sexta-feira, 2 de janeiro de 2015

Minas é quase Goiás. Em 1956.

"O médico", 1891, Sir Samuel Luke Filde.
Razões bem fundadas assistem por certo a Diderot quando aponta entre os seus livros prediletos os de Medicina e declara preferir, a qualquer outra, a conversa com os médicos.

Na verdade, muito se aprende no seu convívio. Especialmente, a imagem verídica do homem, na sua aparência anatômica, na sua fisiologia iniludível, submissa às leis da natureza. São eles, portanto, mestres de humildade: seus ensinamentos obrigam-nos a aceitar, no desabuso do espírito, a irrefutável zoologia a que estamos condenados.

Veio-me de Diderot a primeira lição da supremacia do corpo, a condição de uma unidade orgânica, responsável pela nossa harmoniosa integração biológica. De um amigo médico, cuja ciência sempre me instrui, e a cujo saber sempre recorro,, tive a confirmação dos princípios enunciados nos Elements de Physiologie. No nosso último encontro, à sombra da erudição desse livro admirável, fatiguei a memória à procura de citações que conferissem aos seus relatos a virtude de verdadeiros apensos às doutrinas do sábio francês. E não andei longe do êxito embora a afinidade entre a teoria e a prática, entre o discurso e a sua ilustração, se encontrassem mais no tom, ou espírito, que na forma, ou letra.

Se tudo aspira a tornar-se palavra, e palavra escrita, nada mais justo que registrar-se aqui a história que me referiu o Dr. João Martins Filho em tarde chuvosa, de convidativo clima confessional e memorialista.

Passemos aos fatos.

Alguma lembrança, ainda que pálida e vaga, deve persistir em Ituiutaba do médico recém-formado que ali chegou para iniciar carreira e tentar fortuna. Receberam-no com regozijo os políticos da cidade. No fundo ilusório da sua caixa prodigiosa Pandora reserva-lhes o pior dos seus males, a esperança. E nessa esperança lhe fazia crer, com otimismo mal disfarçado, que os encantos da roça haviam de arraigar o jovem médico no Triângulo. Levaram-no a visitar fazendas e estábulos, encareceram-lhe em longas falas a excelência da vida natural, acenaram-lhe com a posse de terras férteis e grandes vacadas. Entre todos os hóspedes da cidade, nenhum, nenhum deles mereceu maior carinho, a nenhum trataram com mais lhaneza: convites inúmeros e insistentes para almoços e jantares o melhor quarto do hotel, o mais belo cavalo para os passeios à tarde. 

Os clientes não demoraram a aparecer. Procedentes dos arredores, das fronteiras do Estado e até de Goiás. Numa quase milagrosas exceção!ao, ninguém saiu decepcionado. À míngua de recursos, o Esculápio fez-se curador, curandeiro: administrou medicina caseira, aplicou emplastros, recorreu a purgantes, receitou ácido acetil salicílico (ignorado pelo farmacêutico), utilizou cautério em brasa nas cicatrizações, promoveu cirurgia sem instrumentos e sem anestésico. As deploráveis condições do hospital não o impediram de salvar da morte vários doentes em estado grave. A sua fama correu estrada, palmilhou veredas e chegou a Santa Vitória. O chefete local apressou-se a visitá-lo. Convidou-o para um fim-de-semana na fazenda, a mais rica da região. Animava-o, porém, um desejo: o de conquistá-lo, definitivamente, para Santa Vitória, privada, anos havia, de qualquer assistência médica.

