sábado, 13 de janeiro de 2018

Invenção a duas vozes, 1978



QUEIROZ, Maria José de. Invenção a duas vozes.
Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1978. 235p.

A invenção da vida e a distância entre o sentir e o dizer alcançam ponto máximo no enredo desse romance. Presos, durante o carnaval, ameaçados por ladrões, no espaço limitado de um banheiro numa mansão na Pampulha, em Belo Horizonte, um casal discute a vida e as representações sociais a que estão presos. A máscara e a tensão familiar são, no texto, desveladas na medida em que se encena a brutal violência a qual estão submetidos. A narrativa, ora contida, ora censurada, deixa entrever, no espaço reduzido e íntimo, o medo e a proximidade constrangedores que põem em cena as contingências dos dejetos, dos restos, das relações amorosas e sociais.

“Os passos prosseguem na busca ansiosa. Devem estar no nosso quarto de dormir. Perfumes, vestidos, ternos, sapatos, bolsas, alguma joia desgarrada (quase tudo está no banco), a televisão portátil, o relógio de cabeceira, os nossos relógios de pulso... Tudo inútil. Metade da vida perdida em amealhar, amealhar... O horror ao amigo do alheio. O verbo ter conjugado com ansiedade, temores, calafrio, no olvido dos verbos ser e estar. A propriedade é um roubo, sim. A nós mesmos. Transferimos às coisas a nossa residência: passamos a hóspedes interinos dos objetos. Por isso, ao perdê-los, nós os acompanhamos em degredo. Preciso convencer-me. À minha integridade basta-me, com sobejo, a identidade postiça — nome, estado civil, nacionalidade. Tudo mais se sujeita à irregularidade do verbo ter e a todos os desastres da propriedade e da posse, jamais bem guardadas. O melhor, acredito, seja colecionar lembranças. Para que a memória as afeiçoe a seu grado, com direito a retoques e acréscimos, se necessário. Álbum de poucas páginas, sem fotografias e sem notas.” (QUEIROZ, 1978. p. 25).
 
“Por que a palavra ríspida, a ironia venenosa e a impaciência? Por que o desabafo de desgosto? Que motivo me afasta das pessoas? A abundância de vida, acredito. O tumulto dos sentimentos exteriorizado em signos visíveis e audíveis, nem sempre agradáveis. É a imagem que me comove – o que fica como soma e síntese, fusão final. A face em que se confundem tiques, expressões e hábitos. Só a separação, a distância e a morte nos oferecem a pessoa na sua integridade, no seu retrato total – de corpo e alma. Salva dos desnorteios da razão, das bruscas mudanças de comportamento, ela – a pessoa, aparece-nos finalmente aliada à sua personagem. É a eternidade que comparece no exercício repetido a que a memória nos obriga. A presença, na sua solicitude importuna, na sua riqueza compósita, dispersa e dissipa. Ameaçadoramente subversiva, ela põe em perigo a estabilidade, o equilíbrio. Toda presença é conflito. O físico perturba, confunde, embaraça. Submete-nos a uma constante revisão de conceitos. Se tentamos guardar figura que o represente, saímos logrados: fluida, tremida, indistinta, ela assemelha-se ao vulto da fotografia fora de foco. A ausência, pelo contrário, concentra, reúne, aglutina. E só a morte – ausência definitiva – confere aos monumentos, às estátuas e aos seres humanos as dimensões da imortalidade. Assim entendo o verso de Mallarmé "Tel qu'en lui même enfin l'éternité le change", a propósito de Edgar A. Poe. O apelo à sacralização instaura no nosso íntimo o gosto da perfeição, o capricho na caracterização de cada gesto e de cada palavra, dentro da continuidade do vivido. Do já vivido.” (QUEIROZ, 1978. p. 106).

“Ninguém desce impune do pedestal doméstico, pois a descida supõe perda de privilégios. A conservação do poder exige talento, força e obstinação. Mas isso não é tudo. O chefe depende da docilidade dos comandados. Num primeiro estágio. Com o passar do tempo ele deve contar com a adesão apaixonada. O poder exercido sem objeções e sem protestos, num vazio onde a voz do mando se prolonga em ressonâncias, torna-se intolerável." (QUEIROZ, 1978. p. 151).
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Lyslei Nascimento
Faculdade de Letras, UFMG

Ano novo, vida nova (1978)


Ano novo, vida nova. Rio de Janeiro: 
Civilização Brasileira, 1978. 107p.

