sábado, 7 de setembro de 2013

Tempo de amor

O espírito paira sobre as águas
faz-se luz  no universo:
diante de ti, o Gênesis, a terra.
Véspera de milagre,
na surpresa do gesto inédito,
colhe entre os dedos o grito,
encarcera-o na epiderme
até que lento, bem lento,
se desabroche e floresça
em jardim de muitas veredas,
dedilhado à flor da pele.

Um homem, uma mulher:
a nudez edênica de todos os princípios,
o sagrado ritual de todos os começos.
Esplende a carne casta
na apoteose do mistério:
sangue, músculo e nervo.
Rendida ao primeiro olhar
- tímido, furtivo, discreto,
hesita, disfarça, entrega-se
não, não se entrega,
dividida entre o pudor e o desejo.

De todas as vozes,
o eco:
quantos somos? de quantas noites viemos?
De todas as frases,
o sentido denso:
da adolescência guardamos
a angústia, a culpa, o receio.
De todos os ritmos,
a cadência:
cedem os pulsos cerrados,
rompem-se velhas algemas.
Compassos em pausa
sustentam o silêncio:
noite colorida de tons,
acordes, escalas, arpejos.
Alargam-se em fermata
breves, semibreves enleios.

Nosso tardio evangelho
reescrevemos a medo:
reiventamos o mundo,
a carne faz-se verbo.
Primeira página, Livro 1:
é tempo de amor.
Dissipa-se a solidão das trevas.

QUEIROZ, Maria José de. Resgate do real: amor e morte. Coimbra: Coimbra Editora, 1978. p. 15-16.