'éternité le change", a propósito de Edgar A. Poe. O apelo à sacralização instaura no nosso íntimo o gosto da perfeição, o capricho na caracterização de cada gesto e de cada palavra, dentro da continuidade do vivido. Do já vivido.

QUEIROZ, Maria José de. Invenção a duas vozes. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1978. p. 106.



sábado, 9 de fevereiro de 2013

Imigração interior

Hannah Arendt comenta que o nome - emigração interior, é, já de si, ambíguo. Óbvio. Porque aquele que emigra, emigra para fora, é o emigrante. O seu antônimo é imigrante. Mas para livrar-se de censura, ou para justificar-se ante as patrulhas ideológicas do após-guerra, convinha adotar o mesmo substantivo - emigrante, e o coletivo correspondente - emigração, com que uma parte dos habitantes - temerários, comunistas ou inconsequentes, passara a ser conhecida. Que fazem os "resistentes"? Juntam aos substantivos o adjetivo "interior". E pronto. Acontece que muita gente  que colaborou ou compactuou com o regime buscou abrigo debaixo desse paradoxo engenhoso.


QUEIROZ, Maria José de. Os males da ausência ou A literatura do exílio. Rio de Janeiro: Topbooks, 1998. p. 595.

sábado, 26 de janeiro de 2013

Chocolate

 

Passam-se os anos. Passam-se os séculos. E o chocolate não perde o seu visgo. "Visgo de agarrar fêmea", diz Guilherme Figueiredo. E continua: "A Inglaterra, graças à colônia da Costa do Ouro, a Alemanha, a Suíça, a França tomaram conta da industrialização do filtro erótico". Informado acerca do perigo que representa para as coronárias, o escritor brasileiro comenta: "Veneno terrível, criador de hábito, vingança do Novo Mundo em revide às mazelas venéreas recebidas do Civilizado Mundo Europeu, mas perigoso do que a coca degenerante e o trabalho cancerígeno, porque nem mesmo pertence hoje à gastronomia: pertence à glutonaria." (FIGUEIREDO, Guilherme. Chocolate, vício solitário. In: _____. Comes e bebes. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira/MEC, 1978. p. 124.)


QUEIROZ, Maria José de. A América, a nossa e as outras: 500 anos de ficção e realidade. Rio de Janeiro: Agir, 1992. p. 81.

domingo, 23 de dezembro de 2012

Rol de signos


Para, olha, medita:
o mundo,
carta de enigmas,
abre aos teus olhos
extenso rol de signos.
No espelho das águas,
Narciso e o mito;
no profundo mar, submerso,
o sonho imperecível de Ícaro;
na penha tenebrosa,
Prometeu acorrentado
à eternidade do delito.

O rosto e a imagem
- perfil ambíguo,
ele e eu, eu e ele, confundidos;
a fuga ao chão,
na vertigem das asas livres,
a envergadura em equilíbrio;
o raio aprisionado
na frágil argila
- risco tosco,
forma indecisa...
assim começa,
e recomeça,
nosso itinerário de equívocos.

A libélula ao redor da luz,
o sapo e a víbora,
a árvore  da ciência,
o canto do pássaro
que cabe, eterno,
no pulsar do sangue,
entre dois versículos da Bíblia,
as cores todas do céu,
o disco de Newton
- do amarelo ao rubro,
dentro do branco de Leonardo,
inicial e receptivo...
Tudo é enigma.
A esfinge hierática,
quimera voraz,
vela à porfia:
mistério denso
nos chama
do fundo as suas pupilas.
Seu sexo, inviolado,
negros perfumes transpira.
Ah, tentação de possuí-la!

Belo Horizonte, outubro, 1978.

QUEIROZ, Maria José de. Para que serve um arco-íris? Belo Horizonte: Imprensa, 1982. p. 13-14.

quarta-feira, 24 de outubro de 2012

Miudezas

Se repito igualzinho igualzinho, nem tem mais graça! O encanto do caso está nessas miudezas que vêm e que vão e que tanto podem enfeitar história triste como história alegre, acontecida deveras ou inventada só - reclamava Itacolomi. Eu, contudo, exigia fidelidade da imaginação à versão original. E não arredava daí a teimosia de ouvinte minuciosa. Queria também que as miudezas aparecessem na hora certa e no lugar conhecido. Quando ele vacilava, eu puxava da sua língua e da memória [...].

QUEIROZ, Maria José. Joaquina, filha do Tiradentes. São Paulo: Marco Zero, 1987. p. 25.

domingo, 14 de outubro de 2012

A dor de pertencer à humanidade

Amargurada, desci à Amazônia com uma frase de Cocteau na cabeça: "J'ai mal d'être homme." Também eu carrego como peso a dor de pertencer à humanidade. Como é que pode haver tanta gente ruim no mundo? Será que pertencemos, todos, ao mesmo gênero humano? Ao fazer essa pergunta a Ostrov, já em convalescença, em casa, ele me respondeu:
- Tenho minhas dúvidas. Não conhecendo a frase de Cocteau, contentava-me em repetir o verso de Neruda - "Sucede que me canso de ser hombre" -, bem próximo, no seu pessimismo, da frase que me citou. Mas não creia que alguém escape da miséria humana. Ninguém é perfeito. A ruindade, os vícios, o crime são nosso patrimônio comum.

QUEIROZ, Maria José de. Vladslav Ostrov, príncipe do Juruena. Rio de Janeiro: Record, 1999. p. 159.

sábado, 6 de outubro de 2012

Das uvas e dos dentes dos filhos

Quando contei à comadre Elvira que os meus escrúpulos de consciência não me deixavam dormir, ela não se admirou. Era pior que eu. Em pecado grave, mortal, não amamentava os filhos. Temia que Deus punisse o inocente para castigá-la. Perguntei-lhe de onde tinha tirado isso. Da Bíblia. Da Bíblia? Pois não está escrito que "Os pais comeram uvas verdes e os dentes dos filhos ficaram embotados"? Fiquei horrorizada. Não sosseguei enquanto não obtive do padre Arduíno uma boa explicação para a sentença bíblica. E corri a participar à comadre que podia amamentar o coitadinho do afilhado sem susto: as uvas verdes nada tinham a ver com o leite materno. Helena, sua irmã, me contou que Elvira tinha mania de pecado.