O romance, em primeira pessoa, embora escrito em português, é quase bilíngue. Na trama, a personagem-narradora, Patrícia, uma mineira envolvida num caso amoroso com um francês, casado, reflete sobre a possibilidade de escrever sua história de amor. O duplo registro, ora em português, ora em francês, confere ao texto um caráter de charada, de enigma, de metalinguagem. A história, ricamente composta pelos cenários das cidades europeias, especialmente Paris, traz outros detalhes importantes recriados com requinte como a referência à culinária e à literatura.

“Talvez comece aí a minha novela. Não me tenta, contudo, a ficção oclusa, cerrada em si mesma: o vivido camuflado pelo escrito. Não submeteria a minha personagem, ainda que autobiográfica, à contingência de uma existência puramente fictícia, alheia ao presente e às suas vicissitudes. Gostaria de inserir-lhe a vida numa intriga jamais inaugurada, jamais concluída. Sem princípio nem fim. De modo a fazê-la participar da essência mesma do tempo. Contínua e sempre continuada. Será isso possível? Ficção sem fixação. Para reencontrar, realmente, os sentimentos e as emoções experimentadas.” (QUEIROZ, 1978, p. 30).

“Que o novelo se desenrede. Sem concessões. Que a minha ficção, em vez de anular-me, me ofereça a possibilidade de encontrar-me. Mais: de melhor conhecer-me e de analisar-me. Uma espécie de ficção indefinida, entre dois planos, um real, vivido, e o outro imaginado. [...] Invenção e vida. Unidas pelo fio sutil da simpatia. É a história que está a programar o vivido. Não tenho, por isso, a impressão  de que o enredo se resolva no epílogo. Como se o tempo, circular, tudo recuperasse sob o signo das letras. Talvez, no momento da revisão do texto, ao chamar Clara, e não mais Patrícia à personagem, eliminando, sempre, a primeira pessoa do singular, eu possa dar à história selo definitivo, estável. Não sei. O que sinto, por enquanto, é que tudo isso não passa de uma restituição. Restituição do fictício à ficção. Se lograr realizá-la, convencendo-me da sua realidade, poderei desaparecer. Ficarei livre de Patrícia nomeando-a Clara.” (QUEIROZ, 1978. p. 62-63).

“A língua de empréstimo, mesmo aquela que se fala com fluência, e também com prazer, cansa ao fim de certo tempo. A inteligência desperta não pode ignorar, um momento sequer, a sintaxe, a morfologia, o vocabulário. Regras e normas constantemente se impõem. Não é só. Para chegar a falar correta e correntemente, vivemos, em nós mesmos, a língua estrangeira e constantemente a assimilamos, num processo jamais concluído de reelaboração do aprendizado. À língua materna, tal não acontece. Corre livre o pensamento. Deturpa-se a pronúncia, infringem-se leis e uso. Nada importa. É patrimônio próprio. Infenso à dilapidação. E mais: bem ou mal, sempre nos fazemos entender. O medo da censura, o autopoliciamento, o respeito ao idioma que não é o nosso favorece a tensão. Ninguém se sente impune ao pronunciar uma língua estrangeira. Isto é, aqueles que aspiram a uma certa ideia de correção de linguagem. Fluência significa esforço, concentração, vigilância. É fato: pode-se pensar numa língua estranha à nossa. Esse, o grande privilégio dos que dominam um novo idioma. Pode-se, até, sonhar em francês, em russo, em javanês. No entanto - a encontrar-se aí a essência da função fabuladora –, só se fala sem pensar a língua materna. É isso o que ela guarda de próprio e de misterioso.” (QUEIROZ, 1978. p. 104-105).

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Lyslei Nascimento
Faculdade de Letras, UFMG

domingo, 24 de dezembro de 2017

Ituiutaba, setembro de 1972

Vilarinho no espelho. Herói e Narciso.

As meninas chamam à porta. Para o bonitão, bombons, balas, biscoitos, sabonete e colônia perfumada.