Repetiu-se ali o êxito das consultas, tratamentos e operações precedentes. Não é sem uma ponta de vaidade - justa, convenha-se - que o Dr. João Martins Filho se refere aos seus diagnósticos. Exatos, exatíssimos. Todos. Como tudo se propaga nos pequenos povoados, em Caçu, no Estado de Goiás, não tardaram a inteirar-se das curas milagrosas. No dia 7 de fevereiro de 1956, semblante taciturno, tez cobriça, algo indiada, o prefeito veio vê-lo. Contou-lhe da existência, no município, de um doutor prático, um desastre!, que tinha, já, assinado o óbito de mais de sete pessoas. Que Deus o perdoasse!, o prestígio do diploma e o saber do Dr. João talvez despertassem a inveja e o despeito do falso médico. Mas não havia de ser por isso que Caçu iria primar-se da sua ciência. Podia contar, seguramente, com a generosidade dos seus habitantes. Casa, fazenda, bois, hospital bem aparelhado, tudo de que necessitasse para o bom desempenho do seu ofício, tudo quanto desejasse para o seu bem-estar: haviam de favorecê-lo, a tempo e hora. E... não se preocupasse: o doutor de mentirinha entregaria a alma a Deus antes que ele, doutor p'ra valer, tomasse o caminho de Caçu.

A dialética vertiginosa do prefeito apressou o regresso do Dr. João Martins Filho à sua cidade, no Leste de Minas. Afugentou-o o imprevisível numa manhã de fevereiro, alguns dias antes do Carnaval.

QUEIROZ, Maria José de. Com me contaram: fábulas historiais. Belo Horizonte: Imprensa, 1973. p. 183-188.

quarta-feira, 31 de dezembro de 2014

A língua de empréstimo

A língua de empréstimo, mesmo aquela que se fala com fluência, e também com prazer, cansa ao fim de certo tempo. A inteligência desperta não pode ignorar, um momento sequer, a sintaxe, a morfologia, o vocabulário. Regras e normas constantemente se impõem. Não é só. Para chegar a falar correta e correntemente, vivemos, em nós mesmos, a língua estrangeira e constantemente a assimilamos, num processo jamais concluído de reelaboração do aprendizado. À língua materna, tal não acontece. Corre livre o pensamento. Deturpa-se a pronúncia, infringem-se leis e uso. Nada importa. É patrimônio próprio. Infenso à dilapidação. E mais: bem ou mal, sempre nos fazemos entender. O medo da censura, o autopoliciamento, o respeito ao idioma que não é o nosso favorece a tensão. Ninguém se sente impune ao pronunciar uma língua estrangeira. Isto é, aqueles que aspiram a uma certa ideia de correção de linguagem. Fluência significa esforço, concentração, vigilância. É fato: pode-se pensar numa língua estranha à nossa. Esse, o grande privilégio dos que dominam um novo idioma. Pode-se, até, sonhar em francês, em russo, em javanês. No entanto - a encontrar-se aí a essência da função fabuladora -, só se fala sem pensar a língua materna. É isso o que ela guarda de próprio e de misterioso. 

QUEIROZ, Maria José de. Ano novo, vida nova. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1978. p. 104-105.

sexta-feira, 26 de dezembro de 2014

Chove em Paris...

























Decretar morte,
impor silêncio,
secar todos os rios.
Na surdez de voz e palavra,
engasgar ternos enleios,
regressar a noites brancas,
povoadas de vazio.
Resignar-me à presença
do eu que vai comigo,
atento e implacável,
lúcido e frio.

Da temeridade me ficou
o gosto do inédito
- sabor de novidade,
com que me regalei,
no desprezo do antigo império,
mercê de todos os sentidos.
Para celebrar o jamais sonhado
- desvario outonal do tempo ido,
proclamei nova ética,
inventei calendário,
vesti novo traje,
recuperei ausências,
fabriquei mitos.
Renunciei ao futuro
no compromisso do agora
mas salvei o meu sempre,
a outros deuses rendido.
Vivi de provisório.
Na nostalgia do paraíso perdido
encontrei razões de santidade,
invoquei platonismo.

Hoje, que resta?
- Do passado, curto e pífio,
  horas furtadas a medo
  a mil olhos escondidos.

Decreto morte.
Imponho silêncio.
Sequem todos os rios!
Cansa-me a lentidão do Sena:
nas suas águas perenes
vejo apenas desafio...
Nada tenho, nada resta.
Chove em Paris...
Que frio!