QUEIROZ, Maria José de. Homem de sete partidas. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1980. p. 65.

sexta-feira, 14 de setembro de 2012

Decálogo que rege o paladar, de Brillat-Savarin

Ei-los:

I - O Universo só existe pela vida e tudo que vive se alimenta.

II - Os animais pastam; o homem come, só o homem de espírito sabe comer.

III - O destino das nações depende do modo pelo qual se alimentam.

IV - Diz-me o que comes e dir-te-ei quem quem és.

V - Ao obrigar o homem a comer para viver, o Criador convida-o a fazê-lo pelo apetite e o recompensa pelo prazer.

VI - A gulodice é o ato do julgamento pelo qual manifestamos nossa preferência pelas coisas que são agradáveis ao gosto em detrimento daquelas que não têm essa qualidade.

VII - O prazer da mesa é de todas as idades, de todas as condições, de todos os demais prazeres e é o último que resta para consolar-nos da sua perda.

VIII - A mesa é o único lugar onde jamais nos entendíamos na primeira hora.

IX - A descoberta de um novo prato faz mais pela felicidade do gênero humano que a descoberta de uma estrela.

X - Os que têm indigestão ou que se embriagam não sabem comer nem beber.

===
QUEIROZ, Maria José de. A comida e a cozinha: iniciação à arte de comer. Rio de Janeiro: Forense, 1988. p. 107-108.

domingo, 9 de setembro de 2012

As amazonas

As amazonas - Carybé, Hector Julio Páride Bernabó (1969)
Francisco de Orellana, o primeiro a cruzar o "rio-mar" em 1542, vinculou-lhe o nome à lenda das mulheres guerreiras, estranhas habitantes das margens do rio Caimé, ao sul do Solimões, entre o Ucaiale e o Madeira. O encontro do conquistador com uma tribo indígena, armada de arcos e flechas, os cabelos longos ao vento, tornou-se objeto de repetidas reelaborações míticas. À vista do grupo aguerrido, figurou-he a memória um antigo quadro, de longíqua fixação no imaginário europeu: o das fabulosas amazonas das margens do Termodonte, na Capadócia. Em resposta ao inesperado lapso da fantasia, o bravo espanhol não teve dúvida: atribuiu nova morada às guerreiras que respondiam, na Antiguidade, pelos nomes de Pentesilea, Antíope, Valestris, Tomiris... (...)

O mito das amazonas divulgou-se em numerosas crônicas de viagem. O rio, inicialmente cognominado Orellana, acabou por denominar-se rio das Amazonas, prova evidente e efetiva do crétidito atribuído à lenda. O próprio Humboldt, inteiramente consagrado à ciência e zeloso, sempre, da verdade, esquivou-se a negá-la: preferiu explicar que não se destituía de funamento a tradição veiculadas pelos primeiros conquistadores. 

QUEIROZ, Maria José de. A América: a nossa e as outras. 500 anos de ficção e realidade. 1492-1992. Rio de Janeiro: Agir, 1992. p. 139.

domingo, 2 de setembro de 2012

Vila Rica, vila pobre

A Eduardo Frieiro

Vila Rica, vila pobre,
gente rica, gente pobre,
pobre gente!
Os cavalos de Filipe entram na história:
a galope.

Vila Rica, vila pobre,
gente rica, gente pobre,
pobre gente!
Corda ao pescoço, traje infame,
Tiradentes sofre injúria,
vira estátua, vira selo,
crescem-lhe barbas, cabelo.
Enquanto se arrasta o processo,
a liberdade tardia
– sonho inútil, utopia –,
vira forca, devassa, degredo.

Vila Rica, vila pobre,
gente rica, gente pobre,
pobre gente!
Rimas pobres, rimas ricas,
bela Marília menina,
noiva mineira esquecida,
rico enxoval sem destino.

Rimas pobres, rimas ricas,
Bárbara do mau caminho,
estrela do norte perdida,
no desnorteio do afeto,
na razão em desvario.

Rimas pobres, rimas ricas,
Cláudio inventa suicídio
para desculpa de assassinos.

Vila Rica, vila pobre,
gente rica, gente pobre,
pobre gente!
O braço se abre em cinzel,
alonga-se em gesto preciso
de mão sábia, dedo em riste.
No alto do Matosinhos,
longe da Vila Rica,
braços e mãos em festa
compensam falha divina:
nosso manco genial
acusa e vaticina.
No aceno dos profetas,
a sua maior conquista.

Vila Rica, vila pobre,
gente rica, gente pobre,
pobre gente!
No silêncio da capela,
música esquecida.
Nos ouvidos surdos,
ferro e hematita.
Que voz estrangeira nos cante
a nossa melhor missa:
Joaquim Emerico Lobo de Mesquita.

Vila Rica, vila pobre,
gente rica, gente pobre,
pobre gente!

Paris, fevereiro de 1971.

QUEIROZ, Maria José de.  Vila Rica, vila pobre. In: ______. Como me contaram... fábulas historiais. Belo Horizonte: Imprensa/Publicações, 1973. p. 47-51.




