quarta-feira, 26 de fevereiro de 2014

Diante de Osíris (Egito)

Livre dos laços do sangue,
imune à corrupção da carne,
subi à montanha de Tebas.
Mertseger, a amada de Osíris,
a amiga do silêncio,
encontrei-a à minha espera.
Aos quatro filhos de Horo
entreguei as minhas vísceras,
em quatro canopos embalsamadas.



Sob a proteção de Selkis
o meu corpo será preservado.
A Amset dei o meu fígado,
a Hapi, os meus pulmões,
a Duamutef, o meu estômago,
a Qebesenuf, as minhas entranhas.
Graças aos meus talismãs
e à lição do Livro dos Mortos
atravessei o reino da ausência
quando a noite submarina
naufragava na areia lodosa.
À força de atar nomes e signos
a escaravelhos, urnas e papiros,
aprendi a origem fatal
de todas as origens:
iniciei-me no ciclo solar,
no segredo das serpentes enroscadas,
no sigilo das cinzas do esquecimento,
no simbolismo do fumo em espiral,
no destino dos animais impuros.
Tomei o meu caminho,
isento de maus augúrios.
Beijei o umbral sagrado
de acesso ao saguão imenso
diante do Juiz soberano;
na Sala do duplo juízo
aguardei a minha sentença.
A mitra de cor branca
ressaltava-lhe a tez escura.
O olhar magnânimo,
Osíris acolheu-me com bondade.
Junto de enorme balança,
Maat — a deusa do Direito,
da Justiça e da Verdade,
assistida por Anubis e Horo.
Num canto, de cócoras,
Amamet — a Devoradora,
olhava-me com sanha,
pronta a punir meus pecados.
Mas Osíris, o Redentor,
Vigiava o monstro esfaimado.
Quarenta e dois juízes,
vinte e um de cada lado,
examinaram-me a consciência
tentando descobrir
o mais mínimo desvio,
a mais leve falta.
Chamando-os pelo nome,
um a um, sem vacilar,
recitei, gravemente,
a confissão bem decorada.
Declarei minha inocência:
dei pão a quem tinha fome,
dei água a quem tinha sede,
vesti os que estavam nus,
ao náufrago emprestei barca,
aos deuses levantei altares.
Fiz o de que falam os homens
e o de que se rejubilam
os que são glorificados.
Contentei a Deus
naquilo que Ele ama:
sou justo
e sem pecado.
As divindades propícias
iluminaram-me a memória,
afastaram de mim o receio,
afugentaram as estrelas febris,
fortaleceram-me a palavra.
Terminado o discurso,
convocaram meu espírito
para a pesagem da alma.
Anubis tomou o meu coração;
no outro prato da balança,
a equilibrá-lo,
a própria Maat — símbolo da Verdade.
Thot, vizir de Osíris,
Senhor do Verbo eterno,
consultou as suas tábuas:
nos dois pratos — o peso exato.
Na sua linguagem aérea,
de cores e de música,
em timbre de clarim,
a assembleia dos juízes
proclamou em voz alta
o veredito divino:
Que o morto seja livre,
livre para dispor de si mesmo,
livre e vitorioso
no seio dos espíritos
e no meio das divindades,
Senhor do tempo e do espaço.
Desde então guardo o campo dos deuses,
vigio diques e canais.
Os respondedores, meus escravos,
acorrem ao meu chamado
para eximir-me de trabalho.
Do mundo apenas me chegam
os séculos das idades
na perfeita sabedoria
de Thot
— o patrono da história. 

QUEIROZ, Maria José de. Resgate do real: amor e morte. Coimbra: Coimbra, 1978. p. 47-50.