segunda-feira, 27 de julho de 2009

Aos pobres, a força dos Evangelhos

Nunca faltaram aos pobres a força dos Evangelhos nem a eficácia metafórica do Apocalipse. As oligarquias opulentas tinham sempre pela frente o sacerdote virtuoso, o monge descalço, o ermitão inflamado para lembrar-lhes as bem-aventuranças, o juízo final, o fogo do inferno. Foi esse o levedo que fermentou a massa, o caldo em que se curtiu a mágoa dos humildes mas que também cozinhou, em muitas ocasiões, a explosão homicida da revolta. (...) Ao longo dos anos, pobre (substantivo ou adjetivo) adquire acepções contrárias de potens (potente, poderoso), miles (soldado), civis (cidadão). É sinônimo de debilis (débil, fraco, enfermo, deficiente físico) e de humilis - humilis homo - homem vil; humili loco natus - de baixa condição.

QUEIROZ, Maria José de. Quem tem medo dos pobres? In: ______. Em nome da pobreza. Rio de Janeiro: Topbooks, 2006. p. 63.

Vieira diante do Santo Ofício

Quando um Padre Vieira, por exemplo, tenta defender-se perante o Tribunal do Santo Ofício (Coimbra, setembro de 1665), no processo contra ele movido como autor de Esperanças de Portugal ou Quinto Império do Mundo, não podemos esquivar-nos ao interesse das proposições censuradas pela Inquisição. Sua Representação, endereçada aos inquisidores, obriga-nos a frequentar o território que lhe deu origem, o que lhe restringe, singularmente, as dimensões. No isolamento da cela, desprovido de livros que pudessem informar-lhe a defesa, e sem outro recurso que o do Breviário, de bem pouco préstimo, Vieira insiste na pregação contra o racismo (o anti-semitismo, especialmente, de tão fundas raízes no fanatismo nacional). (...) Forçado pela notícia de que as censuras do Tribunal teriam recebido a sanção do Sumo Pontífice, declara, no dia 19 de agosto, renunciar, não só a defesa das suas proposições, mas "ainda de as querer explicar ou declarar o sentido delas, como até agora ia fazendo no decurso do processo". No dia 23 de dezembro ouve, de pé, durante duas horas, a leitura da sentença, sem empunhar, por especial clemência, a vela sagrada. Condenado à perda da voz ativa e passiva, proíbem-no de subir ao púlpito. E seu domicílio, ainda que em colégio da ordem, fica a juízo do Tribunal.

QUEIROZ, Maria José de. Da cicuta à poesia, ou os subterfúgios da liberdade. In: ______. A literatura encarcerada. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1981. p. 29-30.

A cozinha e a literatura

A Grécia autorizou, muito coerentemente, que se prestigiassem, ao lado dos seus sete sábios, os seus sete cozinheiros. O maior deles, ao que nos conta Eça de Queirós, era Aegis, de Rodes, o único mortal que sabia assar sublimemente um peixe. (...) Entre os romanos as escolas de cozinha eram mais numerosas (já sob Cláudio) que as de filosofia e de gramática. (...) De todos esses cozinheiros, os mais notáveis foram os Apicus. O último deles, o mais célebre de tão ilustre estirpe, foi quem redigiu, para a glória da cozinha da Antiguidade, a obra monumental, Da arte culinaria - Re culinaria, que inclui copioso receituário das iguarias em voga e que nos oferece um vasto panorama das preferências alimentares dos romanos (...). À leitura da Arte culinária de Apicus convencemo-nos da propriedade da observação de Carême quanto à importância da cozinha. Sentenciava com sabedoria o mais afamados dos tratadistas franceses: "Quando não houver cozinha no mundo, não haverá literatura, nem inteligência brilhante e rápida, nem inspiração, nem relações duradouras; não haverá tampouco unidade social." Tudo isso se aprende nas entrelinhas dos livros que tratam de cozinha e de gastronomia.

QUEIROZ, Maria José de. Da arte culinária à gastronomia. In: ______. A comida e a cozinha ou Iniciação à arte de comer. Rio de Janeiro: Forense, 1988. p. 62-63.

À mesa com Machado de Assis

Machado instruiu-se convenientemente sobre as excelências da mesa. Começa por empregar, em português, a expressão boa chira, para bonne chère: o Palha, do Quincas Borba, "era dado à boa-chira", Custódio, do conto "O empréstimo", tinha o instinto das elegâncias, o amor do supérfluo, da boa-chira (...)". Cita os templos da gastronomia parisiense, o Véry e o Véfour, lembra a cozinha dos palácios do Conde Molé e do Duque de la Rochefoucauld. Condena "a corrupção dos tempos" que trouxe ao Rio o hábito do sanduíche e do bife cru. Cioso dos nossos costumes e origens, advoga a causa da doçaria nacional e, particularmente, a arte do arroz-doce. Numa visível intimidade com os fastos gastronômicos, anuncia numa crônica de 1878: "Hoje é dia de festa cá em casa: recebo Lúculo à minha mesa". Compõe, para essa festa, cardápio especial: "Línguas de rouxinol", "Coxinhas de rola", "Peito de perdiz à milanesa", "Faisão assado", "Pastelinhos", "Compota de marmelos", "Brinde final". Seguem-se, ao título dos pratos, comentários e observações sobre eventos e notícias da atualidade.


QUEIROZ, Maria José de. A literatura e o gozo impuro da comida. Rio de Janeiro: Topbooks, 1994. p. 222-223.