Ribeirão do Carmo, 1696 - Ouro Preto, 1698

Se qualquer destino se inventa, ou se constrói, na indivisível duração do segundo, convençamo-nos: o Coronel Salvador Fernandes Furtado de Mendonça e Miguel Garcia da Cunha endossaram essa velha crença já autorizada pelas biografias ilustres (e nem por isso mais conhecidas) de Alexandre e Aníbal. Ao compreender que o mundo começava ali no Mato Dentro, não recuaram. Diante do quase infinito horizonte vincularam a biografia à história do sertão, esquecendo dissidências e conflitos.
Passar do sonho à realidade, prever o imprevisível, não é fácil. Contudo, o Coronel chamou a si o encargo: arrancou-se do êxtase e deu o sinal de marcha. Assumindo a própria vida, tranformou em prólogo a desilusão da Itaperava exausta. Do alto do Tripuí fitou o mundo, e dele tomou posse. Foi num domingo, 16 de julho de 1969, festa da Virgem.
Diogo de Vasconcelos, na História Antigas das Minas Gerais, I, VIII, ratifica essa versão. E acrescenta: "Os companheiros, ergendo então os machados, fizeram retumbar o côncavo das florestas aos golpes da posse, e desceram para as fraldas da serra, de onde começaram a ouvir o estrépido soturno das águas. " Ao longo da praia do Ribeirão do Carmo enfileiraram as primeiras cabanas espalharam as primeiras bateias. Os granitos saltaram. Cor de aço. Esquecidos de que o céu ordena as coisas e a terra as padece exultaram felizes. Recriaram, nos corações, o mais gratos dos mitos. Para aboná-lo, recorreram a Artur de Sá, responsável pelas ordens régias e pelas minas. Os dentes trincaram o metal. Um nome encheu-lhe a boca: ouro! Em Taubaté o eco repetiu: ouro, ouro. Veio o edito.
A história refere que ao retumbar o estrondo do descobrimento a corrida começou nas vereias do Embaú. E também as derrotas e descaminhos. Até que numa manhã fria de junho, sob a invocação de São João Batista, o santo do dia, a mesma palavra, mil vezes repetida, despertou a terra no grio, Ouro Preto! Foi nessa madrugada que as nossas inquietudes geralistas tiveram nascimento. As Minas Gerais viraram geografia: o Itacolomi, à distância, anunciava a Vila Rica.

QUEIROZ, Maria José de.  Ribeirão do Carmos, 1669 - Ouro Preto, 1698. In: ______. Como me contaram... fábulas historiais. Belo Horizonte: Imprensa/Publicações, 1973. p. 25-28.

terça-feira, 21 de agosto de 2012

América, em oração, de Pablo Neruda

Há uma América a nossa espera: a nossa América. A cada um de nós ela se revelará distintamente. E a muitos aparecerá como a Pablo Neruda, em forma de oração:

"AMÉRICA, no invoco tu nombre en vano.
Cuando sujeto al corazón la espada,
cuando aguanto en el alma la gotera,
cuando por las ventanas
un nuevo día tuyo me penetra,
soy y estoy en la luz que me produce,
vivo en la sombra que me determina,
duermo y despierto en tu esencial aurora
dulce com las uvas, y terrible,
conductor del azúcar y el castigo,
empapado en esperma de tu especie,
amamantado en sangre de tu herencia".

QUEIROZ, Maria José de. Presença da literatura hispano-americana. Belo Horizonte: Imprensa/Publicações, 1971. p. 23.


sábado, 18 de agosto de 2012

Os sentidos e as emoções

Os sentidos, não há dúvida, despertam emoções: um perfume traz à lembrança toda a circunstância em que foi sentido pela primeira vez. Essa emoção, entretanto, caracteriza a reação presente e não se pode dizer que seja a original. O tempo interior impede a repetição do mesmo estado. Embora presente, é apenas a representação de um estado interior. Deux éditions d'un même état de conscience sont deux événements distincts, enfermés chacun dans sa peau; l'etat de conscience d'hier est mort et enterré: la présence de l'etat de conscience d'aujord'hui ne le fera pas ressusciter. (Wiliam James) O ato deleitoso não acontece outra vez. Assim como o segundo copo de água nunca é idêntico ao primeiro, a sensação buscada pela segunda vez tem amplitude e significado diversos dos que se obteve de início. Só a música contraria a irreversibilidade. Pela sua capacidade de retorno, surge como uma espécie de modelo alto e inalcançável - fluindo no tempo - da reversão das categorias do tempo.

QUEIROZ, Maria José de. A poesia de Juana de Ibarbourou. Belo Horizonte: Imprensa da UFMG, 1961. p. 169.  

sábado, 4 de agosto de 2012

Carne e sentidos


A grande revolução da culinária da segunda metade do século XVII considera o homem - "feito de carne e de sentidos"- como alvo de suas criações. A cozinha favorece respostas naturais aos estímulos, liberando-o do narcisismo estéril. Fechado em si mesmo, de que vive ele? Que respira? Que vê? Que apalpa? Que ouve? À mesa, rompe-se o isolamento: o homem comunica-se com o mundo que vem até ele sob forma de comida. O distante se torna próximo e o que era objeto se assimila ao sujeito, mercê do dom da "mastigação".


QUEIROZ, Maria José de. A comida e a cozinha: iniciação à arte de comer. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 1988. p. 54.  

terça-feira, 24 de julho de 2012

Na prisão com Paulo e Silas

Na prisão de Filipos, segundo os Atos - 16, 23-40, Paulo e Silas foram lançados numa cela obscura e malcheirosa, situada sobre a acrópole. Os prisioneiros, com os pés cerrados em sólido bloco de madeira, o pescoço e as mãos algemadas, encadeados a um gancho encravado no muro, mal se moviam. Ainda feridos, e em sangue, Silas e Paulo ouviam, sentados, o confuso e monótono rumor dos demais condenados: blasfêmias, pranto, gritos e arrastar de grilhões.

Um fato insólito, sucedido durante sua permanência na prisão filipense, merece do apóstolo narração cuidadosa.  No meio da noite, depois da rendição da sentinela, irrompe, tímido, conhecido cântico cristão. Denso e triste, aos poucos se avoluma. E em crescendo, jubiloso, explode. O autor dos Atos esclarece que "segundo a disciplina eclesiástica do 3o. século, os antidos cristãos tinham o hábito de levantar-se à noite para rezar. E a razão profunda de tal procedimento arranca da tradição, transmitida de pai a filho - 'À meia-noite, levanta-se, lava tuas mãos e ora! 'É que, nessa hora, a criação inteira fica imóvel para louvar o Senhor; as estrelas e as árvores, os rios e os anjos e as almas dos justos, todos cantam louvores ao Senhor'. A Silas e Paulo parecia inaudito se convertesse em cântico harmonioso o coro do ódio e rancor entoado à luz do dia. E enquanto se admiravam da súbita mudança, um milagre inesperado põe fim à música: um forte tremor, de terra abre as portas das  celas, faz cair dos muros algemas e cadeias. Paulo e Silas nele vêem a mão de Deus. Não se valem, contudo, da sua clemência. E impõem ordem no presídio. Nenhum dos prisioneiros procura fugir. Voltam todos, segundo o Codex Bezae, às celas escuras. Com duas exceções: Silas e Paulo. Aos quais se permitiu caminhar livremente até o pátio. O carcereiro neles reconhecera os mensageiros de um deus superior e poderoso e autores, prováveis, do tremor de terra.

