quarta-feira, 31 de dezembro de 2014

A língua de empréstimo

A língua de empréstimo, mesmo aquela que se fala com fluência, e também com prazer, cansa ao fim de certo tempo. A inteligência desperta não pode ignorar, um momento sequer, a sintaxe, a morfologia, o vocabulário. Regras e normas constantemente se impõem. Não é só. Para chegar a falar correta e correntemente, vivemos, em nós mesmos, a língua estrangeira e constantemente a assimilamos, num processo jamais concluído de reelaboração do aprendizado. À língua materna, tal não acontece. Corre livre o pensamento. Deturpa-se a pronúncia, infringem-se leis e uso. Nada importa. É patrimônio próprio. Infenso à dilapidação. E mais: bem ou mal, sempre nos fazemos entender. O medo da censura, o autopoliciamento, o respeito ao idioma que não é o nosso favorece a tensão. Ninguém se sente impune ao pronunciar uma língua estrangeira. Isto é, aqueles que aspiram a uma certa ideia de correção de linguagem. Fluência significa esforço, concentração, vigilância. É fato: pode-se pensar numa língua estranha à nossa. Esse, o grande privilégio dos que dominam um novo idioma. Pode-se, até, sonhar em francês, em russo, em javanês. No entanto - a encontrar-se aí a essência da função fabuladora -, só se fala sem pensar a língua materna. É isso o que ela guarda de próprio e de misterioso. 

QUEIROZ, Maria José de. Ano novo, vida nova. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1978. p. 104-105.

sexta-feira, 26 de dezembro de 2014

Chove em Paris...

























Decretar morte,
impor silêncio,
secar todos os rios.
Na surdez de voz e palavra,
engasgar ternos enleios,
regressar a noites brancas,
povoadas de vazio.
Resignar-me à presença
do eu que vai comigo,
atento e implacável,
lúcido e frio.

Da temeridade me ficou
o gosto do inédito
- sabor de novidade,
com que me regalei,
no desprezo do antigo império,
mercê de todos os sentidos.
Para celebrar o jamais sonhado
- desvario outonal do tempo ido,
proclamei nova ética,
inventei calendário,
vesti novo traje,
recuperei ausências,
fabriquei mitos.
Renunciei ao futuro
no compromisso do agora
mas salvei o meu sempre,
a outros deuses rendido.
Vivi de provisório.
Na nostalgia do paraíso perdido
encontrei razões de santidade,
invoquei platonismo.

Hoje, que resta?
- Do passado, curto e pífio,
  horas furtadas a medo
  a mil olhos escondidos.

Decreto morte.
Imponho silêncio.
Sequem todos os rios!
Cansa-me a lentidão do Sena:
nas suas águas perenes
vejo apenas desafio...
Nada tenho, nada resta.
Chove em Paris...
Que frio!

Paris, verão de 1970.

QUEIROZ, Maria José de. Exercício de gravitação. Coimbra: Coimbra Editora, 1972. p. 62-63.

sábado, 20 de dezembro de 2014

Veias, artérias, nervo e sangue


Veias, artérias, nervo e sangue
- império e reino estranho.
Dia-pós-dia, nele vige o mundo:
êxitos, lucros, perdas e danos.
Intimidade próxima e distante,
nele nos perdemos, e nos reencontramos:
o infinito nele habita, cotidiano.
Na raiz do pulso, a emoção mais funda.
Nos seus limites, vida e morte:
coronárias, ritmo, pena e indulto.
Entre os seus dois pólos:
razão e intuição.
Lugares proibidos, perigo,
cilada e armadilhas,
tudo corre no sangue
e nele marca encontro
em contínua metamorfose,
em constante transição.

Ó paixão inútil!
Tentação de existir
além dos pés, nossa última fronteira;
tentação de ser
além do instinto
- castigo e redenção.

Belo Horizonte, 1972.

QUEIROZ, Maria José de. Exercício de Fiandeira. Coimbra: Coimbra Editora Ltda., 1974. p. 27-28.

sexta-feira, 12 de dezembro de 2014

O livro de minha mãe, de Maria José de Queiroz


Lágrimas e tinta

Uma antiga lenda judaica afirma que Deus conta as lágrimas das mulheres. Que dizer se essas lágrimas se apresentam como tinta, a tinta com que se escrevem a dor e o luto das perdas de quem escreve? Uma mulher?

