sexta-feira, 30 de dezembro de 2016

Dos insetos, das orquídeas, do mata-pau


Ele já se encontrava na  Colômbia. Muito didaticamente me falava do engano das suas "invenções". Mas não diminuiu, aos meus olhos, a importância da paisagem desconhecida. Alargou-se, em considerações pitorescas, acerca das trepadeiras, das borboletas, dos insetos, das orquídeas, do mata-pau, das palmeiras e da vitória-régia. Tudo quanto de belo se encontrava pelo caminho parecia-lhe, confessava cioso da sua autoridade, compensar brilhantemente a ausência de meia dúzia de leões, girafas ou elefantes, animais que não tinham nem a metade do encanto das grandes famílias ululantes de macacos e micos, de papagaios, tucanos e garças, de jacarés, serpentes, sapos, tartarugas. Mostrei a mamãe, altaneiro,  que o engano do tio fora até providencial: era muito melhor ter um peixe-boi, um pirarucu ou uma sucuri que ter duas centenas de hipopótamos. 

QUEIROZ, Maria José de. Homem de sete partidas. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1980. p. 29.

terça-feira, 20 de dezembro de 2016

Desde longe, na infância






















Elle a dû faire toutes les guerres
Pour être si forte.

Je l’aime à mourir...


Desde longe na infância,
dois talheres à mesa,
minha mãe à cabeceira,
voz pausada repetia:
“Temos teto e comida!
Isso basta!”

É a vida.
É o luto.
E ... por que não?
Isso basta...

Entre pêsames e abraços,
teve fim o cunhadesco:
na voz impiedosa
do tio cruel,
descobri que era órfã.

Restaram três avós
— Alcina, Joana e Mariquinha,
mais vô Solídio e vô Juca,
uma tia e três outras,
uma prima e quatro primos.

Veloz nos patins
e esperto no ludo,
o menino grande,
tio materno,
me vencia em tudo.

Não reclame!
A vida é combate.
Aprenda a jogar!
Livros não faltam.
Que mais quer?
O resto é o resto.
Deus proverá.

A tempo e hora,
livros nunca faltaram:
mais grossos a cada semestre,
a cada ano, mais caros.

Sempre só e sem socorro,
sem amigos nem amigas,
tudo vendo, tudo ouvindo,
a meu pai pedi em lágrimas
me acompanhasse vida afora,
me ajudasse e libertasse.

Sobrevivi.
Sobrevivemos:
ambas.
À rotina dos meses,
sobressaltos não faltavam.
Nem doenças, nem lágrimas.
Deus é grande!, proverá.

Os meses, a galope,
com seu rol de surpresas,
e a música, sempre a música,
seu fascínio e sortilégio:
“Decifra-me ou devoro-te”.

Enfrentei fuga e contraponto,
devorou-me a harmonia...
As letras se vingaram,
fazendo-me prisioneira
de códices e incunábulos.

O suor do rosto,
o sal do pão e os livros:
o trabalho e os livros,
diplomas e livros...
Livros e provas,
provas e teses,
concursos e concursos,
sessenta e quatro aulas
metidas numa semana...

Como se a eternidade fosse isso,
das seis às onze,
apenas isso,
entre muitas luas
e quatro estações:
trabalho e trabalho ...
e livros, e livros...

Num 31 de março,
à meia-noite me avisaram:
“As tropas descem a Mantiqueira!
Oh, menina!, corre pra casa!"

E o tempo passou.
Voando...
Simples e claro:
seis dias úteis,
o salário e o pão,
missa aos domingos,
revisão de provas,
editores e gráficos,
livros e mais livros,
leitores ariscos,
edições minguadas.

O direito de ir e vir,
fechar portas e janelas,
fazer malas, muitas malas...
Partir.
Deus seja louvado!

O resto?
Pedra nos rins, costela quebrada,
artrose, osteoporose, catarata,
angina e enfarto...

Quem escapa de doença?
Qual nada!
Dá-se um jeito!
Só não há jeito
nem cura, para a morte.
Ou... olho furado!
Deus é pai...
Isso passa!

E passou.

Fomos vivendo:
o piano, o aperitivo sonoro,
dois talheres à mesa,
flores no jardim,
nêsperas anunciadas.