QUEIROZ, Maria José de. A literatura encarcerada. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1981. p. 25. 

sexta-feira, 1 de junho de 2012

Amor

 Cantabile

Com a boca escreves poemas
e com a voz os ensoas.

Letra por letra soletras
a tua coita de amor.

Guaiado te proclamas
nos suspiros prolongados,
nas sílabas lhanas.



E tatibitate repetes,
os lábios colados à pele,
a tua cantiga de amor.

Os versos crescem,
encadeiam-se,
e em estrofes se alargam.

Aos dedos, o ofício
de espertar as cordas
sensíveis ao dedilhado.

Música e letra se unem
para elevar ao amor
hino de carne e palavra.

Rimas em colcheias,
aféreses em quiálteras,
tudo transportas à escala.

Compasso por compasso
inventas canção de amor
no mais raro teclado.
Em sustenido maior
vivemos noite larga:
invenções a duas vozes,
fuga e contraponto,
acordes temperados.

À primeira luz do dia
dissipam-se no ar
seus últimos harmônicos
- cadência plagal,
exata.

De tua boca evolo,
volátil:
sou poema
cantabile.

QUEIROZ, Maria José de. Resgate do real: amor e morte. Coimbra: Coimbra Editora, 1978. p. 25.

domingo, 29 de abril de 2012

Deus e os cavalos

            Para José Ernesto Ballstaedt

“... e después de Dios, debemos la victoria a los caballos”
(Bernal Díaz del Castillo)

A história da América
nas patas dos cavalos.
Deus e os cavalos.
No México de Montezuma e de Guauhtemoc,
no Peru de Huáscar e Atahualpa,
no Chile de Colocolo, Caupoliclan e de Lautaro.
Destros e firmes ginetes,
fortes e ágeis centauros;
Córtez, Quesada, Valdivia,
Alderete, Almagro, Pizarro.
Vontade de poder, pulso e rédeas,
gana de conquista, “cierra España” e Santiago.
Mais, astecas e aimarás,
chibchas, miscas e incas,
impérios de alto prestígio,
Minas de ouro e de prata,
as sete cidades de Cibola,
o mítico El Dorado,
a fonte de Juvência,
as amazonas indomáveis
renderam-se aos cascos sonoros
do conquistador conquistado.

Depois de Deus, os cavalos.
Nas suas patas, dez mil anos de história:
o círculo do universo, a bússola,
a imprensa, a Bíblia, a Reforma.
Dos olivais de Sevilha aos campos de Granada,
dos montes de Aragão e Castela, seca e árida,
fidalgos de armas ilustres,
filhos de humildes casas,
heróis e aventureiros, cristãos iluminados
vincaram no chão da América o seio da Conquista
de timbre ibérico, celta e árabe:
cravos e ferraduras, em quatro golpes gravados.
O capitão Cortés no seu cavalo zaino,
Pedro de Alvarado na metade de uma égua,
tomada a Lopes de Ayala.
Hernández Puertocarrero numa russa ligeira
E Velásquez de León na sua Rabona agitada.
Cristobal de Olid num castanho escuro de raça
e Francisco de Montejo num alazão tostado.
Juan Sedeño, o rico, na égua castanha
(que deu cria na viagem).
Ortiz, o músico, no Arrieiro, um dos melhores da armada.
Esses e outros cavalos, de “ancas reluzentes e cascos musicais”,
galopam com Bernal Díaz, da província de Yucatán
às fronteiras da Nova Espanha, na Relação verdadeira
Dos feitos e façanhas dos soldados de Cortés
Em terras ignoradas.
Villano, Zainillo e Salnillas sustentaram a Pizarro,
Gonçalo de nome, irmão de Francisco – Marques de Atavillos,
nos seus mais rudes combates.
O seu lugar-tenente, o “Demônio dos Andes”, o famoso Carvajal,
Em Sacsahuaman, com Boscanillo, perdeu sua última batalha.
No celebrado Matamoros, o capitão Palomino
cruzou primeiro o Peru
e chegou logo a Granada
(a Granada do Novo Mundo que  muitos chamam Nova Granada).

Ao adelantado De Soto, uma das melhores lanças
que às terras do Norte passaram,
Acompanhou El Aceituno
na Expedição da Flórida.
Hipogrifos desnastrados,
os cavalos andaluzes
chegaram com Juan Díaz
a Palermo e a Buenos Aires.
Na noite imóvel, decifrada por Anaxágoras,
o conquistador fez-se gaúcho;
povoou o pampa de machos.
Matou índios, carneou rezes,
morreu de sua morte
quando a cidade lhe arrebatou o deserto,
opondo a civilização à barbárie
Cow-boy, gaúcho, llanero,
vaqueiro, peão, tropeiro
perseguem no tempo unânime
as léguas fatigadas
de centauros sublimados,
firmes nas quatro patas.
Depois de Deus, os cavalos.


sábado, 7 de abril de 2012

Projeto: Romance Histórico



Projeto: Romance Histórico - Minas Gerais: Joaquina, filha do Tiradentes.

Direção: Lesle Nascimento
Produção: Lyslei Nascimento
Arte, Fotografia: Lesle Nascimento
Roteiro: Lyslei Nascimento
Câmeras: Lesle Nascimento & Márcia Nascimento
Edição e pós-produção: Lesle Nascimento
Trilha: "Gymnopedie", de Erik Satie, por Kevin MacLeod
Agradecimento: Sra. Regina Bilac Pinto

Rio de Janeiro, março 2012.

segunda-feira, 12 de março de 2012

A serviço do verbo















Estranha fascinação, a da palavra!
Milagre cotidiano ao qual rendo,
extasiada,
devoto preito
de vestal.
Admiro-lhe forma,
cor e sonoridade.
Ao seu prestígio atenta,
esqueço vida, amor, mundo.
Para servi-la, humilde e cauta,
desperto, todas as manhãs,
inquietudes indormidas,
penteio cérebro e ideias
à procura do verbo
que me certifica
da humana existência,
de paisagens improváveis,
e coisas presumíveis.
Atrás do conceito cabal,
fugidio e esquivo,
apalpo a prova exata,
definitiva,
razão de todo empenho
em que me perco, alienada.
Dias, anos, sangue e espírito,
tudo dissipo
em contastante fuga,
distraída.

