quarta-feira, 17 de janeiro de 2018

Sobre os rios que vão (1990)


QUEIROZ, Maria José de. Sobre os rios que vão.
Rio de Janeiro: Atheneu-Cultura, 1990. 338p.

O romance Sobre os rios que vão narra a história de uma família de origem judaico-búlgara no interior do estado de São Paulo. O enredo gira em torno do jovem Joel Levi que, para tentar burlar os impasses da identidade e da memória judaica, troca seu nome para Jari Leite. Estão no horizonte dessa trama a sua relação com o passado de sua família e, por extensão, com a sua herança sefardita. Babilônia, nessa história de exílio, é, no Brasil, metafórica, ou seja, corresponde aos vários locais onde suas personagens vivem suas histórias: a cidade de São Paulo, após a imigração de Fatuel, o pai de Joel; o interior paulista, São Godofredo, onde ele constituiu família e se tornou um luthier; para Joel, também a cidade de São Paulo de seus estudos e do tio Mattei, depois sua experiência na Alemanha e na França. Assim, essa “Babilônia” transmuta-se num lugar imaginário, na verdade um estado de espírito no qual lamentam-se os males da ausência.

“Sem meios para me instruir, aprendi, em casa, com meu pai, que é marceneiro, a trabalhar a madeira. E o que mais queria era possuir um violino. Meu sonho era ser violinista. Deus não permitiu que eu o realizasse. Não me queixo. Toco um pouco e transferi para a minha modesta fábrica de instrumentos a paixão que sempre senti pela música. Acho que poder fabricar o próprio instrumento aumenta o prazer de tocá-lo. A minha impressão é que ao executar uma peça eu retiro de dentro do violino os sons e os harmônicos que eu mesmo pus lá dentro.” (QUEIROZ, 1990. p. 102).

“Nunca houve, nem haverá, uma cidade como Berlim. Tive a impressão de que estávamos na véspera do fim do mundo. Abraham me repetiu um dia a frase de uma amiga sua: "Aqui, uma mulher custa um cigarro e um quilo de pão, um milhão de marcos". Mas não era só a mulher: o homem também valia pouco. O que custava caro era a comida. Num cartaz de cabaré, li e anotei esta frase formidável: "Berlim, teu parceiro de dança é a morte". E a morte veio com a guerra. Tudo o que aconteceu depois você já sabe. Faz parte da história: os conflitos entre nazistas e comunistas, os desfiles de rua e o fatídico 10 de maio, quando Goebbels e os estudantes lançaram ao fogo milhares de de livros. Quando a Alemanha foi invadida eu já estava no Brasil.” (QUEIROZ, 1990. p. 173).

“Restava saber se era isso que desejava... que parte cabia ao Brasil no seu coração? E na sua inteligência? O de que gostava, e que curtia aqui, não tinha preço. Nem nome. Era a alegria de respirar o ar de casa, de cheirar a roupa de cama lavada uma vez por semana, de ouvir gente falando português, de ler os jornais pendurados do lado de fora das bancas, de admirar o riso espontâneo que ainda enfeitava, apesar dos pesares, o rosto das pessoas. Mais desdentadas que fossem. Mas... e as agressões que sofria ao descer à rua? Os mendigos deitados nos vãos das portas, os pivetes em corridas desabaladas, fazendo acrobacias nas traseiras dos ônibus, as sarjetas imundas, as valas negaras a céu aberto, os passeios ocupados por carros e vendedores ambulantes, a desobediência às leis e às regras miúdas da convivência... Ficaria livre de tudo isso. E de muito mais. Até da irritante resignação dos brasileiros diante da corrupção, da injustiça, da fraude, da impunidade e da demagogia dos políticos. Só que a inconsciência, ou talvez a pouca seriedade com que se comportam, não é para desprezar-se: se não a tivessem, como sobreviveriam aos trancos da miséria, da calamidade e da desigualdade social? A inconsciência aqui é uma forma de defesa...” (QUEIROZ, 1990. p. 336).

Lyslei Nascimento
Faculdade de Letras, UFMG