domingo, 24 de julho de 2016

Alforria


Alforria:
recuperar intimidades
escravizadas a alheio mando;
mobilar de eu e migo
as veredas da alma;
deixar de meter tu e tigo
em toda fiada ilusão.

Reencontrar-se
no ritmo recolhido
das carícias,
no grave olhar,
na acorde harmonia
de pessoa e máscara.
Reassumir nos ombros
o exercício dos braços.

Tudo volta ao antigo posto:
a liberdade corre às pernas
e instala-se no calcanhar.

Os pés demandam caminhos
na avidez de povoar de espaço
os rastos intervalares.

Paris, janeiro, 1970.

sábado, 16 de julho de 2016

Os passos prosseguem

Os passos prosseguem na busca ansiosa. Devem estar no nosso quarto de dormir. Perfumes, vestidos, ternos, sapatos, bolsas, alguma joia desgarrada (quase tudo está no banco), a televisão portátil, o relógio de cabeceira, os nossos relógios de pulso... Tudo inútil. Metade da vida perdida em amealhar, amealhar... O horror ao amigo do alheio. O verbo ter conjugado com ansiedade, temores, calafrio, no olvido dos verbos ser e estar. A propriedade é um roubo, sim. A nós mesmos. Transferimos às coisas a nossa residência: passamos a hóspedes interinos dos objetos. Por isso, ao perdê-los, nós os acompanhamos em degredo. Preciso convencer-me. À minha integridade basta-me, com sobejo, a identidade postiça — nome estado civil, nacionalidade. Tudo mais se sujeita à irregularidade do verbo ter e a todos os desastres da propriedade e da posse, jamais bem guardadas. O melhor, acredito, seja colecionar lembranças. Para que a memória as afeiçoe a seu grado, com direito a retoques e acréscimos, se necessário. Álbum de poucas páginas, sem fotografias e sem notas.

QUEIROZ, Maria José de. Invenção a duas vozes. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1978. p. 25.