O
gozo impuro da comida segundo Maria José de Queiroz
Lyslei Nascimento
UFMG
Os
animais pastam, o homem come; mas apenas o homem de espírito sabe comer. E quem sabe comer é gastrônomo. A
dignidade da gastronomia apoia-se não só numa forte estrutura econômica, que
lhe confere peso, medida e cifra, como se exalta, igualmente, no refinamento da
mais imediata das funções fisiológicas. Assim, a alegria de sentar-se à mesa
para responder a uma das leis da sobrevivência deve antecipar-se na leitura do
cardápio, expandir-se na discussão das iguarias, concretizar-se na degustação e
prolongar-se em gesto e palavra de louvor à sua forma, feitio, cor e
apresentação. O conviva celebra no silencioso e recolhido ato de saborear a
comida o talento do artista criador. Pouco importa o caráter efêmero da obra
criada: a receita é partitura que se repete e volta a deliciar indefinidamente.
Maria José de Queiroz
Desde a Bíblia, a comida, a
sedução e o pecado encontram-se entrelaçados. Há, na insubordinação de Eva, algo
de tão lascivo que comer do fruto proibido tornou-se, misticamente, muito mais
do que abocanhar uma vulgarmente apelidada maçã. Há, nesse encontro entre a
mulher, a serpente, o fruto proibido e o homem, perigo e transgressão. Afinal,
com a desobediência, deixamos de ser meros bonecos de argila e nos tornamos
humanos, tendo que, com sabedoria, humor e arte, vencer nossa finitude, nossa
mortalidade.
Na história de Branca de Neve, a perigosa
maçã se intromete no felizes para sempre. Em vez da serpente, uma bruxa com o
suculento e vermelho fruto. Em vez do tolo Adão, um príncipe para salvar Branca.
Como é possível perceber, nessas histórias da carochinha, o homem é promovido
de patente. A mulher de agente (do mal, é bem verdade) é rebaixada à vítima
(apesar de seu duplo ser a Bruxa). Mas a maçã está lá. Linda e suculenta.
Vermelha e terrível.
Se é possível acompanhar uma
história da alimentação e da transgressão da Bíblia até os contos de fada – em histórias que
vão de Abraão, que prepara uma ceia para os anjos que lhe anunciam o filho tão
esperado; a Esaú e Jacó, que negociam a primogenitura com um prato de sopa de
lentilhas; até o milagre da multiplicação dos pães e a nefasta última ceia,
quando Judas recebe das mãos de Jesus um bocado de pão mergulhado em vinho – na
literatura, na arte, a relação entre a comida e o gozo impuro da comida é ritual
e festa.
Talvez Giuseppe Arcimboldo (1226–1593)
possa iluminar, nosso olhar sobre a obra de Maria José de Queiroz. Embora o
caráter sensual e, porque não dizer, impuro, esteja também presente no trabalho
do grande pintor maneirista, é a multiplicidade que nos guiará. Como todos
sabem, a obra do artista
italiano inclui as séries “Os quatro elementos” e "As quatro
estações". Nessas pinturas, ele usou, pela primeira vez, imagens da
natureza, tais como frutas, verduras e flores, para compor fisionomias humanas.
A natureza compósita das figuras como estratégia de
construção dirige o nosso olhar para o ensaio de Queiroz. O homem, a partir da
perspectiva desses dois artista, um da imagem, outro da palavra, não é só o que
come, mas, também, o que ele faz. Daí as pinturas de profissões com a mesma técnica
de composição: o jardineiro, o bibliotecário e o cozinheiro.
Walter Benjamin afirma que se houvesse uma musa do romance
seu emblema seria o cozinheiro. Ela eleva o mundo de seu estado bruto a fim de
criar algo apto para comer, para realçar a plenitude de seu sabor. Pode-se até
ler o jornal (ou, mais contemporaneamente, entrar nas redes sociais) enquanto
se come, mas será possível, comer e ler um romance? Para o filósofo, essas
seriam duas ações conflitantes, porque os livros não devem ser lidos da mesma
maneira.
