domingo, 14 de outubro de 2012

A dor de pertencer à humanidade

Amargurada, desci à Amazônia com uma frase de Cocteau na cabeça: "J'ai mal d'être homme." Também eu carrego como peso a dor de pertencer à humanidade. Como é que pode haver tanta gente ruim no mundo? Será que pertencemos, todos, ao mesmo gênero humano? Ao fazer essa pergunta a Ostrov, já em convalescença, em casa, ele me respondeu:
- Tenho minhas dúvidas. Não conhecendo a frase de Cocteau, contentava-me em repetir o verso de Neruda - "Sucede que me canso de ser hombre" -, bem próximo, no seu pessimismo, da frase que me citou. Mas não creia que alguém escape da miséria humana. Ninguém é perfeito. A ruindade, os vícios, o crime são nosso patrimônio comum.

QUEIROZ, Maria José de. Vladslav Ostrov, príncipe do Juruena. Rio de Janeiro: Record, 1999. p. 159.

sábado, 6 de outubro de 2012

Das uvas e dos dentes dos filhos

Quando contei à comadre Elvira que os meus escrúpulos de consciência não me deixavam dormir, ela não se admirou. Era pior que eu. Em pecado grave, mortal, não amamentava os filhos. Temia que Deus punisse o inocente para castigá-la. Perguntei-lhe de onde tinha tirado isso. Da Bíblia. Da Bíblia? Pois não está escrito que "Os pais comeram uvas verdes e os dentes dos filhos ficaram embotados"? Fiquei horrorizada. Não sosseguei enquanto não obtive do padre Arduíno uma boa explicação para a sentença bíblica. E corri a participar à comadre que podia amamentar o coitadinho do afilhado sem susto: as uvas verdes nada tinham a ver com o leite materno. Helena, sua irmã, me contou que Elvira tinha mania de pecado.

QUEIROZ, Maria José de. Homem de sete partidas. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1980. p. 65.

sexta-feira, 14 de setembro de 2012

Decálogo que rege o paladar, de Brillat-Savarin

Ei-los:

I - O Universo só existe pela vida e tudo que vive se alimenta.

II - Os animais pastam; o homem come, só o homem de espírito sabe comer.

III - O destino das nações depende do modo pelo qual se alimentam.

IV - Diz-me o que comes e dir-te-ei quem quem és.

V - Ao obrigar o homem a comer para viver, o Criador convida-o a fazê-lo pelo apetite e o recompensa pelo prazer.

VI - A gulodice é o ato do julgamento pelo qual manifestamos nossa preferência pelas coisas que são agradáveis ao gosto em detrimento daquelas que não têm essa qualidade.

VII - O prazer da mesa é de todas as idades, de todas as condições, de todos os demais prazeres e é o último que resta para consolar-nos da sua perda.

VIII - A mesa é o único lugar onde jamais nos entendíamos na primeira hora.

IX - A descoberta de um novo prato faz mais pela felicidade do gênero humano que a descoberta de uma estrela.

X - Os que têm indigestão ou que se embriagam não sabem comer nem beber.

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QUEIROZ, Maria José de. A comida e a cozinha: iniciação à arte de comer. Rio de Janeiro: Forense, 1988. p. 107-108.