terça-feira, 25 de agosto de 2009

Todo en ti fue naufragio...

 


















Todo en ti fue naufragio.
(Pablo Neruda)

Alucinações de velas:
na rosa dos ventos
a incoerência de baldos caminhos.
Entre vaga e espuma
se apaga o itinerário do milagre;
entre céu e nuvem se esvai
a linha fluida do mapa mítico.

Ausência de bússola
no oceano aberto
a todos os navegantes.
No rebanho de estrelas
o equívoco se esconde
atrás de cada constelação.

Nunca de núncaras
em todos os horizontes,
conspiração de jamais
na encruzilhada líquida.
Naufrágio.

Paris, 11.05.70

QUEIROZ, Maria José de. Exercício de levitação. Coimbra: Atlântida, 1971. p. 80.

Quem é quem























A rosa dos ventos, o mapa mundi,

os roteiros todos da Ásia,
as quatro esquinas da Europa,
as três Américas, a África...
Sobre caminhos ásperos, o terror e o perigo,
o engano, a dúvida, a suspeita.
Ao abrigo do tempo,
e da geografia adversa,
o real e o irreal se confundem
sem qualquer estremecimento.

O fictício e o vivido,
o símbolo e a coisa,
o ser e o mito,
submersos em sono letárgico,
repetem, cansadamente,
uniformes alegorias.
À mercê da imagem criada,
Dulcinéia, personagem,
autoriza desvarios.
Cobri-la com a própria pele,
arrancar-lhe máscara e traje,
vê-la com os olhos de Sancho
- vulgar, indigna?!
Ou contemplá-la, ainda,
grande senhora,
buscando a coerência sutil
entre o destino mesquinho
(puro aleive!)
e a alucinação do sonho imperecível?
Mensageira de ilusões,
onde procurá-la?
Na Mancha? No Toboso?
em Pequim? No Haiti?
Que voz fatal e fria
nos denunciará seu rumo
ou domicílio?

O que se diz, bem o sabemos,
não é o que se pensa;
nem aquilo que se pensa,
adverte-nos,
é o que se diz.
O que se olha não é o que se vê, exorta o sábio;
ao que o cético acrescenta - o Eu é sempre o Outro
(verdade ambígua).
O discurso e suas metáforas
não são senão pretexto
- fábula ou apólogo,
para noite longa, de inverno,
dedicada à ficção e aos seus prestígios.
O Eu verdadeiro não existe.
E..., se existe, não está aqui.
Talvez, quem sabe?
em Singapura, no Toboso,
na Mancha (num lugar de que nem me lembrar quero...),
em Roma ou...
em Paris.

Paris, inverno de 1976/77.

QUEIROZ, Maria José de. Para que serve um arco-íris? Belo Horizonte: Imprensa, 1982. p. 15-16.