Maria José de Queiroz
uma literatura contra o esgotamento
quarta-feira, 20 de novembro de 2024
Não há assuntos esgotados.
terça-feira, 2 de julho de 2024
Só a imaginação nos salva do vazio | Maria Silvia Duarte Guimarães
A coletânea Como me contaram: fábulas historiais (volumes I e II), de Maria José de Queiroz, publicada em 2024, organizada por Lyslei Nascimento, professora da Faculdade de Letras da Universidade Federal de Minas Gerais, Brasil, e publicada pela editora Caravana, de Belo Horizonte, Minas Gerais, ganha uma preciosa edição. Originalmente publicado em 1973, o volume 1 foi acrescido do segundo volume, revisto pela autora, falecida em 2023.
A edição traz em sua capa uma fotografia de Nascimento, na qual é possível ver um belo anjo esculpido em cerâmica, em tons azuis, com pequenas marcas de desgaste. A imagem remete ao Barroco, a uma tradição de artistas como Aleijadinho, que marcaram a história e a arte do Brasil. Trata-se de uma suave introdução ao conteúdo da coletânea, que reúne poemas, contos e até um epitáfio que fazem referência ao passado histórico de Minas Gerais.
No primeiro volume, Queiroz entrecruza relatos de contadores de histórias, acontecimentos históricos e o que ela própria construiu ficcionalmente. Em alguns desses textos, é possível encontrar referências exatas a documentos e registros oficiais, como os de Autos da devassa da Inconfidência Mineira, ou os do Arquivo histórico ultramarino de Lisboa, bem como referências diretas e indiretas a contadores de casos e a escritores, como Jorge Luis Borges.
O primeiro volume é marcado por uma particularidade: a maioria dos títulos faz referência a uma localidade e a uma data, que remetem a Minas Gerais. No entanto, em seus textos, Queiroz não se preocupa em fazer descrições físicas dessas cidades, mas relata histórias que podem ou não ter acontecido nesses lugares. Em muitos dos textos, portanto, Barão de Cocais, Mariana, Vila Rica ou Sabará, e às datas, que vão de 1696 a 1972, surgem “como me contaram”, em “fábulas historiais”.
Pode-se afirmar, então, que há uma tensão entre a escrita da história e a escrita da ficção nos textos ali enredados, presente já desde o subtítulo “fábulas historiais”. Os textos de Queiroz podem ser considerados históricos, na medida em que possuem um forte aspecto documental, uma vez que referências a documentos e outras fontes históricas podem ser encontradas em notas de rodapé. No entanto, o livro também possui um forte aspecto fabular: a imaginação que é entrevista em meio a cidades reais e acontecimentos históricos citados. Trata-se, assim, de um texto híbrido, que mescla não apenas gêneros diversos, mas também registros de relatos orais, reais ou não, fatos históricos, também controversos, e estupenda literatura.
O conto “Vila Rica 1782”, por exemplo, narra o dilema de João Ortiz, que devia velar os cadáveres de outros escravizados que sucumbiram a uma peste. Uma noite, porém, após adormecer durante seu expediente, uma onça rouba o corpo de um jovem e, preocupado com a repercussão de sua negligência, se pergunta qual das duas mortes será a pior: no pelourinho ou nas garras da onça. Seu dilema expõe a crueldade e as consequências da violência na nossa memória.
No conto “Fazenda de Santa Vitória, setembro de 1972”, por sua vez, a narradora relata o conflito entre Joaquim Inácio de Sousa Libério e sua esposa, Emerenciana. Um dia, a mulher exige de seu marido sapatos novos, “os mais bonitos da loja: bico fino, salto-agulha, número 36, verniz preto, luzidio” (p. 77). Se não ganhasse os sapatos, não faria “nem almoço, nem janta, nem amor” (p. 77). Joaquim Inácio, então, realiza o desejo de sua esposa, no entanto, também atira doze vezes em seu peito. Emerenciana é enterrada com seus sapatos novos, estilo Luís XV. Nesse texto, a violência contra a mulher é explicitamente exposta e o assassinato dela, e por motivo fútil, é, inquestionavelmente, denunciado.
“Mariana, 1752” pode ser considerado o texto mais emblemático da coletânea. Nele, o leitor se depara não com um poema ou com um conto, propriamente dito, mas com uma lápide, na qual é possível ler o epitáfio de uma mulher chamada Maria Brites. Esta é descrita como “mestiça, sem letras, sem bens, sem terras” (p. 21), em oposição ao homem a quem serviu, Bernardo Ravasco de Oliveira Fortes, descrito como “de sangue nobre, perito em leis, valente em armas”. Em sua própria lápide, então, a descrição de Maria Brites é apagada e o senhor ganha protagonismo. Em uma nota de rodapé, Queiroz afirma: “Entre duas datas abstratas permiti-me inserir-lhe a história: é fato”. Dessa forma, em seu breve texto, a escritora retrata não apenas a vida de Maria Brites, mas de como poderia ter sido a vida de outras mulheres escravizadas e espoliadas em vida e após a morte.
