quarta-feira, 19 de agosto de 2020

O gozo impuro da comida segundo Maria José de Queiroz


O gozo impuro da comida segundo Maria José de Queiroz

Lyslei Nascimento
UFMG

Os animais pastam, o homem come; mas apenas o homem de espírito sabe comer. E quem sabe comer é gastrônomo. A dignidade da gastronomia apoia-se não só numa forte estrutura econômica, que lhe confere peso, medida e cifra, como se exalta, igualmente, no refinamento da mais imediata das funções fisiológicas. Assim, a alegria de sentar-se à mesa para responder a uma das leis da sobrevivência deve antecipar-se na leitura do cardápio, expandir-se na discussão das iguarias, concretizar-se na degustação e prolongar-se em gesto e palavra de louvor à sua forma, feitio, cor e apresentação. O conviva celebra no silencioso e recolhido ato de saborear a comida o talento do artista criador. Pouco importa o caráter efêmero da obra criada: a receita é partitura que se repete e volta a deliciar indefinidamente.
Maria José de Queiroz

Desde a Bíblia, a comida, a sedução e o pecado encontram-se entrelaçados. Há, na insubordinação de Eva, algo de tão lascivo que comer do fruto proibido tornou-se, misticamente, muito mais do que abocanhar uma vulgarmente apelidada maçã. Há, nesse encontro entre a mulher, a serpente, o fruto proibido e o homem, perigo e transgressão. Afinal, com a desobediência, deixamos de ser meros bonecos de argila e nos tornamos humanos, tendo que, com sabedoria, humor e arte, vencer nossa finitude, nossa mortalidade.
Na história de Branca de Neve, a perigosa maçã se intromete no felizes para sempre. Em vez da serpente, uma bruxa com o suculento e vermelho fruto. Em vez do tolo Adão, um príncipe para salvar Branca. Como é possível perceber, nessas histórias da carochinha, o homem é promovido de patente. A mulher de agente (do mal, é bem verdade) é rebaixada à vítima (apesar de seu duplo ser a Bruxa). Mas a maçã está lá. Linda e suculenta. Vermelha e terrível.
Se é possível acompanhar uma história da alimentação e da transgressão da Bíblia até os contos de fada – em histórias que vão de Abraão, que prepara uma ceia para os anjos que lhe anunciam o filho tão esperado; a Esaú e Jacó, que negociam a primogenitura com um prato de sopa de lentilhas; até o milagre da multiplicação dos pães e a nefasta última ceia, quando Judas recebe das mãos de Jesus um bocado de pão mergulhado em vinho – na literatura, na arte, a relação entre a comida e o gozo impuro da comida é ritual e festa.
Talvez Giuseppe Arcimboldo (1226–1593) possa iluminar, nosso olhar sobre a obra de Maria José de Queiroz. Embora o caráter sensual e, porque não dizer, impuro, esteja também presente no trabalho do grande pintor maneirista, é a multiplicidade que nos guiará. Como todos sabem, a obra do artista italiano inclui as séries “Os quatro elementos” e "As quatro estações". Nessas pinturas, ele usou, pela primeira vez, imagens da natureza, tais como frutas, verduras e flores, para compor fisionomias humanas.
A natureza compósita das figuras como estratégia de construção dirige o nosso olhar para o ensaio de Queiroz. O homem, a partir da perspectiva desses dois artista, um da imagem, outro da palavra, não é só o que come, mas, também, o que ele faz. Daí as pinturas de profissões com a mesma técnica de composição: o jardineiro, o bibliotecário e o cozinheiro.
Walter Benjamin afirma que se houvesse uma musa do romance seu emblema seria o cozinheiro. Ela eleva o mundo de seu estado bruto a fim de criar algo apto para comer, para realçar a plenitude de seu sabor. Pode-se até ler o jornal (ou, mais contemporaneamente, entrar nas redes sociais) enquanto se come, mas será possível, comer e ler um romance? Para o filósofo, essas seriam duas ações conflitantes, porque os livros não devem ser lidos da mesma maneira.