Paris, verão de 1970.

QUEIROZ, Maria José de. Exercício de gravitação. Coimbra: Coimbra Editora, 1972. p. 62-63.

sábado, 20 de dezembro de 2014

Veias, artérias, nervo e sangue


Veias, artérias, nervo e sangue
- império e reino estranho.
Dia-pós-dia, nele vige o mundo:
êxitos, lucros, perdas e danos.
Intimidade próxima e distante,
nele nos perdemos, e nos reencontramos:
o infinito nele habita, cotidiano.
Na raiz do pulso, a emoção mais funda.
Nos seus limites, vida e morte:
coronárias, ritmo, pena e indulto.
Entre os seus dois pólos:
razão e intuição.
Lugares proibidos, perigo,
cilada e armadilhas,
tudo corre no sangue
e nele marca encontro
em contínua metamorfose,
em constante transição.

Ó paixão inútil!
Tentação de existir
além dos pés, nossa última fronteira;
tentação de ser
além do instinto
- castigo e redenção.

Belo Horizonte, 1972.

QUEIROZ, Maria José de. Exercício de Fiandeira. Coimbra: Coimbra Editora Ltda., 1974. p. 27-28.

sexta-feira, 12 de dezembro de 2014

O livro de minha mãe, de Maria José de Queiroz


Lágrimas e tinta

Uma antiga lenda judaica afirma que Deus conta as lágrimas das mulheres. Que dizer se essas lágrimas se apresentam como tinta, a tinta com que se escrevem a dor e o luto das perdas de quem escreve? Uma mulher?

Autora de ensaios, contos, romances e poemas, Maria José de Queiroz sublima, no livro dedicado à mãe, sua produção intelectual: resgata, de coração a coração, momentos de cumplicidade, de dor e de melancolia, de amizade, leituras e encantamento; com Monsenhor Messias, em Belo Horizonte, com Carlos Drummond de Andrade, no Rio de Janeiro – só para citar alguns dos amigos que agora iluminam as páginas deste livro. Sua pena e penas ferem o papel em cicatrizes, numa tatuagem sobre a pele. Que se precavenha o leitor desavisado: não as tome por trilha de caminhos que se bifurcam... Alheio ao legato em tom menor deste Confiteor, poderão escapar-lhe as variações do que é, na verdade, um oratório (à maneira de Bach).

MARIA JOSÉ DE QUEIROZ é autora de ensaios fundamentais, que demonstram sua erudição e vário interesse, como A literatura e o gozo impuro da comida, de 1994; Os males da ausência ou A literatura do exílio, de 1998, e Em nome da pobreza, de 2006. Destaco, dentre seus romances, Homem de sete partidas, de 1980, com prefácio primoroso de Pedro Nava, e Joaquina, filha do Tiradentes, de 1987, republicado dez anos depois em edição integral, com posfácio da autora, pela Topbooks. A poesia de Maria José é um exercício estético rigoroso entre a exatidão e a multiplicidade. Em Resgate do real: amor e morte, de 1978, o tinteiro melancólico da autora torna-se ponto máximo de sua escrita poética.

Empenho da memória que fia e desfia o passado, O livro de minha mãe tenta recuperar a infância, a perda do pai, ainda criança, a fibra e a coragem da mulher forte que foi Honória, sua mãe. A poesia, a música, as histórias de Minas – eis o elo que une mãe e filha, em simbiose. Inscrita na longa tradição de escritores que, no luto, tentam explicar a grande falta que é a morte da mãe, Maria José de Queiroz faz ecoar os fragmentos de Diário do luto, de Roland Barthes, em que o escritor trata de “uma dor absurda, impossível de contornar”. De forma mais expressiva, entoa, em dueto com Alberto Cohen, autor de Le livre de ma mère, “uma noite com palavras”, a celebração da mãe, de todas as mães. Os dois textos comparecem, sanguíneos, no correr das páginas de O livro de minha mãe.