O Brasil é grande!
O horizonte, largo...
É hora de mudar!
Os livros não respondiam
à urgência da partida:
uma biblioteca inteira,
coleções de revistas,
tudo passa a outrem
ou a outros....
Tudo passa.
Que fazer?
A hora era aquela:
da noite para o dia,
papéis e papéis,
traças e tralha,
o coração aos pulos,
o piano suspenso no ar...
Paciência...
Deus proverá.

Ano novo, casa nova,
finestra sul mare.
Dois talheres à mesa...
E mais um e mais dois...
Novos amigos,
livros e livros,
Nava, Drummond, Afonso e Alfonsus,
Mário, Cyro e Murilo ...
Torre de papel ao sabor das palavras:
Plínio em prosa e verso — o Sabadoyle

Os anos passando
o tempo encurtando,
a Indesejada à porta.
O alarme.
Mas... Deus é Deus!
Vencemos o Cabo!

A Indesejada não desiste:
apenas adia o golpe fatal.
Assepsia completa.
Um talher à mesa,
sussurros pela casa:
contam-se gotas e segundos.
A vida escassa,
se mede, se apalpa
e deixa-se auscultar
no tronco descarnado:
pele e ossos. Mais ossos que pele,
o olhar fixo, a boca selada.

Já não vivo em mim.
O ano passa...

Quando o sopro se retrai.
o pulso se arrasta,
a vida bate em retirada:
soberba e triunfante,
a Indesejada, de alcateia,
me arranca,
entre dois suspiros,
metade da alma.

Perdi meu rumo e meu caminho,
minha literatura e minha música,
meu alfabeto e minha pauta,
todas as árias, todos os enredos,
os lieder de Schubert...
todas as canções de Duparc...

Todo es polvo, es sombra, es nada.

Paris, outubro 2009.

QUEIROZ, Maria José de. Desde longe. Rio de Janeiro: Gramma, 2016. p. 22-28.

segunda-feira, 19 de dezembro de 2016

quarta-feira, 14 de dezembro de 2016

Acaiaca, 1938

Muro alto, saias longas, portas fechadas. Golas e punhos bem cerrados, janelas trancadas. Nenhum retrato nenhuma identidade. Nada que a obrigasse a sair, a enfeitar-se. Em casa se reza. Em casa se salva. Um, dois, três, oito filhos multiplicados por nove meses de espera fazem seis anos de reclusão entre sala, cozinha e quartos. Mas a morte veio, calada, esconder-se nas tripas de Artur de Lima Gonçalves. O muro caiu, abriram-se as portas, perdeu-se o cadeado. Bisturis, soro, sangue, emplastos: o câncer roía-lhe a carne, as entranhas se lhe convertiam em água. A mão que lhe assinou o óbito deu nome à família, vestiu de noiva a viúva, resgatou-lhe os filhos  da orfandade. A casa aberta a todos os ventos, viveram felizes em Acaiaca.

QUEIROZ, Maria José de. Como me contaram... fábulas historiais. Belo Horizonte: Imprensa/Publicações, 1973. p. 164-165.

domingo, 6 de novembro de 2016

Que o novelo se desenrede...


Que o novelo se desenrede. Sem concessões. Que a minha ficção, em vez de anular-me, me ofereça a possibilidade de encontrar-me. Mais: de melhor conhecer-me e de analisar-me. Uma espécie de ficção indefinida, entre dois planos, um real, vivido, e o outro imaginado. [...] Invenção e vida. Unidas pelo fio sutil da simpatia. É a história que está a programar o vivido. Não tenho, por isso, a impressão  de que o enredo se resolva no epílogo. Como se o tempo, circular, tudo recuperasse sob o signo das letras. Talvez, no momento da revisão do texto, ao chamar Clara, e não mais Patrícia à personagem, eliminando, sempre, a primeira pessoa do singular, eu possa dar à história selo definitivo, estável. Não sei. O que sinto, por enquanto, é que tudo isso não passa de uma restituição. Restituição do fictício à ficção. Se lograr realizá-la, convencendo-me da sua realidade, poderei desaparecer. Ficarei livre de Patrícia nomeando-a Clara.