Transfiro à frase escrita
emoção e sentido:
outros os emprestam
aos guisos de tenra idade,
aos risos da adolescência,
aos anseios amorosos
de três e mais estações.

Minha herança, por páginas semeada,
floresce enquanto padeço
pena e angústias de criação.
Depois, feito o silêncio,
em doido transe me interrogo:
que restará da página plena
e do viver inconcluso.
Mas ante o vazio do branco puro
ao sonho volto,
fugo em quimeras,
alheia ao mundo,
imatura.

Essa, a vida que me dei - reflexo e imagem.
Perdi-me em signos, inventei-me.
Agora me reencontro:
no espelho, e no fim deste verso, maduro.

Paris, primavera de 1970.

QUEIROZ, Maria José de. Exercício de gravitação.Coimbra: Atlântida, 1972. p. 70-72.

domingo, 26 de fevereiro de 2012

Minas além do som, Minas Gerais

A Carlos Drummond de Andrade

Todos os caminhos do mundo se abriram em veredas,
veredas de sertão mineiro, severo, agreste.
Todos os muros se fizeram montanhas,
montanhas de Minas, graves, austeras.
Corri países, mudei constelações
de vário brilho e diferente estrela.
Descobri parentes vascos e belgas,
duas tias em Lião.
- Outra fala, outra costela,
distinto sangre, nova pele.
Primos de todos os graus,
dos quatro cantos da terra,
completaram a família
em Cocais e Cláudio começada
e hoje, longe, tão  longe dos gerais
ganha continentes, espalha-se sobre o mapa,
em roda larga, completa.
Mas no fim de cada estrada
Minas me espera, de alcatéia.
Na esquina de mim mesma
entre calle street strasse e boulevard,
no agudo da incerteza,
da angústia, do desassossego,
Minas me diz: presente!
Olhos fechados, livre de todo medo,
os músculos me ensinam
montanha, ferro e aço:
regresso às minhas veredas.
No sertão alucinado
a paz se restabelece.
Minas existe.
Vivo de sua herança: ilesa.

Paris, dezembro de 1971.

QUEIROZ, Maria José de. Como me contaram... fábulas historiais. Belo Horizonte: Imprensa/Publicações, 1973. p. 221-224.

Minas Gerais, "estado d'alma"










Para Manuel Bandeira

Minas soluça em todos os nossos remorsos.
Em cada abstinência, sacrifício,
em cada continência, frustração.
Entre os grandes, amordaçar-se,
entre os pequenos, calar-se;
presença quase ausência,
nenhum desejo de ser notado.
Os olhos baixos, o riso raro,
a modéstia escondida
na voz tímida, no gesto tardo.
O mineiro se exime de escândalo
para condenar-se ao hábito.
Na alma, o maior dos pecados:
a vaidade de não ter vaidade.
Sobriedade no vestido,
mesa frugal, alguma carne;
feijão, angu e couve,
pouco açúcar, queijo, café ralo.
Nos pés calçados de ferro,
o peso da gravidade.
Longe de Minas o luxo, o mar, o alarde.
Metade da vida se perde
no silêncio prolongado,
na saudade das grandes águas,
na nostalgia de longos praias.
Na montanha elevada,
a nossa maior audácia:
o olhar arrebatado
inventa façanha e obstáculo.
No sonho de liberdade tardia,
a Utopia malograda;
na cisma do cigarro de palha,
metafísica de fumaça;
no latim e na gramática,
a rêmora do Caraça;
na linguagem monossilábica,
retórica de estilo ático;
no culto da família, tradição e propriedade,
ronha de sacristia,
muita traça.
No sertão bravo e zona da mata,
a filosofia do asfalto:
Arinos e Riobaldo.
a verdade verdadeira é que Minas soluça
em todos os nossos remorsos;
os gerais justificam
a nossa lentidão e cansaço:
Minas Gerais, "estado d'alma".

Belo Horizonte, dezembro de 1971.

QUEIROZ, Maria José de. Como me contaram... fábulas historiais. Belo Horizonte: Imprensa/Publicações, 1973. p. 14-16.

quinta-feira, 5 de janeiro de 2012

Rayuela, de Julio Cortázar

Rayuela (1963), de Julio Cortázar, obra-prima da "nova" literatura hispano-americana (que hoje se deu de chamar "latino-americana"), também foca a vida num manicômio. O interesse da intriga concentra-se em algumas personagens cuja permanência numa clínica para doentes mentais pouco tem a ver com a demência. Horacio Oliveira, um dos protagonistas, pode vislumbrar, da janela do seu quarto, os riscos do jogo da amarelinha no pátio do hospital. Uma noite, assiste dali do seu posto à tentativa malograda de Talita, de fazer passar a pedra do jogo ao número 8. Ela falha, e é nesse instante que ele descobre tê-la confundido com Maga, sua amante. Jogo do amor? Jogo da amarelinha? Iluminação súbita?

QUEIROZ, Maria José de. A literatura alucinada: do êxtase das drogas à vertigem da loucura. Rio de Janeiro: Atheneu Cultura, 1990, 139-140.

terça-feira, 3 de janeiro de 2012

1789-1790

Que sílabas latinas ressoassem em terras incultas e que a aplicação aos estudos significasse apenasmente amor desinteressado à ciência e ao saber parecia coisa absurda aos olhos e ouvidos dos promotores da Devassa da Inconfidência Mineira. Não nos compete, no entanto, desentender-lhes os argumentos. A história já os deu por entendidos. Vamos além.

Das inúmeráveis doutrinas registradas no Século XVIII avulta em importância, e em prestígio, a Ilustração. E Luís Vieira da Silva, como tantos outros inconfientes, não só a conhecia como a professava no silêncio da sua biblioteca frequentada pelo diabo,* inspirador da Enciclopédia e do racionalismo.

