domingo, 6 de novembro de 2011

Todos os males da alma

Não há como negar: os trágicos gregos diagnosticaram todos os males da alma. A Shakespeare, Dostoievski, Flaubert e Zola caberia, andando o tempo, atualizar os sintomas de algumas das suas patologias e vincar o caráter mórbido dos seus desvios. Quando Freud chegou, só teve, mesmo, o embaraço da escolha. A primeira anamnese, a mais extensa, de nossas paixões como de nossos vícios e, também, de nossas virtudes, já estava feita. À ciência competia a comprovação, o estudo de casos, a identificação de édipos e eletras, hamlets, macbeths e karamazovs na conduta psicopatológica dos burgueses do nosso século, assegurada a validade científica da identificação. Tudo se passa como se o psicanalista ouvisse do cliente a mais perfeita auto-análise de um caso clínico. E o que é excepcional, nos termos próprios e sem atentados à língua. A literatura põe à disposição o que poucos pacientes estão habilitados a fazer: o mergulho no inconsciente. Com os olhos abertos, sem traumas, sem megalomanias e sem delírios. Tal requinte descritivo dificilmente ocorreria ao analista, muito mais atento ao "fenômeno", e a tudo que aproxime o sujeito da patologia, do que à sua essencial individualidade (inerente à criação literária). Que resta à ciência? A responsabilidade de uma nomenclatura adequada e o endosso idôneo de um especialista, apto a divulgá-la.

QUEIROZ, Maria José de. Amor cruel, amor vingador. Rio de Janeiro: Record, 1996, p. 11-12.