Romances existem para serem
devorados, assegura o filósofo. Ler um romance é, assim, um ato voluptuoso, de
absorção, não um ato de empatia. Para ele, o leitor não deve se imaginar no
lugar dos personagens, mas assimilar o que acontece com eles. Desse modo, o
relato vivido das experiências seria uma apetitosa guarnição em que um prato
nutritivo chega à mesa. Haveria, assim, uma dieta crua de experiência – assim
como há uma dieta crua para o estômago – a saber: as próprias experiências. A
arte do romance, como as artes culinárias, começa além dos ingredientes crus.
Quantas substâncias nutritivas existem e que não são apetitosas em estado
bruto! Quantas experiências são aconselháveis para ler, mas não para ter!
Alguns leitores são atingidos com tanta força que teriam sido devastados se
tivessem sofrido as experiências diretamente! Assim, é preciso plantar, colher,
lavar, cortar, temperar, cozer. Desse modo, uma verdadeira alquimia transforma
o cru em cozido.
Voltemos às
imagens compósitas de Arcimboldo e à multiplicidade para que possamos voltar à
comida segundo Maria José de Queiroz. Para Italo Calvino, em suas propostas
para o milênio, trata-se de multiplicidade a noção de obra como enciclopédia (ou
seja, um conjunto de saberes que se articulam como um método de conhecimento, uma
rede de conexões entre fatos, pessoas e coisas do mundo. Sendo assim, um rolo, uma embrulhada, um aranzel
que é estruturado sem se perder ou atenuar sua complexidade inextrincável;
também a presença simultânea de elementos os mais heterogêneos que concorrem
para a determinação de um evento; cada objeto mínimo visto como o centro de uma rede de relações de que o
escritor não consegue se esquivar, multiplicando os detalhes a ponto de suas
descrições e divagações se tornarem infinitas; a leitura ou a observação de um trabalho dessa natureza
constitui um modo de ler, de onde, de qualquer ponto que parta, o
discurso se alarga de modo a compreender horizontes sempre mais vastos, e se
pudesse desenvolver-se em todas as direções acabaria por abraçar o universo
inteiro.
Nos mais de 30 livros da escritora
é possível vislumbrar uma poética enciclopedista que a faz afeita aos grandes
livros, aos temas universais, que terá a comida como um deles. Antes de chegar
ao tema central desta exposição, a fim de demostrar o caráter enciclopédico da
escritora, cito alguns títulos: A
literatura encarcerada, publicado em 1981, e, em sua segunda edição (revista
e atualizada), em 2019, pela Caravana Editorial, de Belo Horizonte; A literatura alucinada: do êxtase das
drogas à vertigem da loucura, de 1990; A
literatura e o gozo impuro da comida, publicado em 1994; A literatura do exílio, ou Os males da
ausência, de 1998.
O ensaio A literatura e o gozo impuro da comida foi precedido por A cozinha e a comida: iniciação à arte
de comer, publicado em 1988. Nesses dois livros, Maria José de
Queiroz revela, na cozinha delirante da literatura, e sob os olhares ávidos do
leitor, a mesa e suas relações com a arte, desde Homero até Pedro Nava,
passando por Eça de Queirós e Machado de Assis. Do sumário à tábua de matérias,
a comida é pasto para a erudição e o deleite do leitor. Como não é possível
deixar de perceber, delinear a mesa a partir da literatura amplia o projeto de
Eduardo Frieiro, enciclopedista precursor, que em Feijão, angu e couve, de 1982,
realiza um precioso ensaio sobre a comida dos mineiros. Ao
compor esse nosso cardápio, Frieiro lança as bases para a pesquisa que a
discípula, posteriormente, desenvolve e à qual dá dimensões para além das
montanhas de Minas.
