segunda-feira, 15 de janeiro de 2018

Joaquina, filha do Tiradentes, 1987, 1991, 1997

QUEIROZ, Maria José de. Joaquina, filha do Tiradentes
São Paulo: Marco Zero, 1987. 297p. 
(Inspiração Liberdade, Liberdade, que estreou dia 11 de abril de 2016, na Globo)
QUEIROZ, Maria José de. Joaquina, filha do Tiradentes. São Paulo: Círculo do Livro, [s.d.]. 258p. (1991)
 

QUEIROZ, Maria José de. Joaquina, filha do Tiradentes. Rio de Janeiro: Topbooks, 1999. 356p. 
(Versão Integral com posfácio da autora)

Em Joaquina, filha do Tiradentes, Maria José de Queiroz constrói, além de um requintado painel da cartografia de Minas Gerais, uma rigorosa reinvenção da vida cotidiana do século XVIII por intermédio da narrativa da filha bastarda de Tiradentes. Artista e artesã da palavra, como salientou Pedro Nava, a escritora deixa confluir ficção e história em sua escrita. Assim, ela arma, junto ao episódio da Inconfidência Mineira, pano de fundo da narrativa, um texto outro que põe em evidência o melancólico discurso da herdeira do “sal e da infâmia” do condenado de Vila Rica. Joaquina, alheia ao jogo de fuga, talvez possível para o esquecimento do nome do pai, aparece no cenário da literatura brasileira pelas mãos hábeis da romancista. Chama a atenção do leitor a composição dos ambientes, os pormenores evocados pela memória da narradora – “pedrinhas, seixos, pepitas de ouro, diamantes e outras riquezas” – todas essas coisas roídas pelo cupim do tempo, filigranadas pelo esquecimento da história. No romance, a filha de Tiradentes deixa de existir numa nota quase invisível nos Autos da Devassa e vem, ficcionalmente, seduzir o leitor numa apaixonante narrativa. Esse romance histórico perfila-se sob a égide de um percurso consciente e intelectualmente elaborado da autora que insinua uma constante tensão entre a ficção e a história. O que poderia ser uma lacuna intransponível torna-se, assim, um tecido cuja intrincada disposição dos fios aponta para uma trama que privilegia o passado de Minas como um tempo propício à invenção e à construção ficcional. A história dos sentidos, dos cheiros, do olhar torna-se, também, em Joaquina, filha do Tiradentes, belíssima narrativa de dor e melancolia. Tudo muito bem tramado, à luz hesitante da candeia da História.

Trailer do documentário Maria José de Queiroz: artesã da palavra, 2003, de Lesle Nascimento: https://www.youtube.com/watch?v=Vj6XSXKcRWM&feature=youtu.be

“Sei de memória, não só a condenação mas também as inesgotáveis formas por que se expressam o desprezo, a humilhação e a desonra. Conheço as mentiras da história, a hipocrisia dos patriotas, a peçonha das letras escritas, os rumores malignos, o escárnio e o medo. Aprendi, desde menina, que a vergonha da origem bastarda fere menos, muito menos, que a infâmia decretada por sentença e consagrada pela fraqueza dos covardes. Não, o tempo não lhe consumiu o corpo amaldiçoado. Vejo-o agora, vejo-o aqui. E sua cabeça, exposta ao opróbrio, seu rosto – tão semelhante ao meu, inicia a eternidade da pena crismando, no golpe de ódio do poder, o gesto de misericórdia do carrasco. Vejo-me nele. E ele, em mim, abre os olhos para a vida e para a desgraça que nos cerca. Um dia, quem sabe?, ele os abrirá para a glória... De ignomínia em ignomínia, nada me salva: nem o futuro nem a gratidão da pátria. Suas palavras talvez pudessem resgatar-nos – a mim e a minha mãe – do frio do esquecimento; ele, contudo, jamais as proferiu. Nada nos resta. Nada me resta. No espelho do quarto, nas águas do rio, nos dedos que me apontam, o seu rosto me persegue. Sempre. E esse silêncio! No entanto, as palavras... De que valem as palavras? O que dele me ficou, deveras, foi a infâmia. No abandono das horas tardias, quando a paciência esgota, cansadamente, a resignação e a calma, é o sangue que me fala. A ameaça que vem de fora, dia claro, nos gestos obscenos, nas vozes afiadas, troca-se em tortura: sou eu, noite adentro, meu verdugo. E, de mim, já não fujo: recolho-me no meu corpo, duplamente condenado. A infâmia que mora no meu ventre conspira contra todos nós. Minha alegria é o silêncio das coisas quando a escuridão noturna adormece a vizinhança.” (QUEIROZ, 1997. p. 9-10).