O passado não conta. Ninguém ressuscita ninguém como aconteceu com Lázaro. O sangue lavou a lembrança dos três corpos massacrados em noite de lua cheia na fazenda de Ituiutaba.

Venham as meninas. Vilarinho aguça as garras. Ri sozinho: tem nova família.

QUEIROZ, Maria José de.  Ituiutaba, setembro de 1972. In: ______. Como me contaram: fábulas historiais. Belo Horizonte: Imprensa Oficial, 1973. p. 209-211.

quinta-feira, 30 de novembro de 2017

Maria José de Queiroz, catedrática da UFMG, é homenageada no Rio

Pesquisadores da Fale farão análises da obra da escritora em solenidade no Real Gabinete Português de Leitura

 



Maria José de Queiroz com Carlos Drummond de Andrade, Afonso Arinos e Plínio Doyle
Maria José de Queiroz com Carlos Drummond de Andrade (à esquerda), 
Afonso Arinos e Plínio Doyle
(Arquivo pessoal da escritora)
Atualmente residindo em Paris, na França, a escritora mineira Maria José de Queiroz, que integra a Academia Mineira de Letras e é professora catedrática da UFMG, desembarcará no Rio de Janeiro para receber homenagem no Real Gabinete Português de Leitura (RGPL), nesta sexta-feira, 1º de dezembro, por seu aniversário de 80 anos. O evento será aberto às 16h, com entrada franca.
Na ocasião, será exibido o documentário Maria José de Queiroz: artesã da palavra, produzido pelo fotógrafo Lesle Nascimento, em 2013, e apresentado no 5º Colóquio Mulheres em Letras, na Faculdade de Letras da UFMG e na Academia Mineira de Letras. O filme é um registro audiovisual de depoimentos da escritora. Das quase 20 horas de depoimentos tomados de Maria José em Belo Horizonte, Rio de Janeiro e Paris, foram selecionados 37 minutos.
A professora de Literatura e Literatura Comparada da UFMG Lyslei Nascimento, que defendeu dissertação de mestrado sobre o romance Joaquina, filha do Tiradentes, de Maria José de Queiroz, comentará o documentário, e, a seguir, a professora do Real gabinete Ana Cristina Comandulli vai conduzir mesa-redonda com participação dos doutorandos da área de Estudos Literários da Faculdade de Letras da UFMG Maria Lúcia Barbosa, André Souza Pinto, Késia Oliveira e Filipe Menezes.
Os pesquisadores abordarão obras como Joaquina, filha do Tiradentes – que deu origem à minissérie Liberdade, liberdade, exibida pela Rede Globo no ano passado –, Amor cruel, amor vingador (contos), publicada em 1996, Sobre os rios que vão (romance), que narra a história de uma família de origem búlgara e sefardita no interior do estado de São Paulo, e o conto 1789-1790, publicado em Como me contaram: fábulas historiais, em 1973.

Extensa e premiada trajetória
Nascida em Belo Horizonte, Maria José de Queiroz ensinou Língua e Literatura Hispano-Americana na Faculdade de Letras da UFMG, sucedendo a seu mestre e amigo Eduardo Frieiro. Aos 26 anos, tornou-se a mais jovem professora catedrática do Brasil. No exterior, foi professora convidada nas universidades Sorbone, na França, e Harvard e Berkeley, nos Estados Unidos, entre outras.
Publicou mais de 30 livros, muitos deles premiados. Entre suas conquistas estão os prêmios Silvio Romero, de ensaio, da Academia Brasileira de Letras; o Othon Lynch Bezerra de Mello, de ensaio, da Academia Mineira de Letras; o Pandiá Calógeras, de erudição, da Secretaria de Educação do Estado de Minas Gerais; o Luísa Cláudio de Souza, de romance, do PEN Clube do Brasil, e o Jabuti, de ensaio, pela Câmara Brasileira do Livro. Em 2014, foi agraciada com o Troféu Eunice e Dilce Fernandes, outorgado pela Academia Mineira de Letras. Membro da Academia, ela sucedeu a Affonso Penna Júnior, na Cadeira 40, cujo patrono é o Visconde de Caeté.