A despeito de uma aparente
singeleza (de uma singeleza sensualista, nos afirma o professor Luiz Otávio Barreto Leite), Maria José
de Queiroz conjuga a pesquisa histórica (tão evidente em A literatura encarcerada) com a memória dos sentidos, tão vívidos
nos cheiros, nas cores e nos sabores como em seu romance Joaquina, filha do Tiradentes. Em A literatura e o gozo impuro da comida, a ensaísta produziu uma “verdadeira
reforma de compreensão dos prazeres da mesa enquanto objeto de investigação”. O
estudioso chama a atenção para o fato de que somente livres do preconceito que
atribui ao paladar e ao olfato condição inferior à visão e à audição é que
estaremos aptos a participar do banquete da civilização. É assim que, a partir
dos cinco sentidos, Queiroz promove uma reavaliação das percepções gustativa e
olfativa, muito antes da avalanche de “shows de realidade”, das batalhas de
bolos, incluindo os bolos de copo, de churrascos, de doces; dos livros de
dietas sem glúten, com glúten; com lactose, sem lactose; com açúcar e sem
açúcar; também os livros sobre alimentos macrobióticos, energéticos, detox,
termogênicos, dietéticos, lights, gourmets, orgânicos, veganos,
hidropônicos e funcionais... Essa assombrosa lista quase borgiana parece não ter
fim.
Ao estudar a
comida na literatura e o papel da gastronomia na arte da palavra, Queiroz elabora
um rico painel – desde a Antiguidade clássica até o século 20 – buscando na
história, na antropologia, na filosofia, na literatura e em outros tantos saberes
a comida, a cozinha, a culinária, o apetite e o prazer de comer, a gula e a
fome e todo um imaginário que circunscreve a alimentação. O olhar de
enciclopedista da escritora – que tudo quer ver e devorar – é metódico e
múltiplo.
Ao reunir textos e
escritores da tradição literária a fim de explorar o tema da comida, Queiroz instaura
um ponto de origem que é apresentado segundo uma lógica peculiar: ela organiza
e classifica os temas por ordenação cronológica, histórica ou geográfica. Essa
estratégia é pedagógica, busca, sobretudo, o ensino, mas exibe, também, o
método de quem vê a história literária como um fenômeno vivo, em que uma
sucessão de acontecimentos, de temas e de ideias se interrelacionam.
Por isso, sua abordagem sobre a Antiguidade
na Teogonia, de Hesíodo, ou seja, no
mito de Prometeu, que rouba o fogo dos deuses e dá aos homens. Pergunta a
ensaísta: “Não foi o fogo que condicionou o tipo de regime destinado aos
mortais?”. O castigo infligido a Prometeu, ficar amarrado a uma rocha por toda
a eternidade enquanto uma águia devora-lhe o fígado, que cresce novamente no
dia seguinte, remete “a fome dos mortais, jamais saciada, que renasce ao correr
dos dias e das horas. Num eterno recomeçar, o estômago não lhe permite esquecer
o ônus da sua condição”.
Para Hesíodo, a
necessidade biológica está associada, de forma negativa, à ideia de maldição: o
homem “é escravo do ventre”, “do ventre, do sono e da libertinagem”, completa Queiroz,
citando Sócrates. A voracidade, a intemperança e a fome fazem com que a comida
(e o ato de comer) se associe menos ao prazer do que a uma necessidade que deva
ser domada ou sentida como algo incômodo.
Nos grandes poemas
homéricos, Ilíada e Odisseia, a comida, ou o ventre,
metonimicamente, aparece ligada a uma série de situações que cumpre finalidades
especificas em uma coletividade, ora visto de modo negativo (o “ventre
maldito”, o “ventre odioso”, o “ventre funesto”, “que traz tantos males”,
“tantas aflições traz aos mortais”), ora desempenhando funções restauradoras do
corpo e do espírito. Os banquetes festivos e fúnebres, as ceias, as reuniões em
torno da mesa, a comida na cultura grega, em geral, é, para a ensaísta, ligada
ainda à hospitalidade, nos quais se selavam, sobretudo, os compromissos
sociais.