Autora de ensaios, contos, romances e poemas, Maria José de Queiroz sublima, no livro dedicado à mãe, sua produção intelectual: resgata, de coração a coração, momentos de cumplicidade, de dor e de melancolia, de amizade, leituras e encantamento; com Monsenhor Messias, em Belo Horizonte, com Carlos Drummond de Andrade, no Rio de Janeiro – só para citar alguns dos amigos que agora iluminam as páginas deste livro. Sua pena e penas ferem o papel em cicatrizes, numa tatuagem sobre a pele. Que se precavenha o leitor desavisado: não as tome por trilha de caminhos que se bifurcam... Alheio ao legato em tom menor deste Confiteor, poderão escapar-lhe as variações do que é, na verdade, um oratório (à maneira de Bach).

MARIA JOSÉ DE QUEIROZ é autora de ensaios fundamentais, que demonstram sua erudição e vário interesse, como A literatura e o gozo impuro da comida, de 1994; Os males da ausência ou A literatura do exílio, de 1998, e Em nome da pobreza, de 2006. Destaco, dentre seus romances, Homem de sete partidas, de 1980, com prefácio primoroso de Pedro Nava, e Joaquina, filha do Tiradentes, de 1987, republicado dez anos depois em edição integral, com posfácio da autora, pela Topbooks. A poesia de Maria José é um exercício estético rigoroso entre a exatidão e a multiplicidade. Em Resgate do real: amor e morte, de 1978, o tinteiro melancólico da autora torna-se ponto máximo de sua escrita poética.

Empenho da memória que fia e desfia o passado, O livro de minha mãe tenta recuperar a infância, a perda do pai, ainda criança, a fibra e a coragem da mulher forte que foi Honória, sua mãe. A poesia, a música, as histórias de Minas – eis o elo que une mãe e filha, em simbiose. Inscrita na longa tradição de escritores que, no luto, tentam explicar a grande falta que é a morte da mãe, Maria José de Queiroz faz ecoar os fragmentos de Diário do luto, de Roland Barthes, em que o escritor trata de “uma dor absurda, impossível de contornar”. De forma mais expressiva, entoa, em dueto com Alberto Cohen, autor de Le livre de ma mère, “uma noite com palavras”, a celebração da mãe, de todas as mães. Os dois textos comparecem, sanguíneos, no correr das páginas de O livro de minha mãe.

Artesã da palavra, como bem definiu Pedro Nava, Maria José de Queiroz faz uma louvação às mães: a todas elas, a mãe. Enquanto fere, sua escrita vai gravando, na pele, múltiplas imagens de flores, corações, rendas, asas, inscrições, algumas muito antigas, outras próximas, comuns a todos os leitores. Num recriar do fio da vida, o livro exorciza demônios, refloresce cicatrizes: tinteiro aparentemente seco e melancólico, converte-se em crisol de alquimista, fonte que transforma lágrimas em tinta. 

(Lyslei Nascimento)


MARIA JOSÉ DE QUEIROZ é doutora em letras pela UFMG, livre-docente e professora catedrática, por concurso, da mesma universidade. Visiting Professor – Indiana University, Professeur Associé – Université de Paris-Sorbonne, Gast Professor – Bonn Universitat e Koln Universitat, possui vários ensaios publicados, como A literatura encarcerada (1981), A literatura alucinada (1990), A literatura e o gozo impuro da comida (1994), Os males da ausência ou A literatura do exílio (1998), e Em nome da pobreza (2006). Na ficção, destacam-se Joaquina, filha do Tiradentes (1987), Sobre os rios que vão (1991) e Vladslav Ostrov, Príncipe do Juruena (1999); e na poesia Exercício de levitação (1971), Exercício de gravitação (1972), Exercício de fiandeira (1974), Resgate do real (1978) e Para que serve um arco-íris? (1982). Prêmios recebidos: Jabuti / Ensaio (Câmara Brasileira do Livro); Othon Lynch Bezerra de Mello / Ensaio (Academia Mineira de Letras); Pandiá Calógeras / Erudição (Governo do Estado de Minas Gerais); Sílvio Romero / Ensaio (Academia Brasileira de Letras); Prêmio Nacional Literário PEN Clube do Brasil / Ficção, entre muitos outros.