Romances existem para serem devorados, assegura o filósofo. Ler um romance é, assim, um ato voluptuoso, de absorção, não um ato de empatia. Para ele, o leitor não deve se imaginar no lugar dos personagens, mas assimilar o que acontece com eles. Desse modo, o relato vivido das experiências seria uma apetitosa guarnição em que um prato nutritivo chega à mesa. Haveria, assim, uma dieta crua de experiência – assim como há uma dieta crua para o estômago – a saber: as próprias experiências. A arte do romance, como as artes culinárias, começa além dos ingredientes crus. Quantas substâncias nutritivas existem e que não são apetitosas em estado bruto! Quantas experiências são aconselháveis para ler, mas não para ter! Alguns leitores são atingidos com tanta força que teriam sido devastados se tivessem sofrido as experiências diretamente! Assim, é preciso plantar, colher, lavar, cortar, temperar, cozer. Desse modo, uma verdadeira alquimia transforma o cru em cozido.
Voltemos às imagens compósitas de Arcimboldo e à multiplicidade para que possamos voltar à comida segundo Maria José de Queiroz. Para Italo Calvino, em suas propostas para o milênio, trata-se de multiplicidade a noção de obra como enciclopédia (ou seja, um conjunto de saberes que se articulam como um método de conhecimento, uma rede de conexões entre fatos, pessoas e coisas do mundo. Sendo assim, um rolo, uma embrulhada, um aranzel que é estruturado sem se perder ou atenuar sua complexidade inextrincável; também a presença simultânea de elementos os mais heterogêneos que concorrem para a determinação de um evento; cada objeto mínimo visto como o centro de uma rede de relações de que o escritor não consegue se esquivar, multiplicando os detalhes a ponto de suas descrições e divagações se tornarem infinitas; a leitura ou a observação de um trabalho dessa natureza constitui um modo de ler, de onde, de qualquer ponto que parta, o discurso se alarga de modo a compreender horizontes sempre mais vastos, e se pudesse desenvolver-se em todas as direções acabaria por abraçar o universo inteiro.
Nos mais de 30 livros da escritora é possível vislumbrar uma poética enciclopedista que a faz afeita aos grandes livros, aos temas universais, que terá a comida como um deles. Antes de chegar ao tema central desta exposição, a fim de demostrar o caráter enciclopédico da escritora, cito alguns títulos: A literatura encarcerada, publicado em 1981, e, em sua segunda edição (revista e atualizada), em 2019, pela Caravana Editorial, de Belo Horizonte; A literatura alucinada: do êxtase das drogas à vertigem da loucura, de 1990; A literatura e o gozo impuro da comida, publicado em 1994; A literatura do exílio, ou Os males da ausência, de 1998.
O ensaio A literatura e o gozo impuro da comida foi precedido por A cozinha e a comida: iniciação à arte de comer, publicado em 1988. Nesses dois livros, Maria José de Queiroz revela, na cozinha delirante da literatura, e sob os olhares ávidos do leitor, a mesa e suas relações com a arte, desde Homero até Pedro Nava, passando por Eça de Queirós e Machado de Assis. Do sumário à tábua de matérias, a comida é pasto para a erudição e o deleite do leitor. Como não é possível deixar de perceber, delinear a mesa a partir da literatura amplia o projeto de Eduardo Frieiro, enciclopedista precursor, que em Feijão, angu e couve, de 1982, realiza um precioso ensaio sobre a comida dos mineiros. Ao compor esse nosso cardápio, Frieiro lança as bases para a pesquisa que a discípula, posteriormente, desenvolve e à qual dá dimensões para além das montanhas de Minas.