Se é verdade que raramente se sabe, ao certo, aquilo em que se crê, a ninguém, mais que ao Cônego suspeito de sublevação, se deveria aplicar  o aforismo. Ilustrado, nutrido de boa ciência, bem informado, muito natural que Voltaire, grande agitador de ideias, e o abade Mably, utopista, lhe ensinassem política e rebeldia. Contudo, a sua memória, espelho de  noites e dias de leitura, pouco o ajudou durante o interrogatório da Ilha das Cobras. Não lhe lembrava se entre as pessoas da sua amizade jamais se tivesse falado sobre a matéria do levante nem que dele lhe tivessem dado qualquer notícia.

Todo o seu passado de dedicação à Igreja, pois era sacerdote exato e de firme crença católica, bem como o prolongado empenho no saber, de nada lhe valeram. O seu primeiro sentimento, os autores o comprovam, foi o de eximir-se de toda culpa, declarando-se alheio à conspirata infame. Depois, instado uma e mais vezes para que confessasse a verdade, à qual tinha faltado, respondeu,"cuidando só dos seus deveres, tratando como mais importante do bem espiritual sem se embaraçar com o corpo, (...) dizer tudo o que sabe, cumprindo com isso as obrigações de fiel vassalo que Sua Majestade tome as providências que for servido."**

Essas coisas aconteceram em 1789 e 1790.

Antes que chegasse ao seu fim, o Cônego Luís Vieira da Silva se viu privado da sua livraria, todos os seus bens confiscados pelo Governo. Só não lhe confiscaram a erudição, penosamente adquirida. Confiscou-a a morte, impiedosa. Não se procedeu, então, a devassa nem se lavrou auto de sequestro.

* Leia-se, de Eduardo Frieiro, O diabo na livraria do Cônego. (Belo Horizonte, Editora Itatiaia Ltda., 1957). O autor avalia, à vista do catálogo dos livros confiscados, o apetite de cultura do inconfidente que o malogro da conspiração frustrou para sempre.
** Cf. Autos de Devassa da Inconfidência Mineira, p. 299.

QUEIROZ, Maria José de. Como me contaram: fábulas historiais. Belo Horizonte: Imprensa/Publicações, 1973. p. 69-73.



quinta-feira, 29 de dezembro de 2011

Ano novo, vida nova

Talvez comece aí a minha novela. Não me tenta, contudo, a ficção oclusa, cerrada em si mesma: o vivido camuflado pelo escrito. Não submeteria a minha personagem, ainda que autobiográfica, à contingência de uma existência puramente fictícia, alheia ao presente e às suas vicissitudes. Gostaria de inserir-lhe a vida numa intriga jamais inaugurada, jamais concluída. Sem princípio nem fim. De modo a fazê-la participar da essência mesma do tempo. Contínua e sempre continuada. Será isso possível? Ficção sem fixação. Para reencontrar, realmente, os sentimentos e as emoções experimentadas.

QUEIROZ, Maria José de. Ano novo, vida nova. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1978, p. 30.

domingo, 6 de novembro de 2011

Todos os males da alma

Não há como negar: os trágicos gregos diagnosticaram todos os males da alma. A Shakespeare, Dostoievski, Flaubert e Zola caberia, andando o tempo, atualizar os sintomas de algumas das suas patologias e vincar o caráter mórbido dos seus desvios. Quando Freud chegou, só teve, mesmo, o embaraço da escolha. A primeira anamnese, a mais extensa, de nossas paixões como de nossos vícios e, também, de nossas virtudes, já estava feita. À ciência competia a comprovação, o estudo de casos, a identificação de édipos e eletras, hamlets, macbeths e karamazovs na conduta psicopatológica dos burgueses do nosso século, assegurada a validade científica da identificação. Tudo se passa como se o psicanalista ouvisse do cliente a mais perfeita auto-análise de um caso clínico. E o que é excepcional, nos termos próprios e sem atentados à língua. A literatura põe à disposição o que poucos pacientes estão habilitados a fazer: o mergulho no inconsciente. Com os olhos abertos, sem traumas, sem megalomanias e sem delírios. Tal requinte descritivo dificilmente ocorreria ao analista, muito mais atento ao "fenômeno", e a tudo que aproxime o sujeito da patologia, do que à sua essencial individualidade (inerente à criação literária). Que resta à ciência? A responsabilidade de uma nomenclatura adequada e o endosso idôneo de um especialista, apto a divulgá-la.

QUEIROZ, Maria José de. Amor cruel, amor vingador. Rio de Janeiro: Record, 1996, p. 11-12.

sábado, 30 de julho de 2011

A pobreza: João Antônio, a fotografia

Salvo melhor juízo, difícil será apontar um autor contemporâneo, de prosa requintada, se bem que popular, que melhor se alinhe neste acervo da pobreza que João Antônio, o autor do clássico Malagueta, perus e bacanaço. Não podemos aproximar-nos do cotidiano de ternura, aspereza e sofrimento das suas personagens sem um descortino da literatura proletária - escrita por operários, e da literatura popular - de autores cultos. Porque tudo está aí, nesse clássico. Todos os percalços e todas as conquistas do gênero, que se mimetiza com o meio, que sorve e absorve o ambiente para transmiti-lo no sentimento, nas emoções, nos gestos e o boleio das frases num tom tão afinado que torna o autor parente, senão pai, do mendigo, da prostituta, do jogador de sinuca, do malandro, do ladrão, do meninão do caixote.

QUEIROZ, Maria José de. Em nome da pobreza. Rio de Janeiro: Topbooks, 2006. p. 191.

sábado, 25 de junho de 2011

Os males do exílio: um inventário, por Lyslei Nascimento

Uma página fundamental da história do exílio no Ocidente é Os males da ausência ou A literatura do exílio de Maria José de Queiroz. O olhar sensível da escritora fazem um inventário dos males da ausência e rastreiam, nas obras dos expatriados, a “síndrome do desterro”: o sofrimento e a dor do exílio.

