domingo, 26 de julho de 2009

Canetti e a formação de uma matilha

Privam-no do direito de levantar o dedo na sala de aula, sob o pretexto de que a exibição de saber inibia os alunos mais tímidos. Por trás do preceito didático (democraticamente nivelador e de evidente exaltação da mediocridade) escondia-se, sorrateira, a garra do anti-semitismo nascente. Sefaradita, de cidadania búlgara, meio turca e meio espanhola, a família Canetti jamais provara qualquer discriminação na Bulgária, país natal do jovem Elias, nem na Inglaterra, para onde se expatriara em 1911. As palavras secas do professor - "Você levanta o dedo demais!" - paralisaram-lhe o braço. "Também perdi a alegria - confessa - e a escola já não me dava prazer. Em vez de esperar pelas perguntas durante as aulas, eu agora esperava pela próxima chacota durante o recreio. Toda observação de desprezo pelos judeus provocava em mim idéias contrárias. Eu tinha vontade de retrucar tudo aquilo, mas para isso não havia oportunidade, pois não se tratava de uma discussão política, mas sim, como eu diria hoje, da formação de uma matilha".


QUEIROZ, Maria José de. Elias Canetti: entre a palavra e a letra. In: Refrações no tempo: tempo histórico, tempo literário. Rio de Janeiro: Topbooks, 1996. p. 119-120.

Enciclopédia analítica das perversões

A crueldade expulsou a violência e, com ela, a gana de peleja, de luta e de vitória. Os Borges aguerridos, os Quirogas, os Fierros, os caçadores de esmeraldas e a jagunçada do sertão, os Cabeleiras, os Lampiões, os Riobaldos e os Mirongas, os bad bad men e, também, os bad good men, os Jerônimos e os últimos moicanos recolheram-se às páginas do folclore, do romance histórico, da literatura de cordel ou aos clássicos do western. Antes de chegar à América, a violência já percorrera, cabo a rabo, as epopeias gregas, os cantares de gesta e a Bíblia, ocupara os historiadores e os teólogos. Animara, entre nós, debates e discussões, preocupara a Igreja e a Coroa espanholas, lograra interromper o curso da Conquista. A literatura, as artes plásticas e o cinema reelaborariam, incenssantemente, toda a sua feroz intensidade trágica. (...) a literatura da crueldade exibe, sem pudor, a exceção monstruosa, o crime, o desregramento do sexo, o alcoolismo, as drogas, a prostituição e os vícios inconfessáveis. (...) Já não se escrevem romances, produzem-se thrillers. (...) Abre-se, generosamente, para pesquisadores e aficionados, a enciclopédia analítica da gênese e multiplicação das perversões".

QUEIROZ, Maria José de. Tempo e violência. In: Refrações no tempo: tempo histórico, tempo literário. Rio de Janeiro: Topbooks, 1996. p. 58-59.

Desgosto de filha: Joaquina, filha do Tiradentes





Sei de memória, não só a condenação mas também as inesgotáveis formas por que se expressam o desprezo, a humilhação e a desonra. Conheço as mentiras da história, a hipocrisia dos patriotas, a peçonha das letras escritas, os rumores malignos, o escárnio e o medo. Aprendi, desde menina, que a vergonha da origem bastarda fere menos, muito menos, que a infâmia decretada por sentença e consagrada pela fraqueza dos covardes. Não, o tempo não lhe consumiu o corpo amaldiçoado. Vejo-o agora, vejo-o aqui. E sua cabeça, exposta ao opróbrio, seu rosto – tão semelhante ao meu, inicia a eternidade da pena crismando, no golpe de ódio do poder, o gesto de misericórdia do carrasco. Vejo-me nele. E ele, em mim, abre os olhos para a vida e para a desgraça que nos cerca. Um dia, quem sabe?, ele os abrirá para a glória... De ignomínia em ignomínia, nada me salva: nem o futuro nem a gratidão da pátria. Suas palavras talvez pudessem resgatar-nos – a mim e a minha mãe – do frio do esquecimento; ele, contudo, jamais as proferiu. Nada nos resta. Nada me resta. No espelho do quarto, nas águas do rio, nos dedos que me apontam, o seu rosto me persegue. Sempre. E esse silêncio! No entanto, as palavras... De que valem as palavras? O que dele me ficou, deveras, foi a infâmia. No abandono das horas tardias, quando a paciência esgota, cansadamente, a resignação e a calma, é o sangue que me fala. A ameaça que vem de fora, dia claro, nos gestos obscenos, nas vozes afiadas, troca-se em tortura: sou eu, noite adentro, meu verdugo. E, de mim, já não fujo: recolho-me no meu corpo, duplamente condenado. A infâmia que mora no meu ventre conspira contra todos nós. Minha alegria é o silêncio das coisas quando a escuridão noturna adormece a vizinhança.


QUEIROZ, Maria José de. Joaquina, filha do Tiradentes. Rio de Janeiro: Marco Zero, 1997. p. 9-10.