terça-feira, 16 de julho de 2013

O tom confessional na poesia de Juana de Ibarbourou

O tom confessional na poesia de Juana de Ibarbourou, declaradamente autobiográfico, assim o cremos, facilita-nos a tarefa, já de si tão complexa. Sua riqueza em aspectos humanos, geográficos e temporais permite-nos avaliar a importância da intromissão da vivência no domínio da experiência poética. Antes de nada, o nascimento em Melo, "villa extendida sobre una llanura junto al río bordeado de cañas tacuaras", explica o amor à natureza agreste, a intimidade com o luar, o conhecimento das coisas que fazem a alegria da vida do interior.



QUEIROZ, Maria José de. A poesia de Juana de Ibarbourou. Belo Horizonte: Imprensa da UFMG, 1961. p. 64-65.

domingo, 14 de julho de 2013

A cidade prometida

Nem barco nem vela,
nem rio nem mar:
caminhos de ir
e nunca voltar.
Exílio definitivo
de golfos e enseadas
no voluntário olvido
de espumas e ressacas.
Entre montanha e serra,
minério e granito,
terra a conquistar,
terra a povoar,
partida sem retorno,
adeus sem suspiro.
De Vila Rica,
a lembrança e o mito:
ilusões de riqueza,
a Derrama, a Inconfidência,
imagens, capelas e liras.
O morro da Queimada, Tiradentes,
Aleijadinho, Antônio Dias,
minas exaustas, a portada de São Francisco.
A coragem na mochila,
nos pés, a determinação do caminho.
Cabeça erguida, braço firme,
nervo pronto ao desafio.
O sertão se rende ao mais forte,
a cidade, ao que nela habita.
Uma, duas, muitas cores,
o crepúsculo se ilumina:
na montanha, a sua moldura,
no céu, tela de raro tecido.
O viajante deslumbrado
desenha janelas na alma
para debruçar nostalgias
do Itacolomi entre névoas
em tarde de garoa e frio.
Esquece a dureza do solo,
planta casas, colhe ruas
e suas noites insones
florescem em avenidas.
A capital desperta
no fundo das suas pupilas
e um milhão de habitantes
descansa entre sono e vigília.
Fantasma dos mais queridos,
visão edênica, Utopia,
a cidade se insinua
entre nuvens e bruma,
luminosa,
no infinito.
Fresca de flores, cimento, pólen,
cinge-o com carinho.
No seu pulso verde, elétrico,
sangue de muitas raças,
devoção a vário rito.
No seu corpo delgado,
calor e abrigo.

Mas na manhã clara, serena,
o sonho se dissipa.
A alma, leve, se agita
a recordar - fantasia! - 
grata visão noturna
de espírito ocioso, 
presa fácil do delírio.

Belo Horizonte, 12 de dezembro de 1971, aniversário da cidade.

QUEIROZ, Maria José de. Como me contaram: fábulas historiais. Belo Horizonte: Imprensa/Publicações, 1973. p. 145-149.

sexta-feira, 12 de julho de 2013

A letra julga e defende, condena e liberta

O uso e o culto da letra instauraram a reestruturação do sensível ao introduzir na interpretação dos fatos a consciência da causalidade. Não basta, não mais, o conhecimento do Direito, escrito no coração dos homens: é preciso ler o Decálogo, conhecer os institutos jurídicos que emanam das leis e da Constituição, os Códigos que regem o Estado, todos eles indispensáveis à vida social. A letra julga e defende, condena e liberta. E porque obriga à concentração da percepção, supõe a vigilância permanente da inteligência. A contínua associação do significante ao significado escraviza-nos a signos e conceitos enquanto a servidão à página escrita nos submete à tirania de um dos sentidos: a visão. Aplicada à apreensão do espaço e dos objetos, ela discrimina a forma, investiga o explícito. Isto é, o visível. Interessam-lhe, portanto, as evidências - dimensões, superfícies, volumes - que a sujeitam à conformidade e à lógica.


QUEIROZ, Maria José de. A América sem nome. Rio de Janeiro: Agir, 1997. p 65-66.


domingo, 7 de julho de 2013

A arte de bicicletar

Em detrimento do exercício e prática do esporte, o que importa a Georges Pérec e a Fernando Arrabal, escritores de vanguarda, é o que tema sugere. A bicicleta é pretexto para fantasias e teses metafísicas, objeto ao qual subtraem definições e conceitos sobre o ser. Membro genial do grupo Oulipo, e cuja memória se cultura hoje com especial veneração, Georges Perec publicou, em 1996, um livro curioso Quel petit vélo à guidon au fond de la cour? - Qual a bicicletazinha de guidom no fundo do pátio? Do espanhol marroquino, Arrabal, exilado na França, encenou-se em Paris, em 1967, a peça de um ato La bicyclette du condamné - A bicicleta do condenado (1958). O enredo, como tudo quanto escreve Arrabal, destrinça o absurdo, mostrando o conflito do caos e da liberdade. Para trazê-lo à consciência do público, expõe o drama de dois protagonistas (representados na peça por um ator): um homem condenado a andar de bicicleta e um pianista condenado a tocar piano. A bicicleta e o piano são a pedra de Sísifo de suas vidas. Chegados a esse ponto, em que tão inocente companheira de lazer se converte em instrumento de punição, será de bom aviso abreviar o nosso périplo.


QUEIROZ, Maria José de. Refrações no tempo: tempo histórico/tempo literário. Rio de Janeiro: Topbooks, 1996. p. 103-104.