imune à corrupção da
carne,
subi à montanha de
Tebas.
Mertseger, a amada de Osíris,
a amiga do silêncio,
encontrei-a à minha
espera.
Aos quatro filhos de
Horo
entreguei as minhas
vísceras,
em quatro canopos
embalsamadas.
Sob a proteção de Selkis
o meu corpo será
preservado.
A Amset dei o meu
fígado,
a Hapi, os meus pulmões,
a Duamutef, o meu
estômago,
a Qebesenuf, as minhas
entranhas.
Graças aos meus talismãs
e à lição do Livro dos
Mortos
atravessei o reino da
ausência
quando a noite submarina
naufragava na areia
lodosa.
À força de atar nomes e
signos
a escaravelhos, urnas e
papiros,
aprendi a origem fatal
de todas as origens:
iniciei-me no ciclo
solar,
no segredo das serpentes
enroscadas,
no sigilo das cinzas do
esquecimento,
no simbolismo do fumo em
espiral,
no destino dos animais
impuros.
Tomei o meu caminho,
isento de maus augúrios.
Beijei o umbral sagrado
de acesso ao saguão
imenso
diante do Juiz soberano;
na Sala do duplo juízo
aguardei a minha
sentença.
A mitra de cor branca
ressaltava-lhe a tez
escura.
O olhar magnânimo,
Osíris acolheu-me com
bondade.
Junto de enorme balança,
Maat — a deusa do
Direito,
da Justiça e da Verdade,
assistida por Anubis e
Horo.
Num canto, de cócoras,
Amamet — a Devoradora,
olhava-me com sanha,
pronta a punir meus
pecados.
Mas Osíris, o Redentor,
Vigiava o monstro
esfaimado.
Quarenta e dois juízes,
vinte e um de cada lado,
examinaram-me a
consciência
tentando descobrir
o mais mínimo desvio,
a mais leve falta.
Chamando-os pelo nome,
um a um, sem vacilar,
recitei, gravemente,
a confissão bem
decorada.
Declarei minha
inocência:
dei pão a quem tinha
fome,
dei água a quem tinha
sede,
vesti os que estavam
nus,
ao náufrago emprestei
barca,
aos deuses levantei
altares.
Fiz o de que falam os
homens
e o de que se rejubilam
os que são glorificados.
Contentei a Deus
naquilo que Ele ama:
sou justo
e sem pecado.
As divindades propícias
iluminaram-me a memória,
afastaram de mim o receio,
afugentaram as estrelas
febris,
fortaleceram-me a
palavra.
Terminado o discurso,
convocaram meu espírito
para a pesagem da alma.
Anubis tomou o meu
coração;
no outro prato da
balança,
a equilibrá-lo,
a própria Maat — símbolo
da Verdade.
Thot, vizir de Osíris,
Senhor do Verbo eterno,
consultou as suas
tábuas:
nos dois pratos — o peso
exato.
Na sua linguagem aérea,
de cores e de música,
em timbre de clarim,
a assembleia dos juízes
proclamou em voz alta
o veredito divino:
Que o morto seja livre,
livre para dispor de si
mesmo,
livre e vitorioso
no seio dos espíritos
e no meio das
divindades,
Senhor do tempo e do
espaço.
Desde então guardo o
campo dos deuses,
vigio diques e canais.
Os respondedores, meus
escravos,
acorrem ao meu chamado
para eximir-me de
trabalho.
Do mundo apenas me
chegam
os séculos das idades
na perfeita sabedoria
de Thot
— o patrono da
história.
QUEIROZ, Maria José de. Resgate do real: amor e morte. Coimbra: Coimbra, 1978. p. 47-50.