quarta-feira, 14 de dezembro de 2016

Acaiaca, 1938

Muro alto, saias longas, portas fechadas. Golas e punhos bem cerrados, janelas trancadas. Nenhum retrato nenhuma identidade. Nada que a obrigasse a sair, a enfeitar-se. Em casa se reza. Em casa se salva. Um, dois, três, oito filhos multiplicados por nove meses de espera fazem seis anos de reclusão entre sala, cozinha e quartos. Mas a morte veio, calada, esconder-se nas tripas de Artur de Lima Gonçalves. O muro caiu, abriram-se as portas, perdeu-se o cadeado. Bisturis, soro, sangue, emplastos: o câncer roía-lhe a carne, as entranhas se lhe convertiam em água. A mão que lhe assinou o óbito deu nome à família, vestiu de noiva a viúva, resgatou-lhe os filhos  da orfandade. A casa aberta a todos os ventos, viveram felizes em Acaiaca.

QUEIROZ, Maria José de. Como me contaram... fábulas historiais. Belo Horizonte: Imprensa/Publicações, 1973. p. 164-165.