Artesã da palavra, como bem definiu Pedro Nava, Maria José de Queiroz faz uma louvação às mães: a todas elas, a mãe. Enquanto fere, sua escrita vai gravando, na pele, múltiplas imagens de flores, corações, rendas, asas, inscrições, algumas muito antigas, outras próximas, comuns a todos os leitores. Num recriar do fio da vida, o livro exorciza demônios, refloresce cicatrizes: tinteiro aparentemente seco e melancólico, converte-se em crisol de alquimista, fonte que transforma lágrimas em tinta. 

(Lyslei Nascimento)


MARIA JOSÉ DE QUEIROZ é doutora em letras pela UFMG, livre-docente e professora catedrática, por concurso, da mesma universidade. Visiting Professor – Indiana University, Professeur Associé – Université de Paris-Sorbonne, Gast Professor – Bonn Universitat e Koln Universitat, possui vários ensaios publicados, como A literatura encarcerada (1981), A literatura alucinada (1990), A literatura e o gozo impuro da comida (1994), Os males da ausência ou A literatura do exílio (1998), e Em nome da pobreza (2006). Na ficção, destacam-se Joaquina, filha do Tiradentes (1987), Sobre os rios que vão (1991) e Vladslav Ostrov, Príncipe do Juruena (1999); e na poesia Exercício de levitação (1971), Exercício de gravitação (1972), Exercício de fiandeira (1974), Resgate do real (1978) e Para que serve um arco-íris? (1982). Prêmios recebidos: Jabuti / Ensaio (Câmara Brasileira do Livro); Othon Lynch Bezerra de Mello / Ensaio (Academia Mineira de Letras); Pandiá Calógeras / Erudição (Governo do Estado de Minas Gerais); Sílvio Romero / Ensaio (Academia Brasileira de Letras); Prêmio Nacional Literário PEN Clube do Brasil / Ficção, entre muitos outros.


O livro de minha mãe
Autora: Maria José de Queiroz
Formato: 15,5cm x 23cm
252 páginas / R$44,90
ISBN: 978-85-7475-241-9
Capa: Isabella Perrotta

Topbooks Editora e Distribuidora de Livros Ltda.
Rua Visconde de Inhaúma, 58 / sala 203
Centro – RJ / CEP: 20091-007
Telefax: (21) 2233.8718 / 2283.1039
topbooks@topbooks.com.br
www.topbooks.com.br

domingo, 9 de novembro de 2014

Âncora e porto

Qu'il soit un port
où l'orgueil à la proue
y dorme en l'eau qui dort

(Henri de Regnier)


Entre a noite e o crepúsculo,
um porto, águas dormidas,
silêncio.

Na areia imóvel,
rastos de pés ligeiros.
O vento, em espiral,
rompe as amarras do sossego.
Em velas ociosas
a memória naufraga seus segredos.


Na linha estável do horizonte,
o sol abre, distraído,
sua cornucópia de cores:
distante, presente,
o passado se alonga
na debandada de pássaros,
nas nuvens em atropelo.

O orgulho descansa remorsos
em rochedos de grandeza.
Tormentas, sirtes, penedos
autorizam quimeras, visões, receios.

No sigilo da proa
a luz amadurece a âncora,
grávida de abismos iminentes.
Da profundeza do mar emerge,
constelada de signos,
a espuma profética.
Oh transparente monumento
Donde el instante brilla y se repite
Y se abisma en si mismo y nunca se consume!

Paris, verão de 1974.

domingo, 2 de novembro de 2014

Sem tribuna de papel

Sem uma tribuna de papel, como vê, ninguém aqui logra defender-se publicamente: palavra puxa palavra, às palavras se seguem as ações, à violência do verbo, que esgrimem uns contra os outros, sucede a violência física, ou a violência propriamente dita que é, hoje, uma instituição nacional. Seu tio não estava preparado para viver num país como o nosso. Ainda que os seus ideais políticos se abrigassem sobre a bandeira negra do anarquismo, derivavam, em linha reta, do evangelho de Tolstói. Nunca li Tolstói. Mas era o que ele proclamava. Sua estatura, seu vozeirão, seus modos agressivos, seus protestos contra a injustiça e contra a opressão não abrigavam ódio: eram fruto de amor, provinham do sentimento de fraternidade universal. Detestava a Igreja, isso sim, e abominava a política e o poder.