Enquanto o primeiro volume é marcado por referências diretas a Minas Gerais, no segundo, essa relação se dá de forma mais sutil. Nessa parte, os títulos com os nomes de cidades mineiras dão lugar a narrativas que ampliam esse território, pondo narradores e contadores de histórias em tensão com os destinatários de suas histórias, nem sempre receptivos ou atentos ao desfiar da narrativa. Nesse sentido, China, Índia ou Itália aparecem ligando os personagens ao mundo internacional.
No conto “Vovô foi à China”, por exemplo, Queiroz narra o retorno de Vovô Miro, que havia viajado por todo o mundo e passado cerca de dois meses na China, à casa de sua família. De volta ao Brasil, o personagem desejava contar a seus netos, Patrícia, Cristiano e Renato, sobre suas viagens. No entanto, as tentativas de relatar suas aventuras de viagem são frustradas, uma vez que os netos estão mais interessados na morte de seu cachorro, Leleco, e na chegada de um novo filhote, do que na muralha da China.
Em “A biografia fantástica de Augusto Feltrinelli”, a narradora conta a história de duas famílias de origem italiana, os Busoni e os Feltrinelli, e de como seus caminhos se cruzaram. Na juventude, Maria Busoni Silveira havia sido noiva de Augusto Feltrinelli, mas o retorno da família dele para a Itália desfez o noivado. Anos mais tarde, nos anos 1970, quando Maria já era viúva de Pedro Silveira e contava com muitos netos, ela descobriu o paradeiro de um dos membros da família de Augusto: Luigi Feltrinelli. Com a ajuda de uma tradutora, Anita Casella, Maria decifra as cartas trocadas com Luigi, que revelam, aqui e ali, pormenores da vida de seu antigo amor, falecido durante a guerra. Nas entrelinhas dessa correspondência, Maria tece sua própria narrativa sobre a vida, os amores e a guerra.
Em “Buda e o ofício das trevas”, por sua vez, o leitor se depara com a história de Gabriela Rocha Mendes que, ao ver outros membros de sua família, como sua mãe e seu irmão, tornarem-se cegos após os quarenta anos, decide treinar para quando seus olhos também percam a capacidade de enxergar. Assim, antes mesmo de apresentar qualquer sintoma, ela decide estudar braile e, para o horror de seus familiares, passa a andar com os olhos vendados em casa para guardar “no tato e na audição a localização dos guarda-roupas, penteadeiras, camas e cômodas” (p. 149). A disposição da personagem aterroriza os outros membros de sua família, para quem a simples menção das palavras “cego” e “cegueira” era um tabu. No conto, não faltam referências a Borges e, em uma nota de rodapé, Queiroz mistura fatos e o que ela construiu ficcionalmente:
No Natal de 1975, recebi de Joaquim Montezuma de Carvalho, bom amigo, uma belíssima mensagem. Nela se transcrevia a notícia de que, após tratamento com células vivas, Jorge Luis Borges teria recuperado, embora debilmente, a visão. Eis o trecho que nos interessa: “Um médico amigo, parente de sua mãe, está fazendo investigações com células vivas e propôs que se lhe fizesse uma injeção. A primeira não deu resultado. A segunda, poucos dias depois, surtiu efeito. De manhã, desperto por um sonho desagradável, Borges passou a mão na testa e nos olhos. Nisso, viu a mão que, acreditou, fosse parte do sonho de que saía (p. 150).
Como se vê, Queiroz justapõe referências a Borges em sua ficção, valendo-se de sua erudição e de sua capacidade ímpar de entremear histórias e fábulas, prosa e poesia, arte e registro histórico. Em ambos os volumes da coletânea, o pano de fundo é a terra mineira, com seus vãos e desvãos, sua história miúda, vista de baixo. Maria José de Queiroz é uma escritora solar. Minas Gerais é iluminada por sua obra ímpar e memorável. Ler os seus textos ilumina a cultura e as tradições mineiras que atravessam o Brasil e a sua literatura.
Serviço
Livro: Como me contaram: fábulas historiais (volume 1 e 2).