“Nada passa nesta cidade. Tudo é sempre igual: as pedras da rua, a fachada das casas, as pontes, os chafarizes, as cruzes, os oratórios... Do Caquende até o alto das Cabeças, as caras são as mesmas, desde o tempo do Alferes. Só no Pilar vejo gente estranha: duas ou três pessoas chamam a atenção de todo mundo. Nas procissões, qualquer cara nova é olhada de través. E, agora, sobra, para nós também, esse olhar atravessado. Tem gente que bem que gostaria de me ver enforcada, na mesma corda que enforcou o Alferes. Como essas Pilatas.” (QUEIROZ, 1997. p. 18-19).

“Se não temos ouro... Que podemos oferecer à Soberana para os seus alfinetes? A cabeça do Alferes vale ouro. Muito ouro! Está cheia de ouro! As fundições do Reino vão fundir alfinetes de ouro para a Soberana. Para quê moedas? Com o ouro da cabeça do Alferes vão fundir alfinetes, infinitos alfinetes. Todos de ouro. A Soberana terá alfinetes para a sua cabeça, para as suas almofadas e para o seu coração. Sete alfinetes de ouro atravessam o seu coração. Ou o meu... Nem sei mais. Quanta desigualdade!” (QUEIROZ, 1987. p 155).

“Tivemos uma boa ceia: galinha cozida, toucinho, feijão e farinha de milho. A provisão de queijo, da fazenda de D. Rita, começou a ser servida. E o café, tão raro, como já sabíamos, foi bebido com o maior prazer. O telheiro, apesar de espaçoso, só nos defendia do vento, da chuva e das onças e lobos. Armaram-se redes e catres, acenderam-se fogueiras do lado de fora. A fumaça nos cegava a todos.” (QUEIROZ, 1987. p. 160).

A pouco e pouco o sol apareceu. E o calor começou. A subida era difícil. Durante umas duas léguas, num caminho áspero e escorregadio, só fizemos subir. Quando chegamos ao topo do monte - o chapadão da Matutina –, pudemos descortinar toda a estrada feita, desde o arraial onde pousáramos até as montanhas mais distantes, que encerravam, em círculo, o imenso vale.
— Não lhe disse que a dor passaria quando estivéssemos na estrada? Não há dor que resista a essa beleza, Joaquina.” (QUEIROZ, 1987. p. 161).

“Estendi as peças de roupa no quintal e continuei a abrir arcas e canastras. Deixei por último a canastra dos livros e papéis. Encontrei dois cadernos em que começara a rabiscar as primeiras letras, um caderno de Caligrafia, um livro de Gramática e um de História. Todos destruídos pelas traças. Havia ainda um embrulho com os dizeres: Para Joaquina, filha de Joaquim José. Abri-o. Mais livros e papéis. Os livros: Tratado de cirurgia dos pobres, Tratado das febres intermitentes, Elementos de medicina prática, Dicionário Francês e Latino de Medicina, Manual do moço praticante de cirurgia, Segredos das Artes e Ofícios, Conhecimento prático dos remédios, Enfermidades dos exércitos, Compêndio de Botânica, Conservação da saúde dos povos, Coleção dos remédios fáceis e domésticos, Compêndio de História Natural, Tratado de Mineralogia. Todos intactos. O papel, tratado com verniz e cera, protegera-os contra as traças e o cupim.” (QUEIROZ, 1987. p. 191).

“O Mal só vem daqueles que nada fazem por mal. É sempre assim. Enfim, nada mais sei para ensinar a você. Sua educação está terminada. E sua instrução já é de sobejo. Você pode levantar os olhos. Pode levantar a voz. Eu estou cansada. Muito cansada. Passei a vida com os olhos baixos. Conheço as pedras das calçadas de Vila Rica e de Antônio Dias. Conheci as tábuas e o chão da casa do Alferes, da casa da minha mãe na Rua da Ponte Seca, da fazenda do Senhor Anacleto e de todas essas casas por onde passamos. Isso me pesa. Só levanto os olhos quando a revolta arrebenta. Só levanto a voz quando me vem vontade de ferir e matar.” (QUEIROZ, 1987. p 196).

Lyslei Nascimento
Faculdade de Letras, UFMG