A despeito de uma aparente singeleza (de uma singeleza sensualista, nos afirma o professor Luiz Otávio Barreto Leite), Maria José de Queiroz conjuga a pesquisa histórica (tão evidente em A literatura encarcerada) com a memória dos sentidos, tão vívidos nos cheiros, nas cores e nos sabores como em seu romance Joaquina, filha do Tiradentes. Em A literatura e o gozo impuro da comida, a ensaísta produziu uma “verdadeira reforma de compreensão dos prazeres da mesa enquanto objeto de investigação”. O estudioso chama a atenção para o fato de que somente livres do preconceito que atribui ao paladar e ao olfato condição inferior à visão e à audição é que estaremos aptos a participar do banquete da civilização. É assim que, a partir dos cinco sentidos, Queiroz promove uma reavaliação das percepções gustativa e olfativa, muito antes da avalanche de “shows de realidade”, das batalhas de bolos, incluindo os bolos de copo, de churrascos, de doces; dos livros de dietas sem glúten, com glúten; com lactose, sem lactose; com açúcar e sem açúcar; também os livros sobre alimentos macrobióticos, energéticos, detox, termogênicos, dietéticos, lights, gourmets, orgânicos, veganos, hidropônicos e funcionais... Essa assombrosa lista quase borgiana parece não ter fim.
Ao estudar a comida na literatura e o papel da gastronomia na arte da palavra, Queiroz elabora um rico painel – desde a Antiguidade clássica até o século 20 – buscando na história, na antropologia, na filosofia, na literatura e em outros tantos saberes a comida, a cozinha, a culinária, o apetite e o prazer de comer, a gula e a fome e todo um imaginário que circunscreve a alimentação. O olhar de enciclopedista da escritora – que tudo quer ver e devorar – é metódico e múltiplo.
Ao reunir textos e escritores da tradição literária a fim de explorar o tema da comida, Queiroz instaura um ponto de origem que é apresentado segundo uma lógica peculiar: ela organiza e classifica os temas por ordenação cronológica, histórica ou geográfica. Essa estratégia é pedagógica, busca, sobretudo, o ensino, mas exibe, também, o método de quem vê a história literária como um fenômeno vivo, em que uma sucessão de acontecimentos, de temas e de ideias se interrelacionam.
Por isso, sua abordagem sobre a Antiguidade na Teogonia, de Hesíodo, ou seja, no mito de Prometeu, que rouba o fogo dos deuses e dá aos homens. Pergunta a ensaísta: “Não foi o fogo que condicionou o tipo de regime destinado aos mortais?”. O castigo infligido a Prometeu, ficar amarrado a uma rocha por toda a eternidade enquanto uma águia devora-lhe o fígado, que cresce novamente no dia seguinte, remete “a fome dos mortais, jamais saciada, que renasce ao correr dos dias e das horas. Num eterno recomeçar, o estômago não lhe permite esquecer o ônus da sua condição”.
Para Hesíodo, a necessidade biológica está associada, de forma negativa, à ideia de maldição: o homem “é escravo do ventre”, “do ventre, do sono e da libertinagem”, completa Queiroz, citando Sócrates. A voracidade, a intemperança e a fome fazem com que a comida (e o ato de comer) se associe menos ao prazer do que a uma necessidade que deva ser domada ou sentida como algo incômodo.
Nos grandes poemas homéricos, Ilíada e Odisseia, a comida, ou o ventre, metonimicamente, aparece ligada a uma série de situações que cumpre finalidades especificas em uma coletividade, ora visto de modo negativo (o “ventre maldito”, o “ventre odioso”, o “ventre funesto”, “que traz tantos males”, “tantas aflições traz aos mortais”), ora desempenhando funções restauradoras do corpo e do espírito. Os banquetes festivos e fúnebres, as ceias, as reuniões em torno da mesa, a comida na cultura grega, em geral, é, para a ensaísta, ligada ainda à hospitalidade, nos quais se selavam, sobretudo, os compromissos sociais.