A mesa exerceria,
assim, uma função civilizadora que, como afirma Queiroz, “alcança no simpósio
de Platão a sua mais alta relevância”. A ensaísta associa a comida, agora, a
sua quase e inevitável aproximação com o apetite sexual. Fome e amor se complementariam,
e ela vê, no simpósio, nessa forma de encontro “inventada” por Platão, em O banquete, a transformação do vinculo
mesquinho que Ulisses via nas necessidades do estômago com o novo modo como a
comida, a culinária e os rituais de convivência são convertidos, sublimados, em
algo que, não só remete aos prazeres do ventre quanto aos do espirito. Os
textos analisados gravitam em torno de um subtema, que completa uma ideia cujo
fim volta ao ponto de origem.
No posfácio, a
estudiosa explicita o seu método como “um encadeamento natural que não nos
permite, por exemplo, ler Pedro Nava antes de Rabelais ou Fielding antes de
Cervantes. Há um fio condutor, mais do que uma ordem lógica, que une todos
esses escritores: é a sua maneira de sentir. De sentir o mundo. De cheirá-lo.
De sorver a vida, de devorá-la. Ou de oferecer-se como alimento e deixar-se
devorar”.
Para além do saber
que está inscrito no texto de Queiroz, a ensaísta cria um modo de conceber
essas relações, não só dando uma amostragem do tema gastronômico na história
literária, e o tratamento dado a esse tema nas grandes obras da literatura, mas
rastreia essas relações (desde um suposto inicio), e faz leitor observar que há
uma espécie de tradição do assunto e o tema da comida e suas diversas
manifestações se apresentam como um topos
literário.
Da Roma antiga,
Queiroz enfoca “O banquete de Trimalquião”, fragmento do inclassificável Satíricon, de Petrônio. Nesse estudo,
ela aborda as descrições
detalhadas do jantar luxuoso, extravagante e decadente oferecido pelo que se
poderia chamar um "novo-rico" romano. Segundo a pesquisadora, nasce,
com esse texto, um gênero “explorado, com êxito, no teatro e no cinema”, como
nos filmes de Luis Buñuel e Peter Greenaway”.
Nesse itinerário, Queiroz
não se furta de analisar, também, uma espécie de tratado dos excessos
gastronômicos que é Gargântua e
Pantagruel (1532), de François Rabelais. A comida, nesse texto, reflete a
infinita gula desses dois gigantes, que bebem lagos de vinho e
comem rebanhos de gado. Gargântua, pai de
Pantagruel, nasce em um extravagante banquete, sua mãe Gargamelle se empanturra
de tripas e no meio da confusão dá à luz a Gargântua, que nasce gritando:
“Beber! Beber! Beber!”. A mordaz sátira de Rabelais é descrita e analisada por
Queiroz que busca acompanhar as aventuras dos dois gigantes, vendo, nos
excessos alimentares, a paixão criadora, gulosa e fecunda.
Já no périplo de Lazarrilo de Tormes, de 1554, “a fome
passa a ser o seu tema de estudo. Segundo a autora, “não se cuida, nesse enredo
de inspiração picaresca, do requinte da mesa nem da qualidade das iguarias aí
servidas. O que importa ao pobre Lázaro, guia de cego, é matar a fome.” De
Quevedo, a ensaísta trata de A vida de
Buscón. Também nele, a fome aparece, mas também o deleite para com a
comida. O personagem fecha os olhos para melhor degustar o saboroso vinho. Um jarro
é chamado de “doce e amargo jarro”. Ao contemplar pães, guardados em uma arca,
chama-a de “aquela cara de Deus”, e como não podia comer os pães, enchia a arca
de “mil beijos”. Desse modo, ele beija, amorosamente, o que não pode comer
apontando, com essa atitude, a ato amoroso, desejo, encantamento.
