terça-feira, 26 de fevereiro de 2013

Gula e gulodice

Incluída pela Igreja entre os pecados mortais, a gourmandise desvincula-se do vício para elevar-se, na Fisiologia do gosto, a apanágio do homem (a tradução ao português seria, nesse caso, gulodice e não gula). Para Brillat-Savarin ela se opõe à gula latina: inimiga de todo excesso, caracteriza-se pela preferência, embora apaixonada, por tudo quanto lisonjeie o gosto. Graças a ela, as especiarias atravessam a terra de um a outro pólo, os vinhos e licores são exportados aos cinco continentes. É ela que atribui preço proporcional às coisas que são medíocres, boas ou excelentes, seja porque suas qualidades provem da arte, seja porque a própria natureza assim as criou.





QUEIROZ, Maria José de. A comida e a cozinha: iniciação à arte de comer. Rio de Janeiro: Forense-Universitária, 1988. p. 101.

domingo, 17 de fevereiro de 2013

Toda presença é conflito

Por que a palavra ríspida, a ironia venenosa e a impaciência? Por que o desabafo de desgosto? Que motivo me afasta das pessoas? A abundância de vida, acredito. O tumulto dos sentimentos exteriorizado em signos visíveis e audíveis, nem sempre agradáveis. É a imagem que me comove – o que fica como soma e síntese, fusão final. A face em que se confundem tiques, expressões e hábitos. Só a separação, a distância e a morte nos oferecem a pessoa na sua integridade, no seu retrato total – de corpo e alma. Salva dos desnorteios da razão, das bruscas mudanças de comportamento, ela – a pessoa, aparece-nos finalmente aliada à sua personagem. É a eternidade que comparece no exercício repetido a que a memória nos obriga. A presença, na sua solicitude importuna, na sua riqueza compósita, dispersa e dissipa. Ameaçadoramente subversiva, ela põe em perigo a estabilidade, o equilíbrio. Toda presença é conflito. O físico perturba, confunde, embaraça. Submete-nos a uma constante revisão de conceitos. Se tentamos guardar figura que o represente, saímos logrados: fluida, tremida, indistinta, ela assemelha-se ao vulto da fotografia fora de foco. A ausência, pelo contrário, concentra, reúne, aglutina. E só a morte – ausência definitiva – confere aos monumentos, às estátuas e aos seres humanos as dimensões da imortalidade. Assim entendo o verso de Mallarmé "Tel qu'en lui même enfin l'éternité le change", a propósito de Edgar A. Poe. O apelo à sacralização instaura no nosso íntimo o gosto da perfeição, o capricho na caracterização de cada gesto e de cada palavra, dentro da continuidade do vivido. Do já vivido.

QUEIROZ, Maria José de. Invenção a duas vozes. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1978. p. 106.



sábado, 9 de fevereiro de 2013

Imigração interior

Hannah Arendt comenta que o nome - emigração interior, é, já de si, ambíguo. Óbvio. Porque aquele que emigra, emigra para fora, é o emigrante. O seu antônimo é imigrante. Mas para livrar-se de censura, ou para justificar-se ante as patrulhas ideológicas do após-guerra, convinha adotar o mesmo substantivo - emigrante, e o coletivo correspondente - emigração, com que uma parte dos habitantes - temerários, comunistas ou inconsequentes, passara a ser conhecida. Que fazem os "resistentes"? Juntam aos substantivos o adjetivo "interior". E pronto. Acontece que muita gente  que colaborou ou compactuou com o regime buscou abrigo debaixo desse paradoxo engenhoso.


QUEIROZ, Maria José de. Os males da ausência ou A literatura do exílio. Rio de Janeiro: Topbooks, 1998. p. 595.