QUEIROZ, Maria José de. Ano novo, vida nova. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1978. p. 62-63.

sábado, 22 de outubro de 2016

Os bárbaros de hoje

Numa posição privilegiada, a dois passos da ponta extrema da Europa, a península ibérica representaria papel preponderante na hegemonia política do mundo. Imantada pelo fascismo ou pelo comunismo, arrastaria, fatalmente, o país vizinho, Portugal, o que bastaria para perturbar o equilíbrio de força e poder entre as "grandes nações". Foi o que aconteceu. Decididas a dirigir o curso da história no século XX, dividiram entre si o império do mundo. Feita a partilha, cada qual para o seu lado, o fim do século assiste, tal como ocorreu a Roma, à desintegração, às invasões bárbaras, ao derramamento de sangue... Não há mesmo nada de novo sob o sol... Os bárbaros de hoje são os turcos, os africanos, os albaneses...

QUEIROZ, Maria José de. Vladslav Ostrov, o príncipe do Juruena. Rio de Janeiro: Record, 1999. p. 174.

quarta-feira, 12 de outubro de 2016

Três mulheres
















Vil e cuidosa espera!

Enovelam-se ausências
na tela bem urdida.
Selam-se lábios e ouvidos
no serviço das mãos,
de esperto e aplicado ritmo.

Para Ulisses, o barco,
todas as tentações do mar
e a sedução das sereias
no eterno convite da distância
e no apelo do vento.
Para Penélope, agulha e silêncio:
meses e anos
de entretido e complicado enredo.
No labirinto de longos fios:
idas e voltas, fundos suspiros,
nenhuma surpresa,
nenhum risco.

O heroísmo navega
longe de linhas e rendas
olhos presos ao infinito.

Vil e cuidosa espera!

Em tinta e letra
o fogo se converte.
Na página branca e fria
lavram labaredas:
sem pudor nem comedimento
porque o resto (se o sabemos!)
é silêncio.
Nas cartas sem resposta,
no amor sem endereço,
o alívio e a pena.

Vil e cuidosa espera!

Na praia se levantem fogueiras,
de vivas e altas chamas,
nelas se lancem lembranças,
ternura, vulto e nome.

E ao largar da nave
Enéias não mais veja
pira a declamar-lhe afeto
sem razão e sem pretexto.
Dido soberana,
olhos enxutos, morto anseio,
no ar escreva adeuses
e ao mar entregue despojos
do amor vivido - cinza breve.

Paris, 1971.

QUEIROZ, Maria José de. Exercício de fiandeira. Coimbra: Coimbra Editora Ltda., 1974. p. 32-34.

domingo, 14 de agosto de 2016

Meu sonho era ser violinista

Sem meios para me instruir, aprendi, em casa, com meu pai, que é marceneiro, a trabalhar a madeira. E o que mais queria era possuir um violino. Meu sonho era ser violinista. Deus não permitiu que eu o realizasse. Não me queixo. Toco um pouco e transferi para a minha modesta fábrica de instrumentos a paixão que sempre senti pela música. Acho que poder fabricar o próprio instrumento aumenta o prazer de tocá-lo. A minha impressão é que ao executar uma peça eu retiro de dentro do violino os sons e os harmônicos que eu mesmo pus lá dentro. 

QUEIROZ, Maria José de. Sob os rios que vão. Rio de Janeiro: Atheneu-Cultura, 1990. p. 102. 


domingo, 24 de julho de 2016

Alforria


Alforria:
recuperar intimidades
escravizadas a alheio mando;
mobilar de eu e migo
as veredas da alma;
deixar de meter tu e tigo
em toda fiada ilusão.

Reencontrar-se
no ritmo recolhido
das carícias,
no grave olhar,
na acorde harmonia
de pessoa e máscara.
Reassumir nos ombros
o exercício dos braços.

Tudo volta ao antigo posto:
a liberdade corre às pernas
e instala-se no calcanhar.

Os pés demandam caminhos
na avidez de povoar de espaço
os rastos intervalares.