O livro de minha mãe
Autora: Maria José de Queiroz
Formato: 15,5cm x 23cm
252 páginas / R$44,90
ISBN: 978-85-7475-241-9
Capa: Isabella Perrotta

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domingo, 9 de novembro de 2014

Âncora e porto

Qu'il soit un port
où l'orgueil à la proue
y dorme en l'eau qui dort

(Henri de Regnier)


Entre a noite e o crepúsculo,
um porto, águas dormidas,
silêncio.

Na areia imóvel,
rastos de pés ligeiros.
O vento, em espiral,
rompe as amarras do sossego.
Em velas ociosas
a memória naufraga seus segredos.


Na linha estável do horizonte,
o sol abre, distraído,
sua cornucópia de cores:
distante, presente,
o passado se alonga
na debandada de pássaros,
nas nuvens em atropelo.

O orgulho descansa remorsos
em rochedos de grandeza.
Tormentas, sirtes, penedos
autorizam quimeras, visões, receios.

No sigilo da proa
a luz amadurece a âncora,
grávida de abismos iminentes.
Da profundeza do mar emerge,
constelada de signos,
a espuma profética.
Oh transparente monumento
Donde el instante brilla y se repite
Y se abisma en si mismo y nunca se consume!

Paris, verão de 1974.

domingo, 2 de novembro de 2014

Sem tribuna de papel

Sem uma tribuna de papel, como vê, ninguém aqui logra defender-se publicamente: palavra puxa palavra, às palavras se seguem as ações, à violência do verbo, que esgrimem uns contra os outros, sucede a violência física, ou a violência propriamente dita que é, hoje, uma instituição nacional. Seu tio não estava preparado para viver num país como o nosso. Ainda que os seus ideais políticos se abrigassem sobre a bandeira negra do anarquismo, derivavam, em linha reta, do evangelho de Tolstói. Nunca li Tolstói. Mas era o que ele proclamava. Sua estatura, seu vozeirão, seus modos agressivos, seus protestos contra a injustiça e contra a opressão não abrigavam ódio: eram fruto de amor, provinham do sentimento de fraternidade universal. Detestava a Igreja, isso sim, e abominava a política e o poder.

QUEIROZ, Maria José de. Homem de sete partidas. Rio de Janeiro: Record, 1999. p. 128-129.

quarta-feira, 1 de outubro de 2014

Nossa Senhora do Ó




















A Geraldo Tymburibá

Ladainha de Nossa Senhora,
Nossa Senhora do Ó:
louvação em cada verso,
súplica em todo ó.

No altar,  o ouro do rio,
nas paredes, dragões da China,
nos lábios, a ladainha.
Macau e Goa trouxeram
desenho, invenção e tinta
para celebrar em Minas 
o parto da Virgem Maria.
Capelinha portuguesa
com nome de ladainha.

Nossa Senhora do Ó (*)
navega em nau da China
e no porto do Rio das Velhas,
no Sabará, Sabarabuçu,
ancora a sua capela.
Capela, capelinha,
barca celeste de ouro
que reza à Virgem Maria
na margem do rio de Minas.

Paris, fevereiro de 1971.

(*) Leia-se, de António José Saraiva, "Les quatre sources du discours ingénieux dans les sermons du Pe. António Vieira", in Bulletin ded Études Portugaises, 1970, nouvelle série, t. 31, p. 177-270, a propósito do culto a Nossa Senhora do Ó na Península Ibérica e no Brasil. Curiosa, engenhosa mesmo, a definição de Vieira que vê no Ó o símbolo da eternidade.

QUEIROZ, Maria José de. Como me contaram... fábulas historiais. Belo Horizonte: Imprensa/Publicações, 1973, p. 34-36.

domingo, 14 de setembro de 2014

Entre ampulheta e clepsidra


Raio de sol,
alegria transeunte,
aroma de efêmera residência,
eis o que sou.

Povoei de escândalo
o teu outono,
ensinei-te comas
e semicomas
de modinhas esquecidas,
com letra, música
e cadência,
de Ovalle e Mignone,
talvez mais.




Desviei teus passos,
incendiei tuas inibições,
dei-te chaves
de desconhecidos falares.