A mesa exerceria, assim, uma função civilizadora que, como afirma Queiroz, “alcança no simpósio de Platão a sua mais alta relevância”. A ensaísta associa a comida, agora, a sua quase e inevitável aproximação com o apetite sexual. Fome e amor se complementariam, e ela vê, no simpósio, nessa forma de encontro “inventada” por Platão, em O banquete, a transformação do vinculo mesquinho que Ulisses via nas necessidades do estômago com o novo modo como a comida, a culinária e os rituais de convivência são convertidos, sublimados, em algo que, não só remete aos prazeres do ventre quanto aos do espirito. Os textos analisados gravitam em torno de um subtema, que completa uma ideia cujo fim volta ao ponto de origem.
No posfácio, a estudiosa explicita o seu método como “um encadeamento natural que não nos permite, por exemplo, ler Pedro Nava antes de Rabelais ou Fielding antes de Cervantes. Há um fio condutor, mais do que uma ordem lógica, que une todos esses escritores: é a sua maneira de sentir. De sentir o mundo. De cheirá-lo. De sorver a vida, de devorá-la. Ou de oferecer-se como alimento e deixar-se devorar”.
Para além do saber que está inscrito no texto de Queiroz, a ensaísta cria um modo de conceber essas relações, não só dando uma amostragem do tema gastronômico na história literária, e o tratamento dado a esse tema nas grandes obras da literatura, mas rastreia essas relações (desde um suposto inicio), e faz leitor observar que há uma espécie de tradição do assunto e o tema da comida e suas diversas manifestações se apresentam como um topos literário.
Da Roma antiga, Queiroz enfoca “O banquete de Trimalquião”, fragmento do inclassificável Satíricon, de Petrônio. Nesse estudo, ela aborda as descrições detalhadas do jantar luxuoso, extravagante e decadente oferecido pelo que se poderia chamar um "novo-rico" romano. Segundo a pesquisadora, nasce, com esse texto, um gênero “explorado, com êxito, no teatro e no cinema”, como nos filmes de Luis Buñuel e Peter Greenaway”.
Nesse itinerário, Queiroz não se furta de analisar, também, uma espécie de tratado dos excessos gastronômicos que é Gargântua e Pantagruel (1532), de François Rabelais. A comida, nesse texto, reflete a infinita gula desses dois gigantes, que bebem lagos de vinho e comem rebanhos de gado. Gargântua, pai de Pantagruel, nasce em um extravagante banquete, sua mãe Gargamelle se empanturra de tripas e no meio da confusão dá à luz a Gargântua, que nasce gritando: “Beber! Beber! Beber!”. A mordaz sátira de Rabelais é descrita e analisada por Queiroz que busca acompanhar as aventuras dos dois gigantes, vendo, nos excessos alimentares, a paixão criadora, gulosa e fecunda.
Já no périplo de Lazarrilo de Tormes, de 1554, “a fome passa a ser o seu tema de estudo. Segundo a autora, “não se cuida, nesse enredo de inspiração picaresca, do requinte da mesa nem da qualidade das iguarias aí servidas. O que importa ao pobre Lázaro, guia de cego, é matar a fome.” De Quevedo, a ensaísta trata de A vida de Buscón. Também nele, a fome aparece, mas também o deleite para com a comida. O personagem fecha os olhos para melhor degustar o saboroso vinho. Um jarro é chamado de “doce e amargo jarro”. Ao contemplar pães, guardados em uma arca, chama-a de “aquela cara de Deus”, e como não podia comer os pães, enchia a arca de “mil beijos”. Desse modo, ele beija, amorosamente, o que não pode comer apontando, com essa atitude, a ato amoroso, desejo, encantamento.
Do século 19, Maria José de Queiroz estuda a gastronomia francesa. Para a ensaísta: “A obra de Balzac virá à luz. Encruzilhada gastronômica das letras, a Comédia humana abre diante do leitor o copioso cardápio francês.” Parte desse imenso roteiro gastronômico vai sendo deliciosamente descrito e analisado de forma a exibir ao leitor uma verdadeira enciclopédia da comida francesa a partir de Balzac.