Paris, janeiro, 1970.

sábado, 16 de julho de 2016

Os passos prosseguem

Os passos prosseguem na busca ansiosa. Devem estar no nosso quarto de dormir. Perfumes, vestidos, ternos, sapatos, bolsas, alguma joia desgarrada (quase tudo está no banco), a televisão portátil, o relógio de cabeceira, os nossos relógios de pulso... Tudo inútil. Metade da vida perdida em amealhar, amealhar... O horror ao amigo do alheio. O verbo ter conjugado com ansiedade, temores, calafrio, no olvido dos verbos ser e estar. A propriedade é um roubo, sim. A nós mesmos. Transferimos às coisas a nossa residência: passamos a hóspedes interinos dos objetos. Por isso, ao perdê-los, nós os acompanhamos em degredo. Preciso convencer-me. À minha integridade basta-me, com sobejo, a identidade postiça — nome estado civil, nacionalidade. Tudo mais se sujeita à irregularidade do verbo ter e a todos os desastres da propriedade e da posse, jamais bem guardadas. O melhor, acredito, seja colecionar lembranças. Para que a memória as afeiçoe a seu grado, com direito a retoques e acréscimos, se necessário. Álbum de poucas páginas, sem fotografias e sem notas.

QUEIROZ, Maria José de. Invenção a duas vozes. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1978. p. 25.

quarta-feira, 22 de junho de 2016

Recitação de inverno
















Invenção de roteiro para jornada a dois pés:
recolher carícias à palma das mãos,
prendê-las entre os dez dedos.
Selar os lábios à lírica doçura do verbo,
engolir sílabas ternas, explosivas, fricativas,
renunciar, mesmo, às oclusivas.

Entronizar silêncio,
descobrir entre lábio
e lábio
o repouso horizontal
da inteligência muda.
Aprisionar o incendiado lume
que atravessa os olhos.
Clausurar emoções,
fingir indiferença,
alimentar monólogos.
Triunfalmente só,
reinventar
factícialmente
a alegria de ser
para "gozar a solas
del bien que debo al cielo
a solas,
sin testigo,
sin piedad,
sin amor
ni desconsuelo".


Paris, janeiro, 1970.


QUEIROZ, Maria José de. Recitação de inverno. In: ______. Exercício de levitação. Coimbra: Atlântida Editora, 1971. p. 14-15.

sábado, 18 de junho de 2016

Solilóquio

"mi soliloquio es plática con este buen amigo
que me enseño el secreto de la filantropia."

(Antonio Machado, Retrato)

Encruzilhada de todos os caminhos,
termo obrigado de qualquer empenho,
princípio e fim de todo enredo,
eis-me aqui.

Na diária intensidade do eu,
pronome pessoal primeiro,
em exercício de humana declinação,
construo ilusões, fabrico desvarios.

De egoísmo em egoísmo
me demonstro.
Sob signo de Gêmeos
determino.

Entre dúvida e dilemas
procuro segurança
para vida errante,
varrida pelos ventos
de rosa efêmera,
a que faltou perfume
de constâcia, raiz firme,
permanência.

Belo Horizonte, primavera de 1970 (outubro).

QUEIROZ, Maria José de. Exercício de gravitação. Coimbra: Atlântida Editora, 1972. p. 94-95.

segunda-feira, 13 de junho de 2016

Rosa



















Na cor cambiante,
que se faz, e perfaz
ao sol e à luz da manhã,
a impossível definição.

No mesmo perfume, pertinente,
a resposta aos dons da terra,
fiel, constante.

Na forma plural,
de singular investidura,
o privilégio de ser, a um tempo,
universal e única.

Da raiz ao cálice,
da haste à pétala,
rosa.

A eternidade floresce
no jardim do homem.


Lisboa, 1971.

