domingo, 29 de setembro de 2013

terça-feira, 24 de setembro de 2013

Amori

Ao meu corpo entregaste
cansaço de muitas paredes,
vozes de muitas salas.

No teu corpo carregavas
choros, soluços e lágrimas,
recalques de triste infância
e mais injustiças e frases
de tempo vivido e gasto.

A máscara do dia-a-dia
já não te  fazia falta:
deixaste-a nos meus ombros
ao descalçar tua honra,
teu passo firme e válido,
tua invencível vaidade.
No meu corpo repousaste
todo o peso da tua alma.

Encenamos tragédia grega
no disfarce bem logrado
da verdadeira persona
que arrancamos à cara.

Na fogueira de Eros
queimamos nossos fantasmas.
Ó busca insaciada
de unidade lábil
- perdida e recuperada!

Sob o signo do amor,
invocamos Thanatos:
morremos e renascemos,
despertamos justificados.

Humilhados e tímidos,
na nudez do fruto provado,
reassumimos no sono
a face do justo,
a inocência do hábito.

Já altivos deparamos (Ora se...),
nos pés alevantados,
o vértice dos bípedes,
sem asas.

Seres pedestres, verticais,
à frente da oração,
e da criação,
repetimos gestos,
prolongamos a vida,
em fuga interminável.

QUEIROZ, Maria José de. Resgate do real: amor e morte. Coimbra: Coimbra, 1978.
p. 32-33.

quinta-feira, 19 de setembro de 2013

Geografia final, livro de pedra

"Geografia final, livro de pedra", o Canto Geral ajuda-nos a conhecer o homem em toda a duração do seu inquieto deambular pela terra: "Que era o homem? Em que parte de sua conversa franca / entre os armazéns e os assobios, em qual dos seus movimentos metálicos / vivia o indestrutível, o imperecível, a vida?" Como os grandes aedos, Neruda impõe-se uma missão: contar uma história - "Estou aqui para contar a história." Embora se alterem, no curso da fabulação, o processo e a arte do discurso poético, prevalece o engenho. E é graças a ele que o canto mantém, enervada, a sua intensidade.

QUEIROZ, Maria José de. A América sem nome. Rio de Janeiro: Agir, 1997. p. 151-152.

quarta-feira, 11 de setembro de 2013

Exposição "Amor e morte", de Lesle Nascimento, inspirada na obra poética de Maria José de Queiroz



Amor e morte

A exposição Amor e morte, de Lesle Nascimento, surge a partir da leitura do livro de poemas Resgate do real: amor e morte, de Maria José de Queiroz, publicado em 1978.  As imagens capturadas pelo fotografo em Belo Horizonte, Buenos Aires, Lisboa e Jerusalém dialogam com a poesia da escritora que tem, nesse livro, o seu ponto máximo e, como mote, a relação, às vezes imponderável, entre o amor e a morte.  A poesia elegante de Maria José de Queiroz é, assim,  entretecida às líricas imagens de Lesle Nascimento. Ao mesmo tempo em que a escrita sugere o ponto de vista, a imagem insinua sombras, dobras, asas. Nesse sentido, “A morte perdeu seu prestígio para que a vida se celebrasse”. Mas não sem antes constituir-se no “caprichoso risco das estelas e das lápides” em que “o misterioso amor às palavras, a celebração dos mortos” é “refrigério das almas”.

Lesle Nascimento é fotógrafo em Belo Horizonte, onde nasceu em 21 de maio de 1973, e Bacharel em Biblioteconomia pela Escola de Ciência da Informação da Universidade Federal de Minas Gerais (lesle@graphe.com.br).