Autora: Maria José de Queiroz
Editora: Caravana
Ano: 2024
Páginas: 168
Fonte: https://www.incomunidade.pt/so-a-imaginacao-nos-salva-do-vazio-maria-jose-de-queiroz-maria-silvia-duarte-guimaraes/?fbclid=IwZXh0bgNhZW0CMTEAAR0I137M7kJiOB-0Tx1nLEqDYk_WYfAcGWIF1LZKovOr-Py3eRLVxlhi1_U_aem_yffOtGw3BblXpjNCRVYZjA
quinta-feira, 27 de junho de 2024
sexta-feira, 17 de maio de 2024
São João Del Rey, 1898.
São João Del Rey, 1898.
terça-feira, 7 de maio de 2024
Chamada Revista Caligrama: Dossiê Maria José de Queiroz
Fotografia: Lesle Nascimento
CHAMADA: Dossiê Maria Jose de Queiroz - Maria Jose de Queiroz
quinta-feira, 8 de fevereiro de 2024
Publicação de "Como me contaram: fábulas historiais (volume I e II)
O primeiro volume de Como me contaram… fábulas historiais, publicado por Maria José de Queiroz em 1973, sai, nesta edição, em 2023, junto ao seu segundo volume. Herdeira de ancestralidades heroicas, em culto aos “deuses lares” e à mitologia da família, a escritora transita, nesses preciosos poemas, contos, lápides, pela história de Minas Gerais, metáfora do Brasil, conferindo às narrativas, um caráter fabulatório inigualável. Minas Gerais é, pois, estado d’alma e está além do som. A cronista, de prodigiosa memória, inscreve-se no texto registrando fábulas e acontecimentos, resgatando, pela escrita, as narrativas ouvidas, lidas e reconstruídas pela imaginação. As histórias ou realidades, sempre “bons pertences” da terra mineira, são organizadas num misto de folclore e de “verdade verdadeira”, ao sabor de Garcilaso de la Vega e de Jorge Luis Borges. Como um mosaico de “fábulas historiais”, ela vai juntando, por bricolagem, os pedaços da história. Desse exercício de mosaísta da escritora, resulta um quadro literário dos mais requintados. Marcados pelos nomes das cidades mineiras, Mariana, Vila Rica, São João Del-Rei, e pelas datas dos acontecimentos, 1752, 1782, 1898, esses registros parecem despretensiosos e quase corriqueiros. No entanto, lapidares, as narrativas dedicadas ao condenado de Vila Rica, a Maria Brites, ao bibliotecário do Caraça ou ao Lobisomem da Quaresma brilham na trama do bordado. Nessas histórias, é possível perceber uma técnica sofisticada, um rigoroso exercício de composição textual. Ao entrelaçar o fio da história com o fio da ficção, o texto escrito, nas mãos da cronista, é bordado e tapete com mil fios e mil histórias, idas, vividas e reinventadas. Há de se levar em conta, então, que a história, no registro de Queiroz, é “como me contaram”, ou seja, tem o aval de quem conta um conto, de quem aumenta ou subtrai ponto, linha, nó. Se qualquer destino pode ser inventado ou construído, o leitor deve estar atento ao risco do bordado, à construção desse tecido-texto que não tem por base somente o fio do que foi documentado, mas também o que foi desfiado, fiado e porfiado. Minas, como uma espécie de biblioteca infinita, exibe, nas fábulas historiais de Maria José de Queiroz, inúmeras e inigualáveis preciosidades narrativas. Vamos a elas!
Lyslei Nascimento
Fonte: https://caravanagrupoeditorial.com.br/produto/como-me-contaram-fabulas-historiais-volume-i-e-ii/?fbclid=IwAR2zIxIWxZAhm1UGgPeRujbk7sFzB862mpKXyxnwahOtwYksmyMoYUt07TA
quarta-feira, 13 de dezembro de 2023
José e Maria
José viu Maria tão bela em maio,
primavera chegou, chegou afinal.
Um lírio floriu tão tardio no outono,
uma estrela brilhou no céu matinal.
Anjo santo veio a terra. Era março.
Dezembro em Belém, boa nova é Natal.
José viu Maria tão bela em maio,
primavera chegou, chegou afinal.
Um lírio floriu tão tardio no outono,
uma estrela brilhou no céu matinal.
Paz na terra, glória a Deus nas alturas.
Os três reis magos - sagração augural.
José viu Maria tão bela em maio,
primavera chegou, chegou afinal.
Um lírio floriu tão tardio no outono,
uma estrela brilhou no céu matinal.
José viu Maria tão bela em maio,
Deus se fez homem, eu sou imortal.
Belo Horizonte, 20 de maio de 1983.
QUEIROZ, Maria José de. José e Maria. In: QUEIROZ, Maria José de. Desde longe. Belo Horizonte: Caravana, 2020. p. 81.
quinta-feira, 16 de novembro de 2023
domingo, 1 de janeiro de 2023
Livro: Exercício de Fiandeira: Joaquina, filha do Tiradentes, de Maria José de Queiroz (2022)
terça-feira, 18 de outubro de 2022
Bibliografia MJQ
QUEIROZ, Maria José de. A poesia de Juana de Ibarbourou. Belo Horizonte: Imprensa da UFMG, 1961.