Catedral da cultura portuguesa
Com 180 anos de existência completados neste ano, o Real Gabinete Português de Leitura é a associação mais antiga criada pelos portugueses do Brasil após a independência, em 1822. Sua sede, construída em estilo neomanuelino e inaugurada pela Princesa Isabel em 1887, guarda cerca de 350 mil volumes, sendo parte significativa de obras raras.
A biblioteca pública funciona como centro de estudos e polo de pesquisas literárias, dirigido e frequentado por professores universitários. Entre as obras raras do Real Gabinete figura um exemplar da edição princeps de Os Lusíadas, de 1572, magnum opus do poeta Luís Vaz de Camões. O Real Gabinete também possui em seu acervo o manuscrito do Amor de perdição, obra do também português Camilo Castelo Branco.
Organizam a homenagem as professoras Lyslei Nascimento, da UFMG, e Ana Cristina Comandulli, do Real Gabinete Português de Leitura.
Neste blog, é possível acessar boa parte da obra de Maria José de Queiroz. Veja também sua página na biblioteca digital Open Library.

Fonte: https://ufmg.br/comunicacao/noticias/escritora-maria-jose-de-queiroz-e-homenageada-no-rio-de-janeiro

quinta-feira, 19 de outubro de 2017

Esse olhar atravessado

Nada passa nesta cidade. Tudo é sempre igual: as pedras da rua, a fachada das casas, as pontes, os chafarizes, as cruzes, os oratórios... Do Caquende até o alto das Cabeças, as caras são as mesmas, desde o tempo do Alferes. Só no Pilar vejo gente estranha: duas ou três pessoas chamam a atenção de todo mundo. Nas procissões, qualquer cara nova é olhada de través. E, agora, sobra, para nós também, esse olhar atravessado. Tem gente que bem que gostaria de me ver enforcada, na mesma corda que enforcou o Alferes. Como essas Pilatas.

QUEIROZ, Maria José de. Joaquina, filha do Tiradentes. Rio de Janeiro: Topbooks, 1997. p. 18-19.

segunda-feira, 16 de outubro de 2017

PEDRA

Concentração de espera
sem partida nem regresso.
Imobilidade resignada
de grave presença
no espaço habitado,
imanência estável,
inviolada.
Além, o mundo:
mistério ocluso,
vedado.
Densidade enclausurada
na intimidade do núcleo,
intacto.
Repouso obrigado,
alheio a todo gesto e parlamento,
ato falhado.
Harmonia compacta,
indiferente a ritmo e melodia,
fermata prolongada.
Acorde perfeito maior,
sustentado.
Pausa de eterno silêncio,
descanso demorado.
Ilha:
cercado de terra,
por todos os lados,
o sonho da pedra:
fantasia reduzida
a verbo limitativo
e modo infinito
- estar.
Ontem, hoje, amanhã,
encerrados no lugar sempre
de coeso e definitivo durar.

Interlaken, 1971. 

QUEIROZ, Maria José de. Exercício de fiandeira. Coimbra: Coimbra Editora, 1974. p. 41-42.

domingo, 13 de agosto de 2017

quinta-feira, 18 de maio de 2017

Maria José de Queiroz entre as 150 mulheres que estão fazendo literatura hoje no Brasil


150 mulheres que estão fazendo literatura hoje no Brasil



sexta-feira, 14 de abril de 2017

Homenagem a Maria José de Queiroz na Academia Mineira de Letras, 18 de abril de 2017

A Academia Mineira de Letras realiza na terça-feira, dia 18, às 19h30, sessão em homenagem à acadêmica Maria José de Queiroz, ocupante da cadeira de numero quarenta. Vivendo atualmente em Paris, como professora da Sorbonne, ela virá a Belo Horizonte especialmente para a solenidade. O evento faz parte do programa Universidade Livre, realizado pela Lei Federal de Incentivo à Cultura, com patrocínio do Instituto Unimed-BH, por meio do incentivo fiscal de mais 4,5 mil médicos cooperados e colaboradores. A AML integra o Circuito Liberdade.


Maria José de Queiroz nasceu em Belo Horizonte, em 1934. É doutora em Letras Neolatinas pela Universidade Federal de Minas Gerais e autora das obras “Joaquina, filha de Tiradentes” (recentemente adaptada para a televisão), “Como me contaram”, “Ano novo, vida nova”, “Homem de sete partidas”, entre outros romances e obras poéticas.


