domingo, 6 de setembro de 2015

As coisas têm alma

Para Zibuntas Miksys
As coisas têm alma.
Deveras.
É preciso no entanto desvelar-lhes o segredo:
expô-lo à luz, ao sol, às estrelas,
despertá-lo com a força do grito,
ou com a dureza do diamante ímpio,
trazê-lo à vida, ao rumor, ao ritmo,
à pátria da dor, do relâmpago e do reflexo.

Do subentendido à evidência
emissárias de lembranças,
as coisas falam.
Ilhas de luz e sombra,
pássaros petrificados,
pérolas de profundo sigilo,
sua voz cresce,
e sobe,
cálida, vibrátil.
Numa linguagem secreta,
ali, onde desemboca o silêncio,
o mistério se manifesta:
flecha disparada, súbito aroma,
que o tempo devora
e a quietude consome.

As coisas têm alma:
múltipla, compósita, diversa.
E sua ideia em nós assiste,
queda.
Submissas ao cristal, ao mármore, à tela
- nostalgia de perfeição, chama divina,
simples gesto -
ninguém lhe pode dar senão o que tem,
em si,
benesse ou pobreza.

As coisas têm alma.
É preciso violar-lhes o segredo.

Paris, inverno de 1977.

QUEIROZ, Maria José de. Para que serve um arco-íris? Belo Horizonte: Imprensa, 1974. p. 17-18.