Ao publicar, em 1988, A
comida e a cozinha (Rio, Forense-Universitária), Maria José de Queiroz
declarava, nas palavras ao "Leitor...", que essa Iniciação à arte de comer não passava de anotações à margem de suas
leituras. Aguçando-nos o paladar para novas degustações, referia-se à
"pesquisa em curso". Isto é, à sua pesquisa sobre as relações entre a
comida e a literatura. Descobre-se agora que esse primeiro ensaio – modestamente
chamado de anotações, e que era, de fato, o "primeiro livro brasileiro de
gastrologia: de evolução da arte culinária associada à arte da
gastronomia" (Guilherme Figueiredo), nada mais insinuava que aperitivo,
convite para o grande banquete da civilização. Depois de iniciar-nos nas
transformações sociais e políticas operadas pelo gosto, mostrando a importância
da mesa e do convívio no comportamento dos grupos humanos, nas ideologias e no
devenir da sociedade, a ensaísta nos oferece, neste novo estudo, o resultado da
sua pesquisa.
Se A comida e a cozinha,
ou Iniciação à arte de comer era, na bibliografia brasileira,
"obra inaugural", que dizer de O
gozo impuro da comida? Obra inaugural, sem dúvida. Mas da bibliografia
literária. Tout court. Um ensaio magistral
sobre o sistema da comida nas suas relações com a palavra: a "manducação"
e suas ambiguidades, o apetite e o prazer (nas suas perturbadoras implicações
com a libido), a fome e a glutonaria, num constante ir e vir entre o pensamento
individual e o pensamento coletivo, traindo a aplicação do método de trabalho
de Georges Dumézil que a autora deve conhecer bem.
O único escritor a aventurar-se numa peregrinação
gastronômica, de cardápio mofino, pelo ventre dos filósofos, foi Michel Onfray.
Mas à sua Crítica da razão dietética
("Livro de bolso", Grasset, 1990. Trad. bras. Ed. Rocco) poderíamos
chamar, sim, anotações à margem da leitura dos filósofos. Que não se comparam,
de modo algum, à opulência do texto nem aos requintes de erudição deste ensaio
comparativo.
Num estudo de tamanha complexidade, com a minúcia e o aparato
bibliográfico que o tema estava a exigir, somos aliciados, a despeito da
erudição, para partilhar, de mesa em mesa, de um suntuoso festim de palavras.
Tem razão Guilherme Figueiredo: "Saber falar de comer não
é falar de comer enquanto se come". "É comunicar em silêncio um mundo
de todos os sentidos, vividos na memória e repostos no instante presente".
É o que faz Maria José de Queiroz.
De fácil leitura e, muito principalmente, curioso, incomum, o
seu livro estuda as infinitas variações da sensibilidade gastronômica. Mercê do
testemunho dos grandes autores, penetramos no ventre da humanidade. E
experimentamos, na sua companhia, todos os prazeres do palato e do olfato: com
as personagens de Homero, na Ilíada e
na Odisseia; com Sócrates e
Alcibíades, no Simpósio; na Roma de
Nero, com Petrônio. Instruídos nas extravagâncias da goela, somos apresentados
aos excessos do corpo grotesco nos livros de "alta gordura" de
Rabelais. Aí, a festa é permanente; a vida, uma digestão interminável. Bem
outro é o quadro com que nos deparamos na literatura picaresca, fustigada pela
miséria: é o vale-tudo da astúcia na luta pelo pão de cada dia.
Passado o tempo, a mesa se converte em objeto do desejo da
burguesia, índice de riqueza e de poder. A tal ponto que Fome, romance de Knut Hamsun, opõe à abastança ostensiva da
sociedade o drama de um pobre diabo, anônimo, cuja obsessão é a comida.
Embora intrusa no banquete da civilização, a cultura
brasileira também sucumbe à mesa de Aluísio Azevedo, de Raul Pompéia e, até
mesmo, quem diria?, à mesa do dispéptico Machado de Assis. Do canibalismo
futurista c modernista, passamos às grandes ilhas gastronômicas do Brasil: com
José Lins do Rego, Jorge Amado, Pedro Nava e Érico Veríssimo.
Após tão longo périplo, aprendemos que Guilherme Figueiredo,
Albert Cohen e Günter Grass tomaram a gastronomia para tema literário.
Encerra-se com eles o nosso passeio gastronômico. O ensaio de Maria José de
Queiroz é um todo único cuja síntese está no apetite. E quem saiba conjugar,
com talento, os dois apetites – o do ventre e o da inteligência, nele
encontrará, certamente, todas as finezas do paladar.
Isaac Cohen (da Quinzaine
Littéraire)
QUEIROZ, Maria José de. A literatura e o gozo impuro da comida. Rio de Janeiro: Topbooks, 1994.