Ao meu corpo entregaste
cansaço de muitas paredes,
vozes de muitas salas.
No teu corpo carregavas
choros, soluços e lágrimas,
recalques de triste infância
e mais injustiças e frases
de tempo vivido e gasto.
A máscara do dia-a-dia
já não te fazia falta:
deixaste-a nos meus ombros
ao descalçar tua honra,
teu passo firme e válido,
tua invencível vaidade.
No meu corpo repousaste
todo o peso da tua alma.
Encenamos tragédia grega
no disfarce bem logrado
da verdadeira persona
que arrancamos à cara.
Na fogueira de Eros
queimamos nossos fantasmas.
Ó busca insaciada
de unidade lábil
- perdida e recuperada!
Sob o signo do amor,
invocamos Thanatos:
morremos e renascemos,
despertamos justificados.
Humilhados e tímidos,
na nudez do fruto provado,
reassumimos no sono
a face do justo,
a inocência do hábito.
Já altivos deparamos (Ora se...),
nos pés alevantados,
o vértice dos bípedes,
sem asas.
Seres pedestres, verticais,
à frente da oração,
e da criação,
repetimos gestos,
prolongamos a vida,
em fuga interminável.
QUEIROZ, Maria José de. Resgate do real: amor e morte. Coimbra: Coimbra, 1978.
p. 32-33.
p. 32-33.