QUEIROZ, Maria José de. Homem de sete partidas. Rio de Janeiro: Record, 1999. p. 128-129.

quarta-feira, 1 de outubro de 2014

Nossa Senhora do Ó




















A Geraldo Tymburibá

Ladainha de Nossa Senhora,
Nossa Senhora do Ó:
louvação em cada verso,
súplica em todo ó.

No altar,  o ouro do rio,
nas paredes, dragões da China,
nos lábios, a ladainha.
Macau e Goa trouxeram
desenho, invenção e tinta
para celebrar em Minas 
o parto da Virgem Maria.
Capelinha portuguesa
com nome de ladainha.

Nossa Senhora do Ó (*)
navega em nau da China
e no porto do Rio das Velhas,
no Sabará, Sabarabuçu,
ancora a sua capela.
Capela, capelinha,
barca celeste de ouro
que reza à Virgem Maria
na margem do rio de Minas.

Paris, fevereiro de 1971.

(*) Leia-se, de António José Saraiva, "Les quatre sources du discours ingénieux dans les sermons du Pe. António Vieira", in Bulletin ded Études Portugaises, 1970, nouvelle série, t. 31, p. 177-270, a propósito do culto a Nossa Senhora do Ó na Península Ibérica e no Brasil. Curiosa, engenhosa mesmo, a definição de Vieira que vê no Ó o símbolo da eternidade.

QUEIROZ, Maria José de. Como me contaram... fábulas historiais. Belo Horizonte: Imprensa/Publicações, 1973, p. 34-36.

domingo, 14 de setembro de 2014

Entre ampulheta e clepsidra


Raio de sol,
alegria transeunte,
aroma de efêmera residência,
eis o que sou.

Povoei de escândalo
o teu outono,
ensinei-te comas
e semicomas
de modinhas esquecidas,
com letra, música
e cadência,
de Ovalle e Mignone,
talvez mais.




Desviei teus passos,
incendiei tuas inibições,
dei-te chaves
de desconhecidos falares.

Ensaiaste voo
por atlânticas finitudes,
sereno, altivo, ileso.
Se me esqueceste,
não me traíste,
em aliviado suspiro
confessaste
o gozo e o júbilo
do amor recuperado,
intacto,
no macio colo
de diferente abraço.
Oh irrisão de verbo inocente!
Insensata disponibilidade!

Num maranhão de conflitos
me perdi. E te reencontrei.
Tão distinto, tão mortal,
cotidiano,
integrado à grei humana,
sem auréola ou pedestal.
Ceguei-me.
Queimei indiferenças
no fogo de castos intentos.
Porfiei, apesar de.
Porfiamos, ainda.
Sofremos dúvidas
de cruel padecimento
Azulei melancolias
em crise de alma
e vocação.
Na incerteza do afeto,
desentendeste parábolas.
Pagaste ingrata gabela
de fossas monumentais.

Assumi tuas catarses,
enfrentei dicotomias,
rendi-me a novo sursis.
Curei vacilações
no empenho definitivo
de ajustada sincronia.
Proclamei em alto grito,
indiferente a todo dano,
felicidade a prazo fixo,
sujeita a leis, correios, âncora.
Avoquei responsabilidade
de falência previvida
no lúcido endosso
do título precário.
Em modo teu, muito próprio:
viverei de memórias, justificada.
E atenta ao que é digno, justo e salutar
- como se lê no Prefácio
de antiga liturgia, Ordinário ) -
jamais me ocorrerá
semear maravilha, sonho ou ilusão
em território alheio,
adubado de sal e pranto,
firmado em santa aliança
de fé, papel e casa cristã.
Que me troquem (antes isso!)
em  tempero de eterna paz,
reconquistada.
Na solidão de noites ermas,
lembrarei que és feliz: tanto me basta.
No silêncio,
povoado de palavras,
florescerá o verso
de breve pena,
verso emplumado,
verso alado,
volátil:
redenção de asa e pluma
do delito de amar
em diacronia
entre dois intervalos
de água e areia.