Do século 19, Maria
José de Queiroz estuda a gastronomia francesa. Para a ensaísta: “A obra de
Balzac virá à luz. Encruzilhada gastronômica das letras, a Comédia humana abre diante do leitor o copioso cardápio francês.” Parte
desse imenso roteiro gastronômico vai sendo deliciosamente descrito e analisado
de forma a exibir ao leitor uma verdadeira enciclopédia da comida francesa a
partir de Balzac.
Na Comédia, de Eugenie Grandet, Queiroz investiga um pecado capital: a avareza. O
sovina Grandet “estendia aos gestos e às palavras a mesma parcimônia com que
dirigia a economia doméstica e os negócios. Resolvia, com quatro frases curtas,
todas as dificuldades da vida e do comércio: “não sei”, “não posso”, “não
quero”, “veremos”. Nessa sovinice material e linguística, Queiroz observa como
ela se desdobra na rebeldia da sobrinha Eugenie (e de seu amor por Charles) e
da criada Nanon. O açúcar roubado da despensa do velho Grandet, por Eugenie,
para adoçar o café de Charles, é, sugestivamente, aproximado à paixão pelo
primo.
Na parte dedicada
ao século 19 no Brasil e em Portugal, a mesa portuguesa ganha merecido espaço.
Nos romances O crime do Padre Amaro, O primo Basílio, Os Maias, A ilustre casa de Ramires, As cidades e as serras, de Eça de
Queirós, a ensaísta encontra o requinte do tema gastronômico no escritor
português. Afinal, citando o crítico José Quitério: “nem mesmo [em] Camilo ou
Aquilino – são tão constantes, copiosas, quase avassaladoras as alusões, referências,
descrições e sequências de índole gastronômica”.
O século 19, no
Brasil, contrariando opiniões de críticos que diziam que entre nossos
escritores havia ”uma indiferença pelos prazeres da mesa”, uma “ausência do
‘senso gastronômico’”, que nossos escritores “não se detiveram muito em
comezainas”, Queiroz com fartos exemplos retirados de Machado de Assis, Aluísio
Azevedo, Raul Pompeia, busca corrigir essa ideia, mostrando que há na
literatura brasileira um “sensualismo alimentar”, não, como “uma tradição gastronômica,
à francesa”, mas que revelam que comida e linguagem se associam de forma contundente.
Machado de Assis,
modelo de temperança e sobriedade, é lido e descrito a partir de uma sucessão
de exemplos que trazem, ao contrário de seu comedimento, uma volúpia e uma
grande delícia. Afinal, ao dedicar as memórias póstumas ao verme que lhe come
as carnes, o personagem Brás Cubas dá o tom do livro: o destino do homem é
comer e ser comido. Desde “o primeiro encontro de Brás Cubas com a espanhola,
as metáforas alimentares condicionam-se às pulsões da libido”, escreve Queiroz.
As palavras e o apetite também se juntam, em Machado, deixando vislumbrar um
alto teor de sugestão carnal. Personagens que apalpam com olhos, ouvem, cheiram
e gostam. “O requinte dos “temperos”, a “ternura” da carne, o “rebuscado” das
formas, “o comer virgulado de palavrinhas doces”, “palavras de mel”, “línguas
de rouxinol”, “peito de perdiz à milanesa”, “faisão assado”, “pastelinhos”,
“compotas de marmelo”.
O libidinoso
vocabulário de Machado é, assim, explorado de forma surpreendente, como uma
lista de deliciosos deleites. Ela refere-se, nesse contexto, ao narrador Brás
Cubas: “corria um burburinho alegre, um palavrear de estômago satisfeito; os
olhos moles e úmidos, ou vivos e cálidos, espreguiçavam-se ou saltitavam de uma
ponta à outra da mesa, atulhada de doces e frutas, aqui o ananás em fatias, ali
o melão em talhadas, as compoteiras de cristal deixando ver o doce de coco,
finamente ralado, amarelo como uma gema, – ou então o melado escuro e grosso,
não longe do queijo e do cará”.