Ensaiaste voo
por atlânticas finitudes,
sereno, altivo, ileso.
Se me esqueceste,
não me traíste,
em aliviado suspiro
confessaste
o gozo e o júbilo
do amor recuperado,
intacto,
no macio colo
de diferente abraço.
Oh irrisão de verbo inocente!
Insensata disponibilidade!

Num maranhão de conflitos
me perdi. E te reencontrei.
Tão distinto, tão mortal,
cotidiano,
integrado à grei humana,
sem auréola ou pedestal.
Ceguei-me.
Queimei indiferenças
no fogo de castos intentos.
Porfiei, apesar de.
Porfiamos, ainda.
Sofremos dúvidas
de cruel padecimento
Azulei melancolias
em crise de alma
e vocação.
Na incerteza do afeto,
desentendeste parábolas.
Pagaste ingrata gabela
de fossas monumentais.

Assumi tuas catarses,
enfrentei dicotomias,
rendi-me a novo sursis.
Curei vacilações
no empenho definitivo
de ajustada sincronia.
Proclamei em alto grito,
indiferente a todo dano,
felicidade a prazo fixo,
sujeita a leis, correios, âncora.
Avoquei responsabilidade
de falência previvida
no lúcido endosso
do título precário.
Em modo teu, muito próprio:
viverei de memórias, justificada.
E atenta ao que é digno, justo e salutar
- como se lê no Prefácio
de antiga liturgia, Ordinário ) -
jamais me ocorrerá
semear maravilha, sonho ou ilusão
em território alheio,
adubado de sal e pranto,
firmado em santa aliança
de fé, papel e casa cristã.
Que me troquem (antes isso!)
em  tempero de eterna paz,
reconquistada.
Na solidão de noites ermas,
lembrarei que és feliz: tanto me basta.
No silêncio,
povoado de palavras,
florescerá o verso
de breve pena,
verso emplumado,
verso alado,
volátil:
redenção de asa e pluma
do delito de amar
em diacronia
entre dois intervalos
de água e areia.


Paris, fim de primavera, 1970. 


QUEIROZ, Maria José de. Exercício de Levitação. Coimbra: Atlântida, 1971. p. 76-79.


sexta-feira, 15 de agosto de 2014

A irritante resignação

Restava saber se era isso que desejava... que parte cabia ao Brasil no seu coração? E na sua inteligência? O de que gostava, e que curtia aqui, não tinha preço. Nem nome. Era a alegria de respirar o ar de casa, de cheirar a roupa de cama lavada uma vez por semana, de ouvir gente falando português, de ler os jornais pendurados do lado de fora das bancas, de admirar o riso espontâneo que ainda enfeitava, apesar dos pesares, o rosto das pessoas. Mais desdentadas que fossem. Mas... e as agressões que sofria ao descer à rua? Os mendigos deitados nos vãos das portas, os pivetes em corridas desabaladas, fazendo acrobacias nas traseiras dos ônibus, as sarjetas imundas, as valas negaras a céu aberto, os passeios ocupados por carros e vendedores ambulantes, a desobediência às leis e às regras miúdas da convivência... Ficaria livre de tudo isso. E de muito mais. Até da irritante resignação dos brasileiros diante da corrupção, da injustiça, da fraude, da impunidade e da demagogia dos políticos. Só que a inconsciência, ou talvez a pouca seriedade com que se comportam, não é para desprezar-se: se não a tivessem, como sobreviveriam aos trancos da miséria, da calamidade e da desigualdade social? A inconsciência aqui é uma forma de defesa...

QUEIROZ, Maria José de. Sob os rios que vão. Rio de Janeiro: Atheneu-Cultura, 1990. p. 336.

sexta-feira, 25 de julho de 2014

Era amor à primeira vista...

Era amor à primeira vista. Disso eu não suspeitava. Ainda não. Acreditava-me infenso a tais fraquezas. Cultivava, desde os últimos anos na Argentina, uma misoginia mal resolvida. Aborrecia-me o eterno feminino. Mas Brigitte não era como as demais mulheres... Descobri, passado o frenesi da paixão, que não só o eterno feminino existe, sim, como uma mulher é todas as mulheres. E talvez seja isso o eterno feminino. Quem conhece uma, conhece todas elas. A paixão é que é diferente. É o sujeito que reinventa o objeto amado. Embora ele seja sempre o mesmo...