Paris, fim de primavera, 1970. 


QUEIROZ, Maria José de. Exercício de Levitação. Coimbra: Atlântida, 1971. p. 76-79.


sexta-feira, 15 de agosto de 2014

A irritante resignação

Restava saber se era isso que desejava... que parte cabia ao Brasil no seu coração? E na sua inteligência? O de que gostava, e que curtia aqui, não tinha preço. Nem nome. Era a alegria de respirar o ar de casa, de cheirar a roupa de cama lavada uma vez por semana, de ouvir gente falando português, de ler os jornais pendurados do lado de fora das bancas, de admirar o riso espontâneo que ainda enfeitava, apesar dos pesares, o rosto das pessoas. Mais desdentadas que fossem. Mas... e as agressões que sofria ao descer à rua? Os mendigos deitados nos vãos das portas, os pivetes em corridas desabaladas, fazendo acrobacias nas traseiras dos ônibus, as sarjetas imundas, as valas negaras a céu aberto, os passeios ocupados por carros e vendedores ambulantes, a desobediência às leis e às regras miúdas da convivência... Ficaria livre de tudo isso. E de muito mais. Até da irritante resignação dos brasileiros diante da corrupção, da injustiça, da fraude, da impunidade e da demagogia dos políticos. Só que a inconsciência, ou talvez a pouca seriedade com que se comportam, não é para desprezar-se: se não a tivessem, como sobreviveriam aos trancos da miséria, da calamidade e da desigualdade social? A inconsciência aqui é uma forma de defesa...

QUEIROZ, Maria José de. Sob os rios que vão. Rio de Janeiro: Atheneu-Cultura, 1990. p. 336.

sexta-feira, 25 de julho de 2014

Era amor à primeira vista...

Era amor à primeira vista. Disso eu não suspeitava. Ainda não. Acreditava-me infenso a tais fraquezas. Cultivava, desde os últimos anos na Argentina, uma misoginia mal resolvida. Aborrecia-me o eterno feminino. Mas Brigitte não era como as demais mulheres... Descobri, passado o frenesi da paixão, que não só o eterno feminino existe, sim, como uma mulher é todas as mulheres. E talvez seja isso o eterno feminino. Quem conhece uma, conhece todas elas. A paixão é que é diferente. É o sujeito que reinventa o objeto amado. Embora ele seja sempre o mesmo...

QUEIROZ, Maria José de. Vladslav Olstrov, príncipe do Juruena. Rio de Janeiro: Reccord, 1999. p. 84.

domingo, 29 de junho de 2014

A terra do amor

Esta é, salta aos olhos e à inteligência, a terra do amor. Como se fosse preciso acrescentar que o último livro do crítico e professor do Colégio de França - Roland Barthes -, se chama Fragments d´un discours amoureux. É. todo mundo anda aos pares: Abelardo e Heloísa, Henrique IV e Gabrielle d´Estrées, a Pompadour e Luís XV, Yvonne Printemps e Pierre Fresnay, Madeleine Renaud e Jean-Louis Barrault, Roland Petit e Zizi Jeanmaire, a Greco e Michel Piccoli... Até o ménage à trois, instituição francesa, se abriga à sombra do casal. A solteirona, à brasileira, ou à mineira, não existe. Nem é, sequer, raça em extinção, como entre nós. É raça extinta. A celibatária vive aqui à sombra de código próprio. Com direito a fantasias e mais divagações amorosas. Dorme com quem quer, move-se livremente dentro de uma sociedade que aceita sem preconceito as uniões passageiras, com ou sem intuito de legalização. A escolha do celibato não se vincula à castidade. Nem nome conhecido (conhecidíssimo!!!) morreu, faz pouco, na casa da amantes, prostituta de preço.

