sábado, 7 de novembro de 2015

Sobre o livro "A literatura e o gozo impuro da comida", 1994.


Ao publicar, em 1988, A comida e a cozinha (Rio, Forense-Universitária), Maria José de Queiroz declarava, nas palavras ao "Leitor...", que essa Iniciação à arte de comer não passava de anotações à margem de suas leituras. Aguçando-nos o paladar para novas degustações, referia-se à "pesquisa em curso". Isto é, à sua pesquisa sobre as relações entre a comida e a literatura. Descobre-se agora que esse primeiro ensaio – modestamente chamado de anotações, e que era, de fato, o "primeiro livro brasileiro de gastrologia: de evolução da arte culinária associada à arte da gastronomia" (Guilherme Figueiredo), nada mais insinuava que aperitivo, convite para o grande banquete da civilização. Depois de iniciar-nos nas transformações sociais e políticas operadas pelo gosto, mostrando a importância da mesa e do convívio no comportamento dos grupos humanos, nas ideologias e no devenir da sociedade, a ensaísta nos oferece, neste novo estudo, o resultado da sua pesquisa.
Se A comida e a cozinha, ou Iniciação à arte de comer era, na bibliografia brasileira, "obra inaugural", que dizer de O gozo impuro da comida? Obra inaugural, sem dúvida. Mas da bibliografia literária. Tout court. Um ensaio magistral sobre o sistema da comida nas suas relações com a palavra: a "manducação" e suas ambiguidades, o apetite e o prazer (nas suas perturbadoras implicações com a libido), a fome e a glutonaria, num constante ir e vir entre o pensamento individual e o pensamento coletivo, traindo a aplicação do método de trabalho de Georges Dumézil que a autora deve conhecer bem.
O único escritor a aventurar-se numa peregrinação gastronômica, de cardápio mofino, pelo ventre dos filósofos, foi Michel Onfray. Mas à sua Crítica da razão dietética ("Livro de bolso", Grasset, 1990. Trad. bras. Ed. Rocco) poderíamos chamar, sim, anotações à margem da leitura dos filósofos. Que não se comparam, de modo algum, à opulência do texto nem aos requintes de erudição deste ensaio comparativo.
Num estudo de tamanha complexidade, com a minúcia e o aparato bibliográfico que o tema estava a exigir, somos aliciados, a despeito da erudição, para partilhar, de mesa em mesa, de um suntuoso festim de palavras.
Tem razão Guilherme Figueiredo: "Saber falar de comer não é falar de comer enquanto se come". "É comunicar em silêncio um mundo de todos os sentidos, vividos na memória e repostos no instante presente". É o que faz Maria José de Queiroz.
De fácil leitura e, muito principalmente, curioso, incomum, o seu livro estuda as infinitas variações da sensibilidade gastronômica. Mercê do testemunho dos grandes autores, penetramos no ventre da humanidade. E experimentamos, na sua companhia, todos os prazeres do palato e do olfato: com as personagens de Homero, na Ilíada e na Odisseia; com Sócrates e Alcibíades, no Simpósio; na Roma de Nero, com Petrônio. Instruídos nas extravagâncias da goela, somos apresentados aos excessos do corpo grotesco nos livros de "alta gordura" de Rabelais. Aí, a festa é permanente; a vida, uma digestão interminável. Bem outro é o quadro com que nos deparamos na literatura picaresca, fustigada pela miséria: é o vale-tudo da astúcia na luta pelo pão de cada dia.
Passado o tempo, a mesa se converte em objeto do desejo da burguesia, índice de riqueza e de poder. A tal ponto que Fome, romance de Knut Hamsun, opõe à abastança ostensiva da sociedade o drama de um pobre diabo, anônimo, cuja obsessão é a comida.
Embora intrusa no banquete da civilização, a cultura brasileira também sucumbe à mesa de Aluísio Azevedo, de Raul Pompéia e, até mesmo, quem diria?, à mesa do dispéptico Machado de Assis. Do canibalismo futurista c modernista, passamos às grandes ilhas gastronômicas do Brasil: com José Lins do Rego, Jorge Amado, Pedro Nava e Érico Veríssimo.
Após tão longo périplo, aprendemos que Guilherme Figueiredo, Albert Cohen e Günter Grass tomaram a gastronomia para tema literário. Encerra-se com eles o nosso passeio gastronômico. O ensaio de Maria José de Queiroz é um todo único cuja síntese está no apetite. E quem saiba conjugar, com talento, os dois apetites – o do ventre e o da inteligência, nele encontrará, certamente, todas as finezas do paladar.
Isaac Cohen (da Quinzaine Littéraire)
QUEIROZ, Maria José de. A literatura e o gozo impuro da comida. Rio de Janeiro: Topbooks, 1994.