QUEIROZ, Maria José de. Vladslav Olstrov, príncipe do Juruena. Rio de Janeiro: Reccord, 1999. p. 84.

domingo, 29 de junho de 2014

A terra do amor

Esta é, salta aos olhos e à inteligência, a terra do amor. Como se fosse preciso acrescentar que o último livro do crítico e professor do Colégio de França - Roland Barthes -, se chama Fragments d´un discours amoureux. É. todo mundo anda aos pares: Abelardo e Heloísa, Henrique IV e Gabrielle d´Estrées, a Pompadour e Luís XV, Yvonne Printemps e Pierre Fresnay, Madeleine Renaud e Jean-Louis Barrault, Roland Petit e Zizi Jeanmaire, a Greco e Michel Piccoli... Até o ménage à trois, instituição francesa, se abriga à sombra do casal. A solteirona, à brasileira, ou à mineira, não existe. Nem é, sequer, raça em extinção, como entre nós. É raça extinta. A celibatária vive aqui à sombra de código próprio. Com direito a fantasias e mais divagações amorosas. Dorme com quem quer, move-se livremente dentro de uma sociedade que aceita sem preconceito as uniões passageiras, com ou sem intuito de legalização. A escolha do celibato não se vincula à castidade. Nem nome conhecido (conhecidíssimo!!!) morreu, faz pouco, na casa da amantes, prostituta de preço.

QUEIROZ, Maria José de. Ano novo, vida nova. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1978. p. 54-55.

domingo, 15 de junho de 2014

Celebração da hospitalidade

Gratidão hospitaleira
quarto ensolado,
nesga de azul a espantar pesadelos,
mar murmuroso a despertar naufrágios.
Entre muros
a florescida lição:
casa plantada no meio dos homens,
porta aberta a todos os ventos,
paredes caiadas de bênção divina.
Amiudado o riso
na dualidade harmônica,
nos chinelos solícitos,
nos pijamas aurorais,
no holocausto matinal de barba e sonho,
nas ilusões desfeitas
em espumas alvais de sacrifício.
O referente ofertório na toalha e no pão.
No lento mastigar, o ritual eucarístico.
Em diário suor, o cumprimento da promessa.
No descanso angular da poltrona,
a justificação do trabalho.
O preguiçoso divagar do fumo volátil,
livre espiral
        ágil e
        lábil.
No retângulo iluminado de imagens fugidias,
o refúgio do silêncio.
Oh! encantada surpresa
do trivial infantil
Alegria mansa
de fidelidade fiel
a
fiel companheira.
Tranquila amenidade
na berlinda
do merecido aplauso
e consagrado êxito.
A alma serena,
encolunada de cânones,
celebra hosanas
de devoto culto
em
vigília
genuflexa.

Receita de felicidade,
aprendido o susto,
bem medida,
temperada,
a quatro mãos
e cúmplice afeto,
com sabor requintado
de
i
mortalidade.

Na excelência do convite,
o exortado exemplo.
Na gratuito magistério,
privilégio de raros,
o gesto agradecido
da retribuição.
Mestre ontem,
hoje discípulo -
milagre dosado
em libra de sal - régio salário
à
solitária
disponibilidade.
Quanta lição!


Paris 15/2/1970.



QUEIROZ, Maria José de. Exercícios de levitação. Coimbra: Atlântida, 1971. p. 30-32.

quinta-feira, 29 de maio de 2014

Recitação de inverno



QUEIROZ, Maria José de. Recitação de inverno. In: ______. Exercício de levitação. Coimbra: Atlântida Editora, 1971. p. 14-15.

quarta-feira, 19 de março de 2014

O exercício do papel do usurpador

Esvaziados os conceitos de Direito e Justiça, nada resta ao legislador além da aplicação da lei pela lei. Isto é, o exercício do papel do usurpador. Incapaz de aplicar a justiça, o regime justifica a força, abolindo a liberdade. No entanto, a autoridade arbitrária - veículo transitório do poder, esgota-se em si mesma: nada mais enganoso que a imposição da lei pela força. Aquele que a ela se rende transfere ao regime o desvirtuamento do princípio de autoridade. E o abuso do poder reconduz, fatalmente, a liberdade à sua origem. Quem nada tem a perder, tem tudo a ganhar...

