sexta-feira, 31 de maio de 2013

Árvore

Fotografia: Lyslei Nascimento, 30/5/2013, UFMG - Belo Horizonte/MG - Brasil.
O que tomas à terra,
entregas ao vento: 
folhas, flores, verde musgo.

Chuva, orvalho, sol e lua
– tudo convertes em fruto.

Na aspereza do tronco
a seiva se transmuda.
No mais tenro botão
a raiz se renova a custo
de esforço lento, lento, 
sostenuto 

A tempo preciso
ao ramo envias 
o necessário sustento:
nem muito nem pouco,
assaz bastante
– a medida justa.




No gosto esmerado, caprichoso,
de evitar a monotonia
e o abuso,
o sabor apuras de cada fruto;
nos tons e entretons
a tua riqueza se insinua.

Arredondas linhas e formas,
dentro dos limites exatos,
fiel a ti mesma, à flora, ao uso.
Aborreces a pressa e o escândalo:
sem alarde nem tumulto
ofereces à fauna voraz
o teu dom apreciado, maduro.

Obediente às estações,
atenta ao céu e à nuvem,
repetes em cada galho
o compromisso do caule:
servidão de alta fronte,
alheia à sedução da brisa
e ao convite do vento.

Firme no teu posto
aprendes paisagem,
ensinas permanência.
Teu itinerário reiventas
no território ocluso
a que raiz e tronco te condenam:

no voo dos hóspedes
teu roteiro alado
pelos quatro cantos da terra.

Nas asas ligeiras
teus sonhos se resolvem:
partes e permaneces.

No azul, és pássaro;
na terra, és verde.

Árvore, árvore,
verde pássaro azul,
verde, verde.

Paris, 1971.

QUEIROZ, Maria José de. Exercício de fiandeira. Coimbra: Coimbra, 1974. p. 44-46.

sábado, 25 de maio de 2013

Privada de distração

Privada de distração, procurou a igreja. Ia à missa das seis mas também assistia à das sete e à das oito. Voltava ao meio-dia para o Angelus e à  noite para a benção e para a reza. De capela em capela fazia suas orações. Ficava mais tempo diante da imagem de Santo Antônio, cujo altar ela floria, de alto a baixo, todas as terças-feiras. Carregava mais de dúzia de livrinhos de devoção, colecionava novenas de todos os santos do céu. Trazia bentinhos, relíquias e escapulários pendurados no peito por uns seis ou sete alfinetes de mola. O rosário de contas de lágrimas na mão, seus lábios repetiam, incansavelmente, mistérios gozosos, dolorosos, gloriosos.



QUEIROZ, Maria José de. Amor cruel, amor vingador. Rio de Janeiro: Record, 1996. p. 125.

segunda-feira, 20 de maio de 2013

Amor eterno

Toda emoção e sentimento relacionados com a vida transmitem ao indivíduo a mesma essência limitativa. Há quem faça promessas de devotamento eterno ao ser amado. Há quem creia no "per omnia saecula saeculorum" de humana intenção. Apesar de tudo, sempre haverá a morte a estabelecer fronteira. Chegados, contudo, ao seu domínio, não nos ocupa nem preocupa a ideia da limitação. Semeia-se no seu campo a eternidade. Transferindo para além da vida o compromisso amoroso, tem o poeta a certeza de garantir-lhe a perenidade. O salto confere ao sentimento humano, imanente e efêmero, a virtude da transcendência. Os chamados amores eternos só logram essencialidade se marcados pela morte.

QUEIROZ, Maria José de. César Vallejo: ser e existência. Atlântida: Coimbra, 1971. p. 111.

quinta-feira, 16 de maio de 2013

Nas ficções de Borges

Nas Ficcciones de Borges temos a melhor expressão dessa bem nascida segurança que deixou de copiar para inventar. Espanta ao europeu a tranquilidade da sua erudição, a espontaneidade da sua palavra que cria situações fantásticas, imagina mitos, interpreta heresiarcas, desenreda labirintos e desvenda os segredos da Cabala.

QUEIROZ, Maria José de. Presença da literatura hispano-americana. Belo Horizonte: Imprensa/Publicações, 1971. p. 27.

domingo, 12 de maio de 2013

A íntima experiência do desterro

"Veio-me o ensejo de pôr-me num romance que viria a ser uma autobiografia - fala ao leitor. - Um romance em que queria pôr a mais íntima experiência do meu desterro, criar-me, eternizar-me sob os rasgos do desterrado e proscrito. E agora penso que a melhor maneira de fazer esse romance é contar como se deve fazê-lo". De si e per si complexo, porque envolvia personagens inconciliáveis, o Eu e o Outro, o pacto autobiográfico exige de Unamuno uma ampla e nem sempre auspiciosa revisita ao passado. À mercê do próprio Eu - amigo-inimigo -, debate-se no círculo estreito da criação. Ali mesmo, no "presente eterno" em que representa a "tragédia misteriosa" "da vida histórica e espiritual", põe, vis-à-vis, o Eu e seu duplo: "O Unamuno da minha lenda, do meu romance, o que temos feito juntos, o meu eu amigo e o meu eu inimigo e os demais, meus amigos e meus inimigos, este Unamuno me dá vida e morte, me cria e me destrói, me sustenta e me afoga. É minha agonia". 

QUEIROZ, Maria José de. Os males da ausência ou A literatura de exílio. Rio de Janeiro: Topbooks, 1998. p. 319.

sábado, 4 de maio de 2013

Homem ocupado em refazer a vida

É Artaud, dentre todos os supra-realistas, o mais comprometido com a interpretação do enigma proposto pelo Eu e jamais decifrado pelo "outro" que nele vige. Sua experiência instala-se no uso da palavra e na consciência do "impoder" - (l'impuissance), porque inibe a ação (im + impouvoir). O verbo roubado, o corpo em exílio forçado, longe do espírito, eis seus maiores tormentos. "Eu penso na vida", revela em Position de la chair. "Todos os sistemas que poderei edificar jamais igualarão os meus gritos de homem ocupado em refazer a vida... Essas forças informuladas que me assaltam, será preciso que um dia a razão as acolha, que elas se instalem no lugar do pensamento alto, essas forças que de fora têm a forma de um grito. Há gritos intelectuais, gritos que provêm da fina pasta das vértebras. É isso, de mim para mim, que eu chamo a Carne. Eu não separo o meu pensamento da minha vida. Eu refaço, em cada uma das vibrações da minha língua, todos os caminhos do pensamento na minha carne... Mas que sou eu no meio dessa teoria da Carne ou, para melhor dizê-lo, da Existência? Sou um homem que perdeu a vida e que procura por todos os meios fazê-la retomar o seu lugar... Mas é preciso que eu inspecione o sentido da carne que deve dar-me uma metafísica do Ser e o conhecimento definitivo da vida".

QUEIROZ, Maria José de. A literatura alucinada: do êxtase das drogas à vertigem da loucura. Rio de Janeiro: Atheneu Cultura, 1990. p. 125.