Na Comédia, de Eugenie Grandet, Queiroz investiga um pecado capital: a avareza. O sovina Grandet “estendia aos gestos e às palavras a mesma parcimônia com que dirigia a economia doméstica e os negócios. Resolvia, com quatro frases curtas, todas as dificuldades da vida e do comércio: “não sei”, “não posso”, “não quero”, “veremos”. Nessa sovinice material e linguística, Queiroz observa como ela se desdobra na rebeldia da sobrinha Eugenie (e de seu amor por Charles) e da criada Nanon. O açúcar roubado da despensa do velho Grandet, por Eugenie, para adoçar o café de Charles, é, sugestivamente, aproximado à paixão pelo primo.
Na parte dedicada ao século 19 no Brasil e em Portugal, a mesa portuguesa ganha merecido espaço. Nos romances O crime do Padre Amaro, O primo Basílio, Os Maias, A ilustre casa de Ramires, As cidades e as serras, de Eça de Queirós, a ensaísta encontra o requinte do tema gastronômico no escritor português. Afinal, citando o crítico José Quitério: “nem mesmo [em] Camilo ou Aquilino – são tão constantes, copiosas, quase avassaladoras as alusões, referências, descrições e sequências de índole gastronômica”.
O século 19, no Brasil, contrariando opiniões de críticos que diziam que entre nossos escritores havia ”uma indiferença pelos prazeres da mesa”, uma “ausência do ‘senso gastronômico’”, que nossos escritores “não se detiveram muito em comezainas”, Queiroz com fartos exemplos retirados de Machado de Assis, Aluísio Azevedo, Raul Pompeia, busca corrigir essa ideia, mostrando que há na literatura brasileira um “sensualismo alimentar”, não, como “uma tradição gastronômica, à francesa”, mas que revelam que comida e linguagem se associam de forma contundente.
Machado de Assis, modelo de temperança e sobriedade, é lido e descrito a partir de uma sucessão de exemplos que trazem, ao contrário de seu comedimento, uma volúpia e uma grande delícia. Afinal, ao dedicar as memórias póstumas ao verme que lhe come as carnes, o personagem Brás Cubas dá o tom do livro: o destino do homem é comer e ser comido. Desde “o primeiro encontro de Brás Cubas com a espanhola, as metáforas alimentares condicionam-se às pulsões da libido”, escreve Queiroz. As palavras e o apetite também se juntam, em Machado, deixando vislumbrar um alto teor de sugestão carnal. Personagens que apalpam com olhos, ouvem, cheiram e gostam. “O requinte dos “temperos”, a “ternura” da carne, o “rebuscado” das formas, “o comer virgulado de palavrinhas doces”, “palavras de mel”, “línguas de rouxinol”, “peito de perdiz à milanesa”, “faisão assado”, “pastelinhos”, “compotas de marmelo”.
O libidinoso vocabulário de Machado é, assim, explorado de forma surpreendente, como uma lista de deliciosos deleites. Ela refere-se, nesse contexto, ao narrador Brás Cubas: “corria um burburinho alegre, um palavrear de estômago satisfeito; os olhos moles e úmidos, ou vivos e cálidos, espreguiçavam-se ou saltitavam de uma ponta à outra da mesa, atulhada de doces e frutas, aqui o ananás em fatias, ali o melão em talhadas, as compoteiras de cristal deixando ver o doce de coco, finamente ralado, amarelo como uma gema, – ou então o melado escuro e grosso, não longe do queijo e do cará”.