Aos 26 anos, se tornou a mais jovem catedrática do país e, por concurso, substituiu o professor Eduardo Frieiro na UFMG. Em 1953, começou a colaborar em jornais em Minas Gerais e hoje escreve para importantes periódicos, inclusive o francês Le Monde. Possui uma longa carreira como professora convidada em importantes universidades americanas e europeias: Indiana, Harvard, Berkeley, Sorbonne, Lille, Bordeaux, Ainx-en-Provence, Bonn, e Colônia. No evento, Maria José de Queiroz será saudada pela presidente da Academia Mineira de Letras, a acadêmica Elizabeth Rennó, pelo secretário de Estado da Cultura, acadêmico Ângelo Oswaldo de Araujo Santos, e apresentada por uma das mais importantes estudiosas de sua obra, a professora Lyslei Nascimento.


Lyslei Nascimento é professora de literatura na Faculdade de Letras da UFMG. É mestre em Literatura Brasileira, doutora em Literatura Comparada pela Universidade Federal de Minas Gerais e pós-doutora pela Universidade de Buenos Aires e pela Universidade de São Paulo. Atualmente é subcoordenadora do Programa de Pós-Graduação em Estudos Literários e Coordenadora do Núcleo de Estudos Judaicos da UFMG. Pesquisadora do CNPq e da Fapemig, publicou, entre outros títulos, Borges e outros rabinos, 2009, pela Editora da UFMG.


Em dissertação apresentada ao curso de Pós-graduação em Letras e intitulada “Exercício de fiandeira: Joaquina, filha de Tiradentes, de Maria José de Queiroz”, Lyslei  faz uma análise do mencionado romance de Maria José, que abrange os fatos históricos do século XVIII e a construção da vida ficcional da filha do herói da Inconfidência.


Ainda na sessão, será exibido trecho de documentário sobre Maria José de Queiroz.





SERVIÇO:

Sessão em homenagem à acadêmica Maria José de Queiroz

Data: 18 de abril

Horário: 19h30.

Local: Academia Mineira de Letras (Rua da Bahia, 1466 – Lourdes – BH/MG).

Entrada gratuita.

academiamineiradeletras.org.br

domingo, 19 de março de 2017

Humor do sofrimento

Prometeu (1610-1611), Peter Paul Rubens

Num ensaio recente, "Dostoievski, a escrita do sofrimento e do perdão", Julia Kristeva aprofunda o tema freudiano da impulsão à morte" e do "masoquismo primário", ausentes dos estudos de Freud sobre o autor de O Idiota. Em vez de transformar-se em impulsões eróticas, a "impulsão à morte" se resolve em Dostoievski, segundo Kristeva, num "humor do sofrimento". À borda da ruptura entre o Eu e o "outro", antes mesmo que a ruptura se verifique, manifesta-se o "sofrimento dostoievskiano". E a verdadeira volúpia que experimenta nada tem a ver, aos olhos da ensaísta, com a melancolia e a impulsão do abismo que ressuma das páginas de Gérard de Nerval. 

Convenha-se: a exaltação desse sentimento, apontado apenas nos grandes místicos - para os quais a dor é meio eficaz para alcançar a "via unitiva"- leva à jubilação gozosa.

QUEIROZ, Maria José de. A literatura alucinada: do êxtase das drogas à vertigem da loucura. Rio de Janeiro: Atheneu Cultura, 1990. p. 87.

sexta-feira, 17 de março de 2017

Os 31 livros de Maria José de Queiroz


Fotografia dos 31 livros de Maria José de Queiroz, na palestra na Faculdade de Letras da UFMG.
O Brasil não conhece o Brasil.