Sobre o livro "A comida e a cozinha, ou Iniciação à arte de comer", 1988.




Qual a trajetória histórica da arte culinária no mundo ocidental? Em que sentidos básicos têm evoluído as relações do homem com a comida e o papel social da cozinha – da origem das receitas ao aparecimento do restaurante, e deste último ao self-service? Como se enraízam historicamente os rituais gastronômico alimentares e a valorização da mesa como objeto da burguesia?
Essas e outras questões constituem o centro de interesse deste livro de Maria José de Queiroz. Dos requintes da cozinha do século XVIII à banalização dos hábitos alimentares nestes tempos atuais em que a experiência e a qualidade de vida se esvaem de maneira alucinante, da Teogonia de Hesíodo a O linguado de Günther Grass (senão a La grande bouffe de Marco Ferreri), temos um rico itinerário que a Autora desdobra para nós, de modo a visualizar a evolução da  própria sensibilidade gastronômica.
O leitor poderá então lançar a pergunta: seria esta uma obra de erudição, no rastro de um Jean-François Revel? Ou ainda: corresponderia ela a um tratado de história da nutrição ou de fisiologia do paladar, associada à gastrolatria identificável em tantos manuais de cozinha? Indagações desse tipo não têm o menor cabimento se atentarmos para o texto de A comida e a cozinha. Texto que extrapola as classificações redutoras e acolhe sabiamente, no trato daquelas questões, o ponto de vista multidisciplinar.
A despeito da singeleza (diríamos, da singeleza sensualista) dos temas principais em exame, Maria José de Queiroz, conjugando o senso de pesquisa histórica (tão evidente em A literatura encarcerada) e o dom de desatar recordações – lembranças de cheiros, cores e gostos (tão vivas em seu romance Joaquina, filha do Tiradentes) –, soube produzir uma verdadeira reforma de compreensão dos prazeres da mesa enquanto objeto de investigação. Conforme ela própria enfatiza, somente livres do preconceito que atribui à ordem do gosto e do olfato condição inferior à das ordens da visão e da audição é que estaremos aptos a participar do banquete da civilização. "Do mito prometeico à simbologia do cru e do cozido até as artes da mesa, a natureza e a cultura marcam encontro diante da comida, sob a tutela dos cinco sentidos." A propósito, é possível concluir que a Autora não cede a um tema da moda (cada vez mais contemplado pelas seções especiais da imprensa e pelas incríveis tiragens dos manuais de cozinha); ela procede sim a uma reavaliação positiva das percepções gustativa e olfativa, e de sua importância no devir das sociedades ocidentais. Sem dúvida, tarefa admirável que deverá, por si mesma, assegurar a este trabalho publicado pela Ed. Forense-Universitária senão o agrado de um vasto público, pelo menos um lugar de honra no festim do espírito. 
Luiz Otávio Barreto Leite 

QUEIROZ, Maria José de. A comida e a cozinha, ou Iniciação à arte de comer. Rio de Janeiro: Forense-Universitária, 1988.