Dedicado aos brasileiros exilados – de ontem e de sempre –, o ensaio parte do mais remoto exílio de que se tem notícia – o do egípcio Sinuhe (cerca de 2000 a . C.) até o arquivo de Herman Görgen, “o amigo do Brasil”. Dante, Camões, Leão Hebreu, além de Defoe e Victor Hugo, só para citar alguns, são autores estudados pela ensaísta que se envereda também pelo destino dos jesuítas desterrados, pela reescrita irônica da correspondência de Voltaire, pelas ilhas de Rosseau, pelo passado reinventado de Nabokov e pela narrativa angustiante do exílio e morte de Walter Benjamin: a primeira verdadeira perda que Hitler impôs à literatura alemã.

O leitor – aquele que deverá acompanhar a ensaísta por esse mapa de infâmia – não pode perder de vista a nostalgia e as privações em terra alheia de que dá notícia a palavra no exílio. Além de ser agraciado com uma narrativa que aponta, não só para o mal, o leitor perceberá as saídas dos escritores na contingência do desterro. Esse tom do ensaio – entre os males da ausência e as estratégias de sobrevivência – aponta para questões cruciais pra o estudo da literatura do exílio: o sentimento patriótico, as tradições e as culturas que se entrecruzam e a dependência à língua.

Os capítulos dedicados ao exílio e ao êxodo bíblicos são primorosos. Neles, Maria José reflete sobre a fundação da primeira cidade pelo desterrado Caim; a configuração mítica de Jerusalém e o exílio na Babilônia. A diáspora do povo judeu até a bíblica Sefarad (Hispânia) e os anos de ouro do convívio pacífico entre judeus e muçulmanos são apontados pela escritora como fatores determinantes do progresso da literatura, da arte e da ciência.

No capítulo “Amargo ar do exílio – vinho envenenado”, o leitor acompanhará as narrativas dos escritores russos emigrados como Nabokov, Brecht e Nina Berberova. Em “A outra Alemanha”, Maria José desfia as malhas do poder que determinam o degredo e o sentimento de alijamento da “terra ancestral” e da língua.

Algumas frases dos escritores do exílio, citadas pela escritora, iluminam o ensaio, como por exemplo a reflexão sobre a pátria de Séneca: “O mundo inteiro é nossa pátria para que o nosso valor se prove com amplidão”; o pensamento de Hannah Arendt “A língua materna é a única coisa que se pode levar consigo quando se deixa a velha pátria” e a sentença de Peter Weiss: “Aquele que emigra uma vez será sempre emigrante”.

O ensaio é acompanhado por dois cadernos iconográficos, cerca de quarenta reproduções fotográficas, que trazem para o leitor a imagem de alguns dos escritores analisados. Destacam-se, célebres, a especialíssima fotografia da expulsão de Soljenitsine da Rússia e a de Bertold Brecht e Oskar M. Graf numa cervejaria. Também acompanha Os males da ausência ou A literatura do exílio uma extensa bibliografia, cerca de 800 títulos, que constitui uma valiosa contribuição para estudiosos e pesquisadores que se têm debruçado sobre a história dos intelectuais.

A escrita do exílio examinada pela escritora configura-se, assim, como um vasto painel do pensamento humano que aflora das páginas do ensaio em sua beleza e pertinência. Nesses tempos em que a luta contra os poderes arbitrários se faz tão necessária, instiga-nos, no livro de Maria José de Queiroz, o olhar lúcido do intelectual brasileiro para a produção cultural do Ocidente e suas reverberações na instância das relações entre o homem, a escrita e os seus algozes.

QUEIROZ, Maria José de. Os males da ausência ou a literatura do exílio. Rio de Janeiro: Topbooks, 1998, 714p.

A América, essa nebulosa, por Lyslei Nascimento

A América é, de modo muito significativo, o mundo ao qual se arrebatou o nome. Essa epígrafe de Arturo Uslar Pietri introduz os instigantes ensaios de Maria José de Queiroz em A América sem nome. Na série de ensaios que compõem o livro, a escritora retoma algumas reflexões teóricas iniciadas em A América: a nossa e as outras, 1992. Esses ensaios intentam localizar a América Latina no contexto mundial contemporâneo, explorar algumas manifestações culturais como o tango argentino e a poesia antilhana, compor os perfis dos escritores César Vallejo e Pablo Neruda e dar uma visão literária de Perón e do peronismo.

No ensaio intitulado “A América Latina no mundo moderno”, Queiroz focaliza o ponto de vista dos americanos do Norte para a qual, segundo a autora, a América do Sul, não passa de uma unidade nebulosa “sacudida por tormentas políticas, varrida pelos ventos da discórdia civil e militar” e composta por países exóticos cujas cidades - Rio de Janeiro ou Buenos Aires - são apontadas como “capitais de qualquer um dos países desse aglomerado de republiquetas sem história e sem tradição”.

Outra preocupação da ensaísta é o nacionalismo que se apresenta com um duplo corte: o que reduz a pátria às fronteiras do mundo conhecido e que reduz o conceito de nação à terra cultivada, a paisagem rural ou urbana onde se planta a casa, o lar; e, por outro lado, “o nacionalismo às avessas que valoriza o que vem de fora em detrimento daquilo que existe, que se produz e que se realiza dentro das fronteiras”.

No ensaio “A Literatura hispano-americana - essa desconhecida”, a escritora, aborda a dificuldade de se referir a América, diante da diversidade e do fragmentarismo, mas aponta para uma possibilidade de equilíbrio ao refletir sobre uma “consciência integradora” que não exclui a herança ocidental, mas que a assimila e a absorve na sua modalidade atlântica. Por essa via, Maria José de Queiroz refere-se a alguns exemplos da intrusão americana na literatura européia. Como, por exemplo, o judeu sefardita Leão Hebreu, o mexicano Juan Ruíz de Alarcon e Jorge Luis Borges.

Em “O homem macho e a hombría: variações em torno do machismo”, a escritora parte da distinção entre “exercício de bravura” e o “machismo exibicionista”. De acordo com a autora, a o culto da hombría, da virilidade agressiva aparece, geralmente, nas sociedades em formação e que os principais herdeiros do patrimônio violento, sagaz e mítico são, entre outros, os vaqueiros, os cowboys, os tropeiros, gaúchos. Nesse ensaio, Maria José de Queiroz estuda a interessante figura do Don Juan e a incerta certidão de virilidade conferida por sua vasta biografia amorosa. Segundo a autora, a fome de amor e a insatisfação exibem no caráter do “burlador de Sevilha” sua falência enquanto “homem viril e inteiro”.