QUEIROZ, Maria José de. A literatura encarcerada. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1980. p. 97.

domingo, 9 de março de 2014

Agora canto

Agora canto,
sim,
canto:
a violência da calma, o furor do silêncio,
a revolta contida, a raiva, o rancor,
a fraude do afeto, o sangue, a ofensa,
o desdém ao recato, o insulto ao pudor.
Que ocorram às minhas palavras
a doçura do pomo maduro,
a peçonha da serpe maldita,
a ciência do bem e do mal.
E ao suor do castigo nefando
(que atou o pão ao trabalho)
se misturem as dores que sinto
ao trazer ao sol e ao calor
criatura de Deus concebida
em pecado e ao pó condenada.

QUEIROZ, Maria José de. Para que serve um arco-íris?  Belo Horizonte: Imprensa, 1982. p. 44.

quarta-feira, 26 de fevereiro de 2014

Diante de Osíris (Egito)

Livre dos laços do sangue,
imune à corrupção da carne,
subi à montanha de Tebas.
Mertseger, a amada de Osíris,
a amiga do silêncio,
encontrei-a à minha espera.
Aos quatro filhos de Horo
entreguei as minhas vísceras,
em quatro canopos embalsamadas.



Sob a proteção de Selkis
o meu corpo será preservado.
A Amset dei o meu fígado,
a Hapi, os meus pulmões,
a Duamutef, o meu estômago,
a Qebesenuf, as minhas entranhas.
Graças aos meus talismãs
e à lição do Livro dos Mortos
atravessei o reino da ausência
quando a noite submarina
naufragava na areia lodosa.
À força de atar nomes e signos
a escaravelhos, urnas e papiros,
aprendi a origem fatal
de todas as origens:
iniciei-me no ciclo solar,
no segredo das serpentes enroscadas,
no sigilo das cinzas do esquecimento,
no simbolismo do fumo em espiral,
no destino dos animais impuros.
Tomei o meu caminho,
isento de maus augúrios.
Beijei o umbral sagrado
de acesso ao saguão imenso
diante do Juiz soberano;
na Sala do duplo juízo
aguardei a minha sentença.
A mitra de cor branca
ressaltava-lhe a tez escura.
O olhar magnânimo,
Osíris acolheu-me com bondade.
Junto de enorme balança,
Maat — a deusa do Direito,
da Justiça e da Verdade,
assistida por Anubis e Horo.
Num canto, de cócoras,
Amamet — a Devoradora,
olhava-me com sanha,
pronta a punir meus pecados.
Mas Osíris, o Redentor,
Vigiava o monstro esfaimado.
Quarenta e dois juízes,
vinte e um de cada lado,
examinaram-me a consciência
tentando descobrir
o mais mínimo desvio,
a mais leve falta.
Chamando-os pelo nome,
um a um, sem vacilar,
recitei, gravemente,
a confissão bem decorada.
Declarei minha inocência:
dei pão a quem tinha fome,
dei água a quem tinha sede,
vesti os que estavam nus,
ao náufrago emprestei barca,
aos deuses levantei altares.
Fiz o de que falam os homens
e o de que se rejubilam
os que são glorificados.
Contentei a Deus
naquilo que Ele ama:
sou justo
e sem pecado.
As divindades propícias
iluminaram-me a memória,
afastaram de mim o receio,
afugentaram as estrelas febris,
fortaleceram-me a palavra.
Terminado o discurso,
convocaram meu espírito
para a pesagem da alma.
Anubis tomou o meu coração;
no outro prato da balança,
a equilibrá-lo,
a própria Maat — símbolo da Verdade.
Thot, vizir de Osíris,
Senhor do Verbo eterno,
consultou as suas tábuas:
nos dois pratos — o peso exato.
Na sua linguagem aérea,
de cores e de música,
em timbre de clarim,
a assembleia dos juízes
proclamou em voz alta
o veredito divino:
Que o morto seja livre,
livre para dispor de si mesmo,
livre e vitorioso
no seio dos espíritos
e no meio das divindades,
Senhor do tempo e do espaço.
Desde então guardo o campo dos deuses,
vigio diques e canais.
Os respondedores, meus escravos,
acorrem ao meu chamado
para eximir-me de trabalho.
Do mundo apenas me chegam
os séculos das idades
na perfeita sabedoria
de Thot
— o patrono da história. 

