Veronica Veronese, de Dante Gabriel Rossetti, 187 |
Lyslei
Nascimento
UFMG
O primeiro livro de poesia de Maria José de
Queiroz, Exercício de levitação, foi publicado em 1971, em Coimbra. [1] Além de revelar uma busca quase mística pela palavra essencial, essa coleção de
poemas constitui-se como uma profissão de fé da poetisa. A levitação, a
sensação de voar ou flutuar, tem, em vários deles, um pendor metalinguístico,
ou seja, uma tendência do texto de falar sobre sua própria construção. Digna de
nota é a leveza presente em “Receita para fabricar outono” e “Supérfluo”. No
primeiro poema, o verso “verbo de dilatada ressonância” se abre e faz ecoar os
sentidos; já em “um inverno monologal”, ele se fecha e sugere um solilóquio.
Ambos insinuam o paradoxo da palavra e da voz entre a exatidão e a
multiplicidade. No segundo poema, um jogo entre os vocábulos “fluir” e “fruir”
revela a voz que brota, tem um percurso e apresenta, numa potencialidade irredutível,
a poesia, a posse e o prazer.
Em Exercício de gravitação,
publicado em 1972, também em Portugal,[2]
a notação poética gravita sob o signo de Jorge Luis Borges, para quem “um livro
é todos os livros” e o passado, o presente e o futuro “concentram-se no segundo
de insaciável relógio”. Por isso, a leitura imprescindível de “Eterno retorno”,
“Em tempo e ritmo de tango” e “A serviço do verbo”. No primeiro poema, o mito
pode ser vislumbrado no relógio, “metrônomo irritante” a devorar o tempo: “tudo
pesado, contado, distribuído”; no segundo, a música e o tango conferem ao texto
ritmo e desenvoltura; e, no último, a voz lírica confessa a fascinação pela
palavra, encarada como um “milagre cotidiano”, “herança, por páginas semeadas”
e “verso, maduro”.
Entre um exercício e outro, surge, em 1973,
a coletânea Como me contaram: fábulas historiais, publicada em Belo
Horizonte.[3]
Híbrido, multiforme, esse conjunto de poemas, narrativas curtas e a lírica
inscrição de uma lápide se abre com o poema “Minas Gerais, “Estado d’alma”, em
homenagem a Manuel Bandeira, e se fecha com “Minas além do som, Minas Gerais”,
dedicado a Carlos Drummond de Andrade. Desde os títulos, o leitor percebe que
está diante da inscrição de Minas e de dois poetas maiores como os guardiões
dos textos que, entre um e outro, revelam, a partir dos títulos das cidades de
Minas – São João del-Rey, Pitangui –, ou muito além da história, da geografia,
dos documentos e registros oficiais. A poesia, é preciso registrar, não aparece
somente nos poemas, ela está implícita, também, nos textos em prosa e no
epitáfio magnífico e inesquecível para Maria Brites, em “Mariana, 1752”.
Em 1974, a poesia acontece com o título de Exercício
de fiandeira, outra publicação em terras lusitanas.[4]
Sob um ritmo alucinado, “fia, fia, fiandeira, tua roca em monotonia”, a voz
lírica, em “malhas de ponto largo” e “fuso de fio inconsútil”, tece, enovela,
corta e arremata, como no poema “Fiandeira de longo fio”. As mulheres da
Inconfidência, tecelãs de vária história, comparecem duas moiras iluminadas:
Chica da Silva e Marília de Dirceu, ambas a desenredar velhos novelos, corrigir
passados enganosos e desencantar amores. Outras mulheres, outros fios:
Penélope, Dido e Helena, entrelaçadas na biografia, com linhas e rendas
encontram-se nas montanhas de Minas.
