domingo, 20 de dezembro de 2015

Lisboa



Ponte alta sobre o Tejo
lembra a América de Alcatraz,
Califórnia do Pacífico,
Golden Gate, Sausalito.

Bem depressa nos desmentem
braços abertos, mãos em palmas:
o Cristo anuncia outra língua,
outra crença, outros ritos.

O Tejo deriva-se lento,
e a medo chega ao Restelo
onde se ouviu, faz tempo,
a voz grave de um velho.

Lisboa se aquece ao sol.
Seu casario colorido, seus tetos encarnados,
cruzes, igrejas, o forte, a Mouraria
refilam seu melhor fado:
tão menina, adolescente,
Lisboa ensina juventude
a Madrid, Paris e Roma.

Do Marquês aos Restauradores
a verdura se estende:
copia, em beleza,
mosaicos de inspiração romana.

Na curva do caminho, o Rossio.
Novos vencidos da vida,
hippies de todo o mundo,
pés descalços e sujos,
indiferentes ao espanto
e ingênua modéstia lusa,
sugerem crônicas, inspiram sociologia,
no desprezo de leis, normas e uso.

Há quem acredite no fado
e vá ouvi-lo na Alfama;
porém, Lisboa, a verdadeira,
(me disseram)
prefere cantares de amigo
e trauteia canções galegas.

No Campo Pequeno
o touro se agarra à unha.
A corrida espanhola,
de tradição sangrenta,
novas artes simula
e em "enforcado" se torna,
enhorabuena,
sem sacrifício cruento.

Em Lisboa sobre lo ler
deitam-se barcas ao mar.
Se voltam, nunca se sabe
("- Ai o meu rico homem!
o meu filho, que o não
torno a ver."),
mas quando voltam
há velas e Bendito
em todos os lares.

De Lisboa sobre lo mar
partem navios,
carregados de saudades.
Se voltam, nunca se sabe,
mas quando voltam
há que celebrar:
vinho verde, bom peixe, bom cozido
saúdam o filho pródigo
que fala francês, ou inglês,
com sotaque saloio, genuíno.

Lisboa ancorada à porta do continente:
no Atlântico, o eterno apelo à partida.
Lisboa, quase Europa...
Lisboa quase América...
Lisboa, ante-sala da África...
Lisboa, véspera da Índia...
Lisboa, esquina de Macau,
Lisboa, caminho da China.
Lisboa em si mesma resume
a contradição dos mundos
que se quiseram alheios
sem suas navegações,
que se quiseram distantes
sem seus astrolábios, mapas e varões.

Lisboa, verão de 1971.

QUEIROZ, Maria José de. Exercício de gravitação. Coimbra: Atlântida, 1972. p. 37-40.