Do conto “As bodas de Luís Duarte”, ela ressalta que “o
menino do conto, O Tonico, se antecipa às visitas e quer gelatina. Pra evitar
uma “cena grave”, a mãe atende, contrariada o seu pedido. Satisfeito o
capricho, Antonico come sem vontade: “levava uma colherada à boca, demorava-se
tempo infinito rolando o conteúdo da colher entre a língua e o paladar, ao
passo que a colher, empurrada por um lado formava na bochecha direita uma
pequena elevação. Ao mesmo tempo agitava o pequeno as pernas de maneira que
batia alternadamente na cadeira e na mesa. O mole dos olhos e o mole da
gelatina, o cristal líquido deixando ver o doce, a consistência do melado, a
descrição da criança mimada, primor”.
Já do século 20, Queiroz
estuda o hilário e revelador conto “O peru de natal”, de Mario de Andrade; a
deliciosa deglutição do Bispo Sardinha por nossos índios antropófagos, lembrada
por Oswald de Andrade; a festa do apetite e dos ritos religiosos de Jorge
Amado, entre outros tantos escritores mais frugais, como Érico Veríssimo e Ciro
dos Anjos. Mas foi em Pedro Nava que ela viu um modelo do que seria um escritor
que tratou com maestria a comida.
Para a escritora,
“nenhum outro escritor brasileiro se ocupou, com maiores vagares, de nossos
hábitos culinários. E como a história da sua vida, enxertada em frondosa
genealogia, se arraiga em terras de Minas, mato dentro, derivando, serra
abaixo, na direção do Atlântico até os confins do Ceará e do Maranhão, marcam
encontro, no seu paladar, os gustemas de metade do país. Impossível passar ao
largo de sua mesa. Além de abrir-nos, de leste a oeste, o mapa das cozinhas
regionais, seus livros nos sugerem cardápios, reproduzem receitas seculares,
divulgam tabus e mostram que podemos aspirar sem complexo, a um verbete no Larousse gastronomique. Também sabemos
comer”.
A ensaísta vai
descrevendo as metáforas, os símbolos, as associações e as analogias cujas imagens
de comida e de bebida vão se entretecendo com as descrições que o memorialista
faz da infância, da família, da sua terra. O linguajar mineiro, por exemplo, descrito
por Nava é lembrado pela escritora nos seguintes termos: “os dizeres de Minas
valem ouro. Suas expressões, frases feitas, são como bom-bocados do seu queijo,
como um golão de cachaça escorrendo no queixos, um naco de carne de porco, de
toucinho, de torresmo”.
Para
Queiroz, a obra de Nava comunica em silêncio um mundo de todos os sentidos,
vividos na memória e repostos no instante do presente, são madaleines proustianas que vão do caviar ao suspiro, do queijo à
carne, do vinho ao beijo. De acordo com Luiz Horta, Nava seria o Proust
brasileiro, se Proust não fosse tão frágil e conseguisse descrever uma feijoada
como Nava o fez. Tema, aliás, recorrente também na Música Popular Brasileira.
Cozinhar, desse
modo, para Maria José de Queiroz, é um milagre esperado, no lar e fora dele;
escrever bem de cozinhar é excelência de receituário; escrever bem dos
mistérios do paladar, de suas implicações políticas, científicas, é melhorar o
convívio da espécie humana, tornando inteligível, poético, inesquecível o
difícil pão de cada dia. Esse itinerário gastronômico, à maneira da multiplicidade
presente na obra de Arcimboldo, instiga a leitura da obra dessa grande
escritora brasileira, e, também, estimula a leitura dos grandes livros e dos
grandes autores por ela elencados nesse verdadeiro cardápio literário. Porque,
como afirmou Maria-Antoine Carême, “quando não houver cozinha no mundo, não haverá
literatura, nem inteligência brilhante e rápida, nem inspiração, nem relações
duradouras; não haverá tampouco unidade social”.
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