domingo, 31 de março de 2013

Na perplexidade do naufrágio


"Nem tormenta nem tormento
nos poderia parar
(Muitas velas. Muitos remos
Âncora é outro falar...)
Andamos entre água e vento
procurando o Rei do Mar" (Cecília Meireles)


Na perplexidade
do naufrágio,
as derrotas
de alma
e alma.

No desvario
da bússola,
velas em pânico,
o desespero
do seguro porto.

Nas âncoras distantes,
o apelo da terra,
de terreno pranto
e terrestre pena.

No reencontro
a mundificação da alma
no lustral batismmo
dos sentidos.
Oh naufrágios!
Oh naves derrotadas!

Nos olhos
a úmida ternura
e
a

no líquido itinerário
do milagre.

Paris, 3/3/1970


QUEIROZ, Maria José de. Exercício de levitação. Coimbra: Atlântida, 1971. p. 40-41.

quinta-feira, 21 de março de 2013

A Jorge Luis Borges, Anouilh e Cortázar



Um livro, todos os livros,
o fogo, todos os fogos
– juízo de livre arbítrio
de um morto, todos os mortos.

No homem, a humanidade,
no vício, todos os vícios,
num dia, toda a vida,
numa hora, a eternidade.

Presente, passado, futuro,
condicional, supino, gerúndio
concentram-se no segundo
de insaciável relógio
que devora tempo, riso, luto.

No som, todos os sons,
do grave ao mais agudo.
Numa voz, todas as vozes
de todos os homens do mundo.

Na boca do faminto,
a fome universal.
Na dor do encerrado,
o sofrimento coletivo.
Na lágrima do infeliz
o pranto que alaga a terra,
salga todo fruto,
confunde árabes e judeus,
comove pecadores e justos.

Na prece medrosa e tímida,
toda a piedade humana:
a virtude do mais humilde
toda a virtude resume.

Na mínima parcela
a grandeza se insinua:
o grão de mostarda anuncia
prodígio de floração futura.

A ofensa ao mais pequeno
fere toda a humanidade.
No homem, todos os homens,
em todos a mesma garra.

Paris, inverno de 1970.

QUEIROZ, Maria José de. Exercício de gravitação. Coimbra: Atlântida, 1972. p. 15-16.

sábado, 9 de março de 2013

Dominadores e dominados

À fala de Marcelo, no Hamleto: "Algo está a apodrecer na Dinamarca", replicaríamos: "Algo apodrece há muito na nossa civilização". Ao indígena, ser à parte, a civilização não o reconhece como seu. Poucas vezes lhe deu esperanças. Muitas, muitíssimas, o desiludiu. Capatazes, bárbaros, cholos ressentidos, rábulas, charlatães, gamonales, juízes venais postam-se entre os representantes da civilização junto dos naturais. Transcorrem séculos, os dominadores se sucedem, mas as injustiças ficam.




QUEIROZ, Maria José de. Do indianismo ao indigenismo nas letras hispano-americanas. Belo Horizonte: Imprensa da UFMG, 1962. p. 136-137.