domingo, 26 de fevereiro de 2017

Limites

Euclides, vivo, incomodava a todos. Tivera êxito nos negócios, gozava de excelente fama entre as mulheres... que mais queria? É isso que importa! Nadie o entendia. Ele inquietava e escandalizava. Suas ambições escapavam ao homem comum. À força de agitar-se, de agir, de angustiar-se, foi longe demais: alcançou o proibido. Sempre me repetia que o seu maior desejo era conhecer seus própios límites: queria saber até onde iria. Em tudo. Falta sempre alguma coisa ao homem que jamais experimentou essa vertigem, confessou-me certa vez. Nesse dia, ele chegara a um dos seus abismos: o da fúria homicida. Um dos seus empregados abusara de uma indiazinha. Euclides foi procurá-lo: ele tinha de reparar o crime. O empregado, cínico, replicou que apenas se antecipara ao pai, aos irmãos ou à indiada suja que, em obediência ao hábito, se encarregariam de fazê-la mulher. Ela, índia, devia-lhe um privilégio: ele, branco, dera-lhe a provar o gosto do sexto de uma raça superior. Euclides, fora de si, atirou-o ao chão. Ao vê-lo por terra, seu primeiro ímpeto foi matá-lo, à frio. Quase sucumbiu à tentação. Era o seu límite. Vencida a vertigem, pôs o revólver na cintura. A mão direita em garra, presa ao pescoço do homem, levantou-o para aplicar-lhe punição mais eficaz: com um pontapé vigoroso, privou-o, vitaliciamente, de iniciar nos mistérios do sexo índias e brancas, sem discriminação de raça.

QUEIROZ, Maria José de. Homem de sete partidas. Rio de Janeiro/São Paulo: Record, 1999. p. 220.

terça-feira, 21 de fevereiro de 2017

O canto do cisne



Não, o cisne não canta
ao aviso da morte.
Nenhuma voz anima
o seu último silêncio
na solidão das águas.
No bico secreto,
com timbre preciso,
o peixe ágil,
o lodo, o verme.
No momento inacessível
em que os juncos adormecem,
o seu pescoço se alonga
à procura de outra forma.
É o cisne o seu próprio canto
no risco definitivo
do corpo sem metáfora.

QUEIROZ, Maria José de. Resgate do real: amor e morte. Coimbra: Coimbra Editora, 1978. p. 68.

domingo, 22 de janeiro de 2017

Yehudá Abrabanel

Yehudá Abrabanel (nome que o próprio escritor trocaria por León Hebreo - leão, atributo da tribo de Judá; hebreo, pela sua religião) nasceu em Lisboa, entre 1460-65. Era filho do célebre Isaac Abrabanel, uma das maiores figuras do judaísmo. Foi com o pai que se iniciou na filosofia e na teologia. Foi médico de profissão e como a astrologia se confundia com os estudos de medicina, sua obra está marcada pelos estudos dos astros e sua influência na vida dos homens.

QUEIROZ, Maria José de. A América: a nossa e as outras. Rio de Janeiro: Agir, 1992. p. 106.

sábado, 14 de janeiro de 2017

Qual flor sem haste

Vicente Huidobro
Dessarte, a literatura hispano-americana, qual flor sem haste, enfeita as jarras brasileiras, alimenta conversas de sobremesa, de curta duração. Ninguém se interessará em descobrir, no passado, as razões do prestígio, entre nós, de um Rubén Darío, de um Rodó ou de um Amado Nervo. Terminada a atual coqueluche, ninguém perguntará, à maneira de Unamuno, "Y antes?", nem tentará averiguar se depois de Gabriela Mistral, Miguel Ángel Asturias, Pablo Neruda, Gabriel García Márquez e Octavio Paz seremos ainda dignos de outro Nobel de Literatura. Continuaremos todos a ignorar que o teatro moderno nasce com La verdad sospechosa, de Juan Ruiz de Alarcón, que José-María de Heredia era cubano; Laforgue, Lautréamont e Supervielle, uruguaios; William E. Hudson, argentino; e que os caligramas do chileno Huidobro são anteriores aos de Apollinaire. Enquanto isso, César Vallejo mastigará grama e silêncio em Montparnasse e Enrique Banchs continuará desconhecido. Nesta América infeliz e miserável, à qual, por isso mesmo, a Academia sueca distinguiu com os seus prêmios Asturias e Neruda, talvez se leiam, algum tempo ainda, El Señor Presidente e o Canto general. Depois, tudo será naufrágio... Como está no verso do grande poeta chileno.

QUEIROZ, Maria José de. A América sem nome. Rio de Janeiro: Agir, 1997. p. 141.