segunda-feira, 9 de setembro de 2013

Nossos mortos


















As mãos se alongam, os braços se abrem:
a paz do féretro une amigos e rivais.
Cúmplices da vida, aliam-se contra a morte.
À ameaça da insônia, em véspera de memória,
o apreço e desprezo do mundo,
apenas murmurados,
ouvem-se em surdo vozeio - acalanto suave.
As palavras saem do silêncio
e a ele regressam
com estranhos primores de orquestra em concerto.
A vida se adivinha no leve ruído dos lábios;
a morte, nas grandes coisas que os gestos insinuam,
lentamente,
profundas, graves e vagas.
Diante do esquife
- barca nova a ser lançada -
a vida ofende, o estrépito desacata.
Em tom menor, a biografia do morto
- âncora sólida -
ainda o detém ao cais, amarra-o à febre
e às intermitências da carne.
Ele e o outro, a quem sucede,
guardam em comum, no corpo insepulto,
o nome, os títulos, a família,
a transparência dos desejos,
o sufrágio dos sonhos e do sono.
Cativo dos vivos, o morto é personagem:
sobrevive em contas e contos,
na prata da casa, na fidelidade do cão,
nos indevassados rincões do êxito,
nos segredos já sem mistério,
na possessão da espera.
A morte é estado;
a vida, ficção miúda, novela episódica,
de complicado enredo.
Todos consideram, como ungidos,
a cabeça disciplinada, as mãos em cruz,
o recato das pernas, o vértice dos pés,
a castidade austera,
a coincidência do tempo e da eternidade.
No rosto do morto, o espelho unânime:
todos os ausentes, todos os desempenhos,
todos os estilos e, em todos, o modelo.
Diante do morto, os vivos exumam os seus mortos:
a doença prolongada, as dores, a lenta agonia
as últimas palavras, o luto, o remorso.
O semblante sereno (parecia dormir!),
a bondade, a mansidão, a modéstia...
Feia pintam a inveja, a cobiça, a ambição da glória.
Comemoram as virtudes que dignificam os que as possuem
e enaltecem os que as celebram.
Sem ofensa aos grandes, sem lástima aos pequenos,
todas as saudades marcam encontro:
velório é ocasião de alívio, de metafísicas alienações
e de desvelo.
Um arrasta o pai; o outro, a mãe;
o terceiro, a filha, o filho;
a viúva, o marido, o amante.
As sombras dos mortos comparecem:
cada qual com o seu dono cada qual com o seu parceiro.
A solidão da morte anônima,
sem fastígio e sem excelência,
publica-se em companhia:
no discurso comovido, quase sussurro,
no elogio das qualidades exemplares,
no olvido das faltas e dos vícios.
A sábia geometria do cemitério
corrige os descaminhos da vida.
Ensina proporção. Medida.
A sua fértil botânica
instrui recente ecologia.
A morte demanda aprendizado:
nunca se morre de uma vez,
num único velório,
nem no próprio enterro.
Escravos de nossas lembranças
os mortos encontram refrigério nas condolências,
nas lágrimas, no luto, nos pêsames.
No fundo de outras pupilas imóveis
são eles ainda, os nossos mortos,
que nos contemplam.

Belo Horizonte, 1974.

QUEIROZ, Maria José de. Resgate do real: amor e morte. Coimbra: Coimbra, 1978.
p. 62-65.


sábado, 7 de setembro de 2013

Tempo de amor

O espírito paira sobre as águas
faz-se luz  no universo:
diante de ti, o Gênesis, a terra.
Véspera de milagre,
na surpresa do gesto inédito,
colhe entre os dedos o grito,
encarcera-o na epiderme
até que lento, bem lento,
se desabroche e floresça
em jardim de muitas veredas,
dedilhado à flor da pele.

Um homem, uma mulher:
a nudez edênica de todos os princípios,
o sagrado ritual de todos os começos.
Esplende a carne casta
na apoteose do mistério:
sangue, músculo e nervo.
Rendida ao primeiro olhar
- tímido, furtivo, discreto,
hesita, disfarça, entrega-se
não, não se entrega,
dividida entre o pudor e o desejo.

De todas as vozes,
o eco:
quantos somos? de quantas noites viemos?
De todas as frases,
o sentido denso:
da adolescência guardamos
a angústia, a culpa, o receio.
De todos os ritmos,
a cadência:
cedem os pulsos cerrados,
rompem-se velhas algemas.
Compassos em pausa
sustentam o silêncio:
noite colorida de tons,
acordes, escalas, arpejos.
Alargam-se em fermata
breves, semibreves enleios.

Nosso tardio evangelho
reescrevemos a medo:
reiventamos o mundo,
a carne faz-se verbo.
Primeira página, Livro 1:
é tempo de amor.
Dissipa-se a solidão das trevas.

QUEIROZ, Maria José de. Resgate do real: amor e morte. Coimbra: Coimbra Editora, 1978. p. 15-16.

domingo, 1 de setembro de 2013

A língua absolvida, de Elias Canetti


A grande repercussão de A língua absolvida. História de uma juventude, a que se seguiram Uma tocha em meu ouvido e Jogos de olhar, conferiu-lhe [Elias Canetti] larga notoriedade na Europa, granjeando-lhe fama internacional. Fama tardia, já nos anos maduros. Ainda assim exaltante. Especialmente após o encalhe de Auto-de-fé e a pálida repercussão de Massa e poder. Donde procede tão súbito entusiasmo? Não mudaram o autor nem o público; mudou o gênero. E nenhum outro, senão as memórias, parece menos rígido nem mais propício à defesa de princípios, à exposição das ideias nem, tampouco, à livre expressão dos sentimentos e das emoções. Porque nele se confundem, dentro dos limites do testemunho pessoal, o romance de figura, o romance de evolução e o romance de formação. Sob os auspícios do pacto autobiográfico exprimem-se, ao abrigo da censura, de toda censura, aptidões, gostos, preferências, ideologias e conhecimentos. O leitor refaz, no curso de uma vida, todo o itinerário percorrido pelo autor. Assimilam-se ao discurso, de palpitante vivacidade, o auto-retrato, o diário, o mergulho introspectivo, tudo isso permeado à crônica do momento político e social, na sua infinita variedade humana. E o que mais interessa: o estilo coloquial, do Eu com o seu duplo, traz o leitor para junto do sujeito.

QUEIROZ, Maria José de. Tempo histórico. Tempo literário. Rio de Janeiro: Topbooks, 1996. p.113.
Refrações no tempo