QUEIROZ, Maria José de. Resgate do real: amor e morte. Coimbra: Coimbra, 1978. p. 47-50.

quinta-feira, 6 de fevereiro de 2014

Histórias encantadas

Os contos reunidos em El sueño de Natacha e Puck têm como fonte comum as clássicas histórias encantadas cujas personagens - Gata Borralheira, Chapeuzinho Vermelho, Barba Azul, o duende Puck, etc. - povoam os sonhos das crianças de todos os tempos e todos os países.

A autora busca nos velhos contos populares, ou na imaginação, motivo para esses "poemas fantásticos". Muitas vezes recorre à própria experiência infantil e cria páginas originalíssimas. Adapta as personagens a novas condutas, apresenta-lhes situações diferentes, delimitando ou alargando-lhes o campo de ação.

A literatura infantil ganhou em Juana de Ibarbourou uma escritora que se faz criança a cada momento em que escreve para crianças.

QUEIROZ, Maria José de. A poesia de Juana de Ibarbourou. Belo Horizonte: Imprensa da Universidade Federal de Minas Gerais, 1961. p. 55.

segunda-feira, 27 de janeiro de 2014

Amorem

En mi cuerpo tu buscas el monte,
a su sol enterrado en el bosque.
En tu cuerpo yo busco la barca
en mitad de la noche perdida.

                          Octavio Paz

Ingênuo alumbramento
dos sentidos acordados
na exaltação do afeto
ainda ontem refutado.

Nos ombros sacrificamos
orgulho de muitas casas,
preconceitos alarmados
de rochas e duas aras.



O tempo,
entre lábio e lábio
suspenso,
esquece horas,
relógio,
cinza, angústias e mágoa.

Em abraço confundidos,
na ávida procura de nós mesmos,
olhos nos olhos nos miramos,
olhos nos olhos nos perdemos.

Em delírio prosseguido
a nossas bocas sedentas
chegam carícias sem verbo,
falamo-nos em silêncio,
nos ouvimos a tato e medo.

Na voz febril do gesto,
ora sôfrego, ora manso,
percorremos o alfabeto.
Quando a sede se aplaca,
a ternura sobe às asas
e em espirais adeja,
ambiguamente casta.

Como de Formentor
a repetida vaga,
a vertigem dos sentidos
de novo nos arrebata.

Eis-nos embarcados,
e náufragos,
ainda uma vez,
e mais, e mais,
entre pedra e água.

Quando tuas mãos recuperam
seu antigo exercício
tudo volta ao que fora:
cabeça, tronco e membros,
a cada qual seu desempenho.

Olhos nos olhos nos buscamos
olhos nos olhos,
no olvido da ampulheta
e dos ponteiros.

Na tentação de existir,
Eu e Outro,
tu e eu,
corpo e alma,
corpo e alma entrelaçados,
afogamos dissabores
de rocha, âncoras e aras.

Entre luz e sombra
de outonal brumário,
mar alto, terra ao longe,
longe praia,
inventamos nosso porto
na encruzilhada das águas.

QUEIROZ, Maria José de. Resgate do real: amor e morte. Coimbra: Coimbra, 1978. p. 29-31.

sexta-feira, 17 de janeiro de 2014

Resgate do silêncio

Reduz-se a imanência
nosso inquieto deambular.
Recolhe-se o sobejo:
gesto, emoção, sentidos,
canto, voz e grito.
Em sutil clausura de pó
encerra-se o futuro
numa doce intimidade
de sombra e meteoro.
Horizontal, humilde,
servil e plana,
a terra triunfa
pés inquietos, mãos nervosas,
dedos ágeis,
na diversa profusão de ternura, tédio e ódio,
descansam em paz.

Lábios cerrados,
olhos enxutos,
no silêncio, nosso resgate;
vítimas caladas
somos cúmplices da eternidade. 

QUEIROZ, Maria José de. Resgate do real: amor e morte. Coimbra: Coimbra Editora, 1978. p. 67.