QUEIROZ, Maria José de. Exercício de fiandeira. Coimbra: Coimbra Editora, 1974. p. 43.

quinta-feira, 21 de abril de 2016

2 de maio de 1789

Fotografia: Juliana Wosgraus
      Solteiro, quarenta e um anos de idade, sem Ordens nenhumas, como se lhe via do alto da cabeça não tonsurada, Alferes do Regimento de Cavalaria paga de Minas Gerais, conhecido de muita gente em razão da prenda de por e tirar dentes, Joaquim José da Silva Xavier, veio a esta Cidade do Rio de Janeiro para informação de três requerimentos: um: a respeito de umas águas, outro, de um trapiche e outro sobre o embarque e desembarque de gados. 
      Perguntado se sabia a causa de sua prisão, respondeu que não.
     No ano de nascimento de Nosso Senhor Jesus Cristo, de mil setecentos e oitenta e nove, aos vinte e dois dias do mês de maio, na Fortaleza da Ilha das Cobras, diante do Desembargador José Pedro Machado Coelho Torres, o Escrivão nomeado, Marcelino Pereira Cleto, fez constar de auto a sua resposta. (*)
___
(*) Cf. Autos da Devassa da Inconfidência Mineira. Rio de Janeiro, Ministério da Educação, Biblioteca Nacional, 1936, vol. IV, p. 29-30.

QUEIROZ, Maria José de. Como me contaram: fábulas historiais. Belo Horizonte: Imprensa/Publicações, 1973. p. 58-59.

domingo, 3 de abril de 2016

Tivemos uma boa ceia

Tivemos uma boa ceia: galinha cozida, toucinho, feijão e farinha de milho. A provisão de queijo, da fazenda de D. Rita, começou a ser servida. E o café, tão raro, como já sabíamos, foi bebido com o maior prazer. O telheiro, apesar de espaçoso, só nos defendia do vento, da chuva e das onças e lobos. Armaram-se redes e catres, acenderam-se fogueiras do lado de fora. A fumaça nos cegava a todos. 

QUEIROZ, Maria José de. Joaquina, filha do Tiradentes. Rio de Janeiro: Marco Zero, 1987. p. 160.

domingo, 6 de março de 2016

A docilidade dos comandados

Ninguém desce impune do pedestal doméstico, pois a descida supõe perda de privilégios. A conservação do poder exige talento, força e obstinação. Mas isso não é tudo. O chefe depende da docilidade dos comandados. Num primeiro estágio. Com o passar do tempo ele deve contar com a adesão apaixonada. O poder exercido sem objeções e sem protestos, num vazio onde a voz do mando se prolonga em ressonâncias, torna-se intolerável." 

QUEIROZ, Maria José de. Invenção a duas vozes. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1978. p. 151.

sábado, 27 de fevereiro de 2016

Mariana, 1752




QUEIROZ, Maria José de. Como me contaram: fábulas historiais. Belo Horizonte: Imprensa/Publicações, 1973. p. 39.

sexta-feira, 5 de fevereiro de 2016

Alfinetes

Se não temos ouro... Que podemos oferecer à Soberana para os seus alfinetes? A cabeça do Alferes vale ouro. Muito ouro! Está cheia de ouro! As fundições do Reino vão fundir alfinetes de ouro para a Soberana. Para quê moedas? Com o ouro da cabeça do Alferes vão fundir alfinetes, infinitos alfinetes. Todos de ouro. A Soberana terá alfinetes para a sua cabeça, para as suas almofadas e para o seu coração. Sete alfinetes de outro atravessam o seu coração. Ou o meu... Nem sei mais. Quanta desigualdade!


QUEIROZ, Maria José de. Joaquina, filha do Tiradentes. São Paulo: Marco Zero, 1987. p 155.

terça-feira, 19 de janeiro de 2016

Olhos baixos

O Mal só vem daqueles que nada fazem por mal. É sempre assim. Enfim, nada mais sei para ensinar a você. Sua educação está terminada. E sua instrução já é de sobejo. Você pode levantar os olhos. Pode levantar a voz. Eu estou cansada. Muito cansada. Passei a vida com os olhos baixos. Conheço as pedras das calçadas de Vila Rica e de Antônio Dias. Conheci as tábuas e o chão da casa do Alferes, da casa da minha mãe na Rua da Ponte Seca, da fazenda do Senhor Anacleto e de todas essas casas por onde passamos. Isso me pesa. Só levanto os olhos quando a revolta arrebenta. Só levanto a voz quando me vem vontade de ferir e matar. 

QUEIROZ, Maria José de. Joaquina, filha do Tiradentes. São Paulo: Marco Zero, 1987. p 196.