Do latim, Maria José de Queiroz explora,
poeticamente, o Resgate do real: amor e morte, publicado em 1978, em
Coimbra.[5]
Ao traçar “itinerários da morte”, nas mais variadas culturas e em múltiplos
significados, de Osíris ao canto do cisne, a poetisa constrói uma série de
poemas na qual o fim da existência é cantado e decantado, no sentido de elogiar
e, também, no de remover os excessos ou impurezas. Nesse sentido, amor,
amoris, amorem, amori, amore são, sobretudo, declinações, formas de se
inscrever no amor, na vida, a fim de resgatar do frio do esquecimento, da
afasia, da solidão e da morte, o poeta, o enamorado.
Em Para que serve um arco-íris?,
escrito no verão de 1974, em Paris, e publicado em 1982, em Belo Horizonte,[6]
a escritora manipula, no sentido alquímico, palavras, sons e imagens. Esses
elementos deixam entrever um apelo aos sentidos do leitor. O arco-íris, metáfora
da poesia, na imagem bíblica da aliança
celeste, com suas faixas coloridas que aparecem na dispersão da luz do sol nas
gotas da chuva, sugere, na pergunta do título, um questionamento essencial
sobre a função da palavra poética.
A memória é, na coletânea
Desde longe, publicada em 2016,[7]
e em segunda edição, em 2020,[8]
fio inconsútil que entretece o
passado, o presente e o futuro. Na infância, os vestígios do pai, perdido no
tempo; as mãos carinhosas da avó, florista em Belo Horizonte; a âncora e o
porto, que era a mãe da escritora; no presente, mesas, pratos, casas vazias; e
no futuro, a escrita do verso lúcido, apaixonado e vibrante.
Os leitores
acostumados à prosa vigorosa da escritora, como em Homem de sete partidas
(1980[9] e 1999[10]); Joaquina, filha do Tiradentes (1987,[11] 1991,[12] 1997,[13] 2017[14]) e Terra incógnita (2019), só para citar
alguns dos seus premiados romances, irão penetrar no reino crepuscular da
construção do estado lírico-biográfico da matéria, que é a poesia.
Se, na
prosa, o estilo, a dicção e a monumental invenção da autora se aproximam de uma
partitura musical; na poesia, muito mais, o verso revela, em sua visibilidade
rítmica, em um concerto de vozes, num processamento de sinais, visíveis e
invisíveis, o sabor inigualável do verbo.
[1]
QUEIROZ, Maria José de. Exercício de levitação. Coimbra: Atlântida, 1971.
[2]
QUEIROZ, Maria José de. Exercício de gravitação. Coimbra: Atlântida,
1972.
[3]
QUEIROZ, Maria José de. Como me contaram: fábulas historiais.
Imprensa/Publicações: 1973.
[4]
QUEIROZ, Maria José de. Exercício de fiandeira. Coimbra: Atlântida,
1974.
[5]
QUEIROZ, Maria José de. Resgate do real: amor e morte. Coimbra:
Atlântida, 1978.
[6]
QUEIROZ, Maria José de. Para que serve um arco-íris? Belo Horizonte:
Imprensa Universitária, 1982.
[7]
QUEIROZ, Maria José de. Desde longe. 1ª. Rio de Janeiro: Gramma, 2016;
[8]
QUEIROZ, Maria José de. Desde longe. 2ª. ed. Belo Horizonte: Caravana
Grupo Editorial, 2020.
[9]
QUEIROZ, Maria José de. Homem de sete partidas. 1ª. ed. Rio de Janeiro: Civilização
Brasileira, 1980.
[10]
QUEIROZ, Maria José de. Homem de sete partidas. 2ª. ed. Rio de Janeiro:
Record, 1999.
[11]
QUEIROZ, Maria José de. Joaquina, filha do Tiradentes. 1ª. ed. São
Paulo: Marco Zero, 1987.
[12]
QUEIROZ, Maria José de. Joaquina, filha do Tiradentes. 2ª. ed. São
Paulo: Círculo do Livro, 1991.
[13]
QUEIROZ, Maria José de. Joaquina, filha do Tiradentes. 3ª. ed. Rio de
Janeiro: Topbooks, 1999.
[14]
QUEIROZ, Maria José de. Joaquina, filha do Tiradentes. 4ª. ed. [e-book].
Rio de Janeiro: Topbooks, 1999.
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