QUEIROZ, Maria José de. A América sem nome. Rio de Janeiro: Agir, 1997, 197p.

sábado, 11 de junho de 2011

Amore


















Minhas mãos anoiteceram
na negra prisão dos teus cabelos.

No teu olhar sombrio
repousei alacridades claras
da luz fatigante do dia.

Fez-se noite,
Noite escura, densa,
de noturno apassionato,
con brio.

Rendida ao seu sortilégio,
entre sombra e penumbra,
abriguei pudores,
disfarcei deliquios.

Nos teus ombros firmes
busquei asas,
precipitei-me contigo.

À margem dos teus nervos
ouvi derivarem rios.

Nos teus músculos tensos
peixes e cardumes
fugiam ao meu abraço
e na fugida me levavam,
rápidos, umentes, frios.

No coleio das águas envolvida,
ficava e repartia.
Ao apelo da ribeira,
ora dilatava,
ora corria.

De surpresa em surpresa empolgada
diante de mim tuas constelações se abriram:
recitei tuas estrelas,
de caricioso pastoreio,
enquanto nos teus olhos esplendia
céu de azul profundo - maravilha!
noturno apassionato, con brio.

QUEIROZ, Maria José de. Resgate do real: amor e morte. Coimbra: Coimbra, 1978. p. 35.

A herança de Caim


O doce Abel
Caim, o mau.
A inocência lastimada,
a violência impune
murmuram nos nossos ouvidos
melopéia inquietante
de fatigado estribilho.
O seu eco nos atormenta
com triste acento
e renovado luto.
A morte de Abel
- crime sem vingança,
sangra nas nossas mãos:
o seu corpo, insepulto,
povoa o vazio obscuro
onde a dor é castigo.
Nas suas pálpebras lentas
a noite flui
como um pássaro fúnebre
em nebuloso aprendizado
de guerra e discórdia.
Nas nossas trevas,
um imóvel esplendor:
a herança de Caim multiplicada.

QUEIROZ, Maria José de. Resgate do real: amor e morte. Coimbra: Coimbra, 1978. p. 41. 

Os animais pastam, o homem come; apenas o homem de espírito sabe comer


E quem sabe comer é gastrônomo. A dignidade da gastronomia apoia-se não só numa forte estrutura econômica, que lhe confere peso, medida e cifra, como se exalta, igualmente, no refinamento da mais imediata das funções fisiológicas. Assim, a alegria de sentar-se a mesa para responder a uma das leis da sobrevivência deve antecipar-se na leitura do cardápio, expandir-se na discussão das iguarias, concretizar-se na degustação e prolongar-se em gesto e palavra de louvor à sua forma, feitio, cor e apresentação. O conviva celebra no silencioso e recolhido ato de saborear a comida o talento do artista criador. Pouco importa o caráter efêmero da obra criada: a receita é partitura que se repete e volta a deliciar indefinidamente.

QUEIROZ, Maria José de. A comida e a cozinha: iniciação à arte de comer. Rio de Janeiro: Forense-Universitária, 1988. p. 60.

domingo, 15 de maio de 2011

Entre o ensaio e a ficção, por Maria José de Queiroz


É preciso esclarecer: sou uma estudiosa. Tenho passado grande parte da minha vida nas bibliotecas e nas salas de aula. Concederam-me até o privilégio de permanecer, trancada à chave, durante o almoço, em Coimbra, na sala de leitura da biblioteca da Universidade, em Frankfurt, na Deutsche Bibliotek, e, em Paris, na Bibliothèque de la Sorbonne. Vivo numa torre de papel. Entenda-se: não de marfim. Ainda assim, longe dos lugares onde se decide a nomeada do best seller. Vivo para os livros, não dos livros. Digo que tenho cinco leitores. Para minha surpresa, sempre aparece quem se declare meu sexto leitor. É para ele que escrevo; os demais são cativos. Incluo-me, portanto, entre os autores de 'imensa minoria'. Não que escreva 'difícil'. A clareza é a polidez do escritor. E para não distanciar-me da rua nem do povo, freqüento o humano, o demasiadamente humano: o amor, a droga, a loucura, a violência, a prisão, a comida, o automóvel, o tango... Esses, os meus temas. Tratei de humilhados e ofendidos, de excluídos e de minorias. Escrevi extensamente sobre o índio e sobre o negro, sobre os judeus, a mulher e o espaço urbano, o exílio e a pobreza. Por que não tenho mais audiência?...
O ensaio é a minha forma natural de expressão, pois sou professora, professora de literatura. Mas como me dirijo, na página escrita, ao leitor comum, varro do texto o jargão catedrático. E... principalmente, não dou respostas. Deixo isso para os filósofos. Tento, ensaio (aí está) explicar, de forma acessível, o assunto abordado. Ao modo de Montaigne, o autor dos Ensaios, guia-me o acaso. E escrevo até que julgue ter levantado um número suficiente de questões. Claro que não esgoto o assunto. Foi o que fiz ao falar do exílio e dos exilados: voltei aos hebreus, cheguei aos dias de hoje, mas não esgotei o repertório da infâmia. Ensaiei. Apenas isso.
Nada existe de mais grato aos sentidos e à inteligência do escritor que escrever. Mas, também, nada mais terrível, nem mais angustiante. Quando se escreve ensaio – veículo natural do estudo, apto à análise de interesse e mérito literário, sociológico ou filosófico – escolhe-se, antes de enfrentar a página branca, o tema a abordar. No caso da ficção, nem sempre isso acontece. Parte-se de um pretexto: uma notícia na imprensa, um episódio subitamente resgatado pela memória, um incidente que desperte nossa atenção sem motivo claro, plausível.
A verdade verdadeira é que, grato ou angustiante, o ato da criação nos redime das misérias do cotidiano. Por isso, e muito mais, estou pensando em deixar o ensaio e instalar-me, mala e cuia, na ficção. Adeus notas de rodapé, citações, índices, prefácios, posfácios, bibliografias exaustivas... Viva a criação.


Fonte: http://www.klickescritores.com.br/mjqueiroz00.html