QUEIROZ, Maria José de. Do indianismo ao indigenismo nas letras hispano-americanas. Belo Horizonte: Imprensa da UFMG, 1962.
QUEIROZ, Maria José de. A literatura encarcerada. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1971.
QUEIROZ, Maria José de. Cesar Vallejo: ser e existência. Coimbra: Atlântida, 1971.
QUEIROZ, Maria José de. Exercício de levitação. Coimbra: Atlântida, 1971.
QUEIROZ, Maria José de. Presença da literatura hispano-americana. Belo Horizonte: Imprensa da UFMG, 1971.
QUEIROZ, Maria José de. Exercício de gravitação. Coimbra: Atlântida, 1972.
QUEIROZ, Maria José de. Como me contaram... fábulas historiais. Belo Horizonte: Imprensa/Publicações, 1973.
QUEIROZ, Maria José de. Exercício de fiandeira. Coimbra: Coimbra, 1974.
QUEIROZ, Maria José de. Ano novo, vida nova. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1978.
QUEIROZ, Maria José de. Invenção a duas vozes. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1978.
QUEIROZ, Maria José de. Resgate do real: amor e morte. Coimbra: Coimbra Ed., 1978.
QUEIROZ, Maria José de. Homem de sete partidas. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1980.
QUEIROZ, Maria José de. Para que serve um arco-íris? Belo Horizonte: Imprensa da UFMG, 1982.
QUEIROZ, Maria José de. Joaquina, filha do Tiradentes. Edição. São Paulo: Marco Zero, 1987.
QUEIROZ, Maria José de. Operação Strangelov: a ecologia e o domínio do mundo. Belo Horizonte: Vigília, 1987.
QUEIROZ, Maria José de. A comida e a cozinha: iniciação à arte de comer. Rio de Janeiro: Forense, 1988.
QUEIROZ, Maria José de. A literatura alucinada. Rio de Janeiro: Atheneu Cultura, 1990.
QUEIROZ, Maria José de. Sobre os rios que vão. Rio de Janeiro: Atheneu Cultura, 1990.
QUEIROZ, Maria José de. A América: a nossa e as outras. Rio de Janeiro: Agir, 1992.
QUEIROZ, Maria José de. Joaquina, filha do Tiradentes. 2. ed. Rio de Janeiro: Círculo do Livro, 1992.
QUEIROZ, Maria José de. O chapéu encantado. Belo Horizonte: Lê, 1992.
QUEIROZ, Maria José de. A literatura e o gozo impuro da comida. Rio de Janeiro: Topbooks, 1994.
QUEIROZ, Maria José de. Amor cruel, amor vingador. Rio de Janeiro: Record, 1996.
QUEIROZ, Maria José de. Refrações no tempo: tempo histórico, tempo literário. Rio de Janeiro: Topbooks, 1996.
QUEIROZ, Maria José de. A América sem nome. Rio de Janeiro: Agir, 1997.
QUEIROZ, Maria José de. Os males da ausência ou A literatura do exílio. Rio de Janeiro: Topbooks, 1998. (Prêmio JABUTI, de Ensaio, Câmara Brasileira do Livro, 1999).
QUEIROZ, Maria José de. Homem de sete partidas. 2. ed. Rio de Janeiro: Record. 1999.
QUEIROZ, Maria José de. Joaquina, filha do Tiradentes. 3. ed. Rio de Janeiro: Topbooks, 1999. (Versão integral com posfácio da autora).
QUEIROZ, Maria José de. Joaquina, filha do Tiradentes. 3. ed. Rio de Janeiro: Topbooks, 1999. (Versão integral com posfácio da autora, e-book).
QUEIROZ, Maria José de. Vladslav Ostrov: príncipe do Juruena. Rio de Janeiro: Record, 1999.
QUEIROZ, Maria José de. Em nome da pobreza. Rio de Janeiro: Topbooks, 2006.
QUEIROZ, Maria José de. A literatura encarcerada. 2. ed. Belo Horizonte: Caravana, 2019.
QUEIROZ, Maria José de. Terra incógnita. Belo Horizonte: Caravana, 2019.
QUEIROZ, Maria José de. Desde longe. 2. ed. Belo Horizonte: Caravana, 2020.
QUEIROZ, Maria José de. Amor cruel, amor vingador. 2. ed. Belo Horizonte: Caravana, 2021.
QUEIROZ, Maria José de. O chapéu encantado. 2. ed. Belo Horizonte: Ave, 2022.