domingo, 27 de setembro de 2015

Albatroz




















Albatroz:
na envergadura das asas,
a dimensão do voo.
Na alvorada,
a volúpia do espaço;
no ocaso,
a derrisão da proa.

Albatroz escarnecido
- tentação do infinito
bem cedo frustrada,
sonho de altura
convertido em burla.
Na estreiteza dos pés,
sem uso,
castigo e luxo.
Convés e marinhagem
- cenário e público.

Albatroz, Alcatraz:
nome e vínculo.
Muros, muralhas,
ferro e fogo
punem sonhos absurdos
que se quiseram reais,
sem asas
- curto voo.

Lisboa, verão de 1970.

QUEIROZ, Maria José de. Exercício de gravitação. Coimbra: Atlântida, 1972. p. 53-54.

domingo, 13 de setembro de 2015

Antônio Francisco Lisboa, enfim liberto

















Tudo claro, calado.
Nenhuma surpresa na via sacra:
Cristo, os apóstolos, a morte,
dois ladrões, muitos soldados.
Mas no azul largo do horizonte
braços e mãos nos alertam:
no alto do Matosinhos
assiste douta assembleia.

Oh profetas, nobres profetas!
Palavras encarceradas
nas letras mudas, eternas,
no gesto feito de pedra.
A voz desatada em verbo
ameaça partir no gesto.

E como saber que dizem?
Como entender-lhe a fala?
Que vozeio o seu, tão secreto?

O silêncio apenas repete
na insistência da pedra
o sonho frustrado na terra:
na tarde longa dos séculos,
prodígio de mãos e braços
de Antônio Francisco Lisboa,
enfim liberto.

Congonhas, setembro de 1972.

QUEIROZ, Maria José. Como me contaram: fábulas historiais. Belo Horizonte: Imprensa/Publicações, 1973. p. 190-192.

domingo, 6 de setembro de 2015

As coisas têm alma

Para Zibuntas Miksys
As coisas têm alma.
Deveras.
É preciso no entanto desvelar-lhes o segredo:
expô-lo à luz, ao sol, às estrelas,
despertá-lo com a força do grito,
ou com a dureza do diamante ímpio,
trazê-lo à vida, ao rumor, ao ritmo,
à pátria da dor, do relâmpago e do reflexo.

Do subentendido à evidência
emissárias de lembranças,
as coisas falam.
Ilhas de luz e sombra,
pássaros petrificados,
pérolas de profundo sigilo,
sua voz cresce,
e sobe,
cálida, vibrátil.
Numa linguagem secreta,
ali, onde desemboca o silêncio,
o mistério se manifesta:
flecha disparada, súbito aroma,
que o tempo devora
e a quietude consome.

As coisas têm alma:
múltipla, compósita, diversa.
E sua ideia em nós assiste,
queda.
Submissas ao cristal, ao mármore, à tela
- nostalgia de perfeição, chama divina,
simples gesto -
ninguém lhe pode dar senão o que tem,
em si,
benesse ou pobreza.

As coisas têm alma.
É preciso violar-lhes o segredo.

Paris, inverno de 1977.

QUEIROZ, Maria José de. Para que serve um arco-íris? Belo Horizonte: Imprensa, 1974. p. 17-18.