QUEIROZ, Maria José de. Ano novo, vida nova. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1978. p. 54-55.

domingo, 15 de junho de 2014

Celebração da hospitalidade

Gratidão hospitaleira
quarto ensolado,
nesga de azul a espantar pesadelos,
mar murmuroso a despertar naufrágios.
Entre muros
a florescida lição:
casa plantada no meio dos homens,
porta aberta a todos os ventos,
paredes caiadas de bênção divina.
Amiudado o riso
na dualidade harmônica,
nos chinelos solícitos,
nos pijamas aurorais,
no holocausto matinal de barba e sonho,
nas ilusões desfeitas
em espumas alvais de sacrifício.
O referente ofertório na toalha e no pão.
No lento mastigar, o ritual eucarístico.
Em diário suor, o cumprimento da promessa.
No descanso angular da poltrona,
a justificação do trabalho.
O preguiçoso divagar do fumo volátil,
livre espiral
        ágil e
        lábil.
No retângulo iluminado de imagens fugidias,
o refúgio do silêncio.
Oh! encantada surpresa
do trivial infantil
Alegria mansa
de fidelidade fiel
a
fiel companheira.
Tranquila amenidade
na berlinda
do merecido aplauso
e consagrado êxito.
A alma serena,
encolunada de cânones,
celebra hosanas
de devoto culto
em
vigília
genuflexa.

Receita de felicidade,
aprendido o susto,
bem medida,
temperada,
a quatro mãos
e cúmplice afeto,
com sabor requintado
de
i
mortalidade.

Na excelência do convite,
o exortado exemplo.
Na gratuito magistério,
privilégio de raros,
o gesto agradecido
da retribuição.
Mestre ontem,
hoje discípulo -
milagre dosado
em libra de sal - régio salário
à
solitária
disponibilidade.
Quanta lição!


Paris 15/2/1970.



QUEIROZ, Maria José de. Exercícios de levitação. Coimbra: Atlântida, 1971. p. 30-32.

quinta-feira, 29 de maio de 2014

Recitação de inverno



QUEIROZ, Maria José de. Recitação de inverno. In: ______. Exercício de levitação. Coimbra: Atlântida Editora, 1971. p. 14-15.

quarta-feira, 19 de março de 2014

O exercício do papel do usurpador

Esvaziados os conceitos de Direito e Justiça, nada resta ao legislador além da aplicação da lei pela lei. Isto é, o exercício do papel do usurpador. Incapaz de aplicar a justiça, o regime justifica a força, abolindo a liberdade. No entanto, a autoridade arbitrária - veículo transitório do poder, esgota-se em si mesma: nada mais enganoso que a imposição da lei pela força. Aquele que a ela se rende transfere ao regime o desvirtuamento do princípio de autoridade. E o abuso do poder reconduz, fatalmente, a liberdade à sua origem. Quem nada tem a perder, tem tudo a ganhar...

QUEIROZ, Maria José de. A literatura encarcerada. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1980. p. 97.

domingo, 9 de março de 2014

Agora canto

Agora canto,
sim,
canto:
a violência da calma, o furor do silêncio,
a revolta contida, a raiva, o rancor,
a fraude do afeto, o sangue, a ofensa,
o desdém ao recato, o insulto ao pudor.
Que ocorram às minhas palavras
a doçura do pomo maduro,
a peçonha da serpe maldita,
a ciência do bem e do mal.
E ao suor do castigo nefando
(que atou o pão ao trabalho)
se misturem as dores que sinto
ao trazer ao sol e ao calor
criatura de Deus concebida
em pecado e ao pó condenada.

QUEIROZ, Maria José de. Para que serve um arco-íris?  Belo Horizonte: Imprensa, 1982. p. 44.