Do conto “As bodas de Luís Duarte”, ela ressalta que “o menino do conto, O Tonico, se antecipa às visitas e quer gelatina. Pra evitar uma “cena grave”, a mãe atende, contrariada o seu pedido. Satisfeito o capricho, Antonico come sem vontade: “levava uma colherada à boca, demorava-se tempo infinito rolando o conteúdo da colher entre a língua e o paladar, ao passo que a colher, empurrada por um lado formava na bochecha direita uma pequena elevação. Ao mesmo tempo agitava o pequeno as pernas de maneira que batia alternadamente na cadeira e na mesa. O mole dos olhos e o mole da gelatina, o cristal líquido deixando ver o doce, a consistência do melado, a descrição da criança mimada, primor”.
Já do século 20, Queiroz estuda o hilário e revelador conto “O peru de natal”, de Mario de Andrade; a deliciosa deglutição do Bispo Sardinha por nossos índios antropófagos, lembrada por Oswald de Andrade; a festa do apetite e dos ritos religiosos de Jorge Amado, entre outros tantos escritores mais frugais, como Érico Veríssimo e Ciro dos Anjos. Mas foi em Pedro Nava que ela viu um modelo do que seria um escritor que tratou com maestria a comida.
Para a escritora, “nenhum outro escritor brasileiro se ocupou, com maiores vagares, de nossos hábitos culinários. E como a história da sua vida, enxertada em frondosa genealogia, se arraiga em terras de Minas, mato dentro, derivando, serra abaixo, na direção do Atlântico até os confins do Ceará e do Maranhão, marcam encontro, no seu paladar, os gustemas de metade do país. Impossível passar ao largo de sua mesa. Além de abrir-nos, de leste a oeste, o mapa das cozinhas regionais, seus livros nos sugerem cardápios, reproduzem receitas seculares, divulgam tabus e mostram que podemos aspirar sem complexo, a um verbete no Larousse gastronomique. Também sabemos comer”.
A ensaísta vai descrevendo as metáforas, os símbolos, as associações e as analogias cujas imagens de comida e de bebida vão se entretecendo com as descrições que o memorialista faz da infância, da família, da sua terra. O linguajar mineiro, por exemplo, descrito por Nava é lembrado pela escritora nos seguintes termos: “os dizeres de Minas valem ouro. Suas expressões, frases feitas, são como bom-bocados do seu queijo, como um golão de cachaça escorrendo no queixos, um naco de carne de porco, de toucinho, de torresmo”.
Para Queiroz, a obra de Nava comunica em silêncio um mundo de todos os sentidos, vividos na memória e repostos no instante do presente, são madaleines proustianas que vão do caviar ao suspiro, do queijo à carne, do vinho ao beijo. De acordo com Luiz Horta, Nava seria o Proust brasileiro, se Proust não fosse tão frágil e conseguisse descrever uma feijoada como Nava o fez. Tema, aliás, recorrente também na Música Popular Brasileira.
Cozinhar, desse modo, para Maria José de Queiroz, é um milagre esperado, no lar e fora dele; escrever bem de cozinhar é excelência de receituário; escrever bem dos mistérios do paladar, de suas implicações políticas, científicas, é melhorar o convívio da espécie humana, tornando inteligível, poético, inesquecível o difícil pão de cada dia. Esse itinerário gastronômico, à maneira da multiplicidade presente na obra de Arcimboldo, instiga a leitura da obra dessa grande escritora brasileira, e, também, estimula a leitura dos grandes livros e dos grandes autores por ela elencados nesse verdadeiro cardápio literário. Porque, como afirmou Maria-Antoine Carême, “quando não houver cozinha no mundo, não haverá literatura, nem inteligência brilhante e rápida, nem inspiração, nem relações duradouras; não haverá tampouco unidade social”.

segunda-feira, 17 de agosto de 2020

Deus e os cavalos

Caballo blanco, Diego Velazquez (1634-1635)



QUEIROZ, Maria José de. Deus e os cavalos. In: ______. Para que serve um arco-íris? Belo Horizonte: Imprensa Universitária, 1982. p. 36-38.