ou
revisão da fábula
Nas tuas mãos, o meu melhor vestido:
trama inconsútil, gesto leve,
carícia e ritmo.
Lento, lento urdes a tela:
malha, ponto e linha,
fiel ao risco.
Dispenso organza e brocado,
de seda vulgar me dispo.
Na nudez encontras matéria
para mais belos motivos.
Em noite de amor e arte
celebram-se os sentidos:
ramagens astros e nuvens,
asas delgadas de pássaros
golfos e mais enseadas
O fio ao romper-se te obriga
ao enredo de novos laços:
os lábios correm em auxílio
dos dedos menos hábeis.
Plenilúnios, lagunas e lagos,
torrentes, fontes, cascatas
disfarças com breves toques,
unindo o esquivo ao raro.
A trama se complica
no requinte do tecido,
na sutileza do fio,
imponderável,
diáfano.
À fugaz beleza cálida
da teia secreta, apertada,
juntas suspiros e ais.
Toda inteira recoberta
de renda franjas e vozes,
rivalizo à madrugada,
com o claro vestido de névoa
estendido à flor do mar.
À inocente denúncia
à nudez falaciosa
(para a revisão da fábula)
em outros termos se declara:
o rico vestido de ouro,
de pedras e joias caras
- invenção de quem o talha,
veste-o quem nele acredita,
em dia de festa pública
ou em noite de amor e gala.
QUEIROZ, Maria José de. Resgate do real: amor e morte. Coimbra: Coimbra, 1978. p. 27-28.