quarta-feira, 26 de agosto de 2015

A vida inventa

















A Riobaldo


A vida inventa, é certo.
E a estória inventada vale mais, muito mais,
que o caso acontecido
contra vontade nossa e projeto.

Amores imaginados,
em mil e uma noite vividos,
com Sherazade ou Boccaccio,
trouxeram-me alegria maior
que o afeto rotineiro,
sujeito a leis, credo e rito.

Em prosa e rima,
a vida que não tive,
no estilo e modo meu,
apetecido.

Na página escrita
- espelho e abrigo -,
o mais belo dia,
de passado ideal
ou futuro sonhado,
inacontecido.

Sei bem:
intrigo,
entreteço enredos
de longos, sutilíssimos fios.
Na cena imaginária
me aposento:
vivo e desvivo utopias.
Rio baldo, baldo rio,
que da nascente à foz
de palavras se alimenta
e ao largo mar aporta
verbo de emoção contida,
sentimento de signos vestido,
lenda, fábula, mito.
Mas tudo real, pensado.
Mais real que o caso acontecido
- acidente fortuito, inesperado,
a que chamamos destino, Providência,
sorte, sina, fatal designo.

Paris, inverno de 1971.

QUEIROZ, Maria José de. Exercício de gravitação. Coimbra: Atlântida Editora, 1972. p. 83-84.


sábado, 22 de agosto de 2015

Além da porta e do trinco

Além da porta e do trinco,
da chave e do ferrolho,
da parede e do muro,
além da última montanha,
da névoa e da bruma,
do arco-íris e do fumo,
além da máscara e do riso,
do gesto e da figura,
do perfil e do vulto,
além da voz e do grito,
do canto, da fala e do sussurro,
além de ti, de mim,
desse murmúrio e do olvido,
- o inferno ou o paraíso?
Belo Horizonte, 1972.

QUEIROZ, Maria José de. Exercício de fiandeira. Coimbra: Coimbra Editora, 1974. p. 87.

Que lhe posso eu dizer
















Que lhe posso eu dizer
que já não lhe tenha dito
em dicção de claro timbre
e verbo de grave sentido?

Consulte a memória
- sua fiel ancila.
Recupere vida e tempo,
convença-se:
eis-me a seu lado, cativa.
Milagre de eternidade,
permeada a seu ser,
estrela e mito.

Mas, se insiste,
confesso-lhe,
repito:
padeço funda saudade,
a lembrança me martiriza,
povoam-me incertezas,
dissipo-me entre amigos.

É tarde.
Escute-me:
de minha palavra
mal se ouve o eco
e a saudade já se faz grito...

Paris, 1970.

QUEIROZ, Maria José de. Exercício de fiandeira. Coimbra: Coimbra Editora, 1974. p. 72-73.

domingo, 16 de agosto de 2015

Receita para fabricar outono


"Tudo (entre um dia e o outro dia) por um velho capricho do relógio e, 
outro, da geografia".

(Cassiano Ricardo)

Paris: as duas margens do Sena sugerem rivalidades.
O Pont Neuf as elimina em mágica transcendência.

O mito passeia disponibilidade vaga
entre as duas margens:
éramos dois.

O tempo e seu ponteiros
mediram nosso verbo de dilatada ressonância. 

De passadas primaveras, ecos apagados,
vestígios dispersos de caminhos percorridos,
dualmente.
Hoje, o sursis.
Amanhã, o inverno monologal.

Paris, outono, 1969.

QUEIROZ, Maria José de. Exercício de levitação. Coimbra: Atlântida Editora, 1971. p. 13.

segunda-feira, 10 de agosto de 2015

Não há dor que resista a essa beleza

A pouco e pouco o sol apareceu. E o calor começou. A subida era difícil. Durante umas duas léguas, num caminho áspero e escorregadio, só fizemos subir. Quando chegamos ao topo do monte - o chapadão da Matutina -, pudemos descortinar toda a estrada feita, desde o arraial onde pousáramos até as montanhas mais distantes, que encerravam, em círculo, o imenso vale.
- Não lhe disse que a dor passaria quando estivéssemos na estrada? Não há dor que resista a essa beleza, Joaquina. 

QUEIROZ, Maria José de. Joaquina, filha do Tiradentes. São Paulo: Marco Zero, 1987. p. 161.