sábado, 11 de junho de 2011
Amore
Minhas mãos anoiteceram
na negra prisão dos teus cabelos.
No teu olhar sombrio
repousei alacridades claras
da luz fatigante do dia.
Fez-se noite,
Noite escura, densa,
de noturno apassionato,
con brio.
Rendida ao seu sortilégio,
entre sombra e penumbra,
abriguei pudores,
disfarcei deliquios.
Nos teus ombros firmes
busquei asas,
precipitei-me contigo.
À margem dos teus nervos
ouvi derivarem rios.
Nos teus músculos tensos
peixes e cardumes
fugiam ao meu abraço
e na fugida me levavam,
rápidos, umentes, frios.
No coleio das águas envolvida,
ficava e repartia.
Ao apelo da ribeira,
ora dilatava,
ora corria.
De surpresa em surpresa empolgada
diante de mim tuas constelações se abriram:
recitei tuas estrelas,
de caricioso pastoreio,
enquanto nos teus olhos esplendia
céu de azul profundo - maravilha!
noturno apassionato, con brio.
QUEIROZ, Maria José de. Resgate do real: amor e morte. Coimbra: Coimbra, 1978. p. 35.
A herança de Caim
O doce Abel
Caim, o mau.
A inocência lastimada,
a violência impune
murmuram nos nossos ouvidos
melopéia inquietante
de fatigado estribilho.
O seu eco nos atormenta
com triste acento
e renovado luto.
A morte de Abel
- crime sem vingança,
sangra nas nossas mãos:
o seu corpo, insepulto,
povoa o vazio obscuro
onde a dor é castigo.
Nas suas pálpebras lentas
a noite flui
como um pássaro fúnebre
em nebuloso aprendizado
de guerra e discórdia.
Nas nossas trevas,
um imóvel esplendor:
a herança de Caim multiplicada.
QUEIROZ, Maria José de. Resgate do real: amor e morte. Coimbra: Coimbra, 1978. p. 41.
Os animais pastam, o homem come; apenas o homem de espírito sabe comer
E quem sabe comer é gastrônomo. A dignidade da gastronomia apoia-se não só numa forte estrutura econômica, que lhe confere peso, medida e cifra, como se exalta, igualmente, no refinamento da mais imediata das funções fisiológicas. Assim, a alegria de sentar-se a mesa para responder a uma das leis da sobrevivência deve antecipar-se na leitura do cardápio, expandir-se na discussão das iguarias, concretizar-se na degustação e prolongar-se em gesto e palavra de louvor à sua forma, feitio, cor e apresentação. O conviva celebra no silencioso e recolhido ato de saborear a comida o talento do artista criador. Pouco importa o caráter efêmero da obra criada: a receita é partitura que se repete e volta a deliciar indefinidamente.
QUEIROZ, Maria José de. A comida e a cozinha: iniciação à arte de comer. Rio de Janeiro: Forense-Universitária, 1988. p. 60.
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