sábado, 7 de setembro de 2013

Tempo de amor

O espírito paira sobre as águas
faz-se luz  no universo:
diante de ti, o Gênesis, a terra.
Véspera de milagre,
na surpresa do gesto inédito,
colhe entre os dedos o grito,
encarcera-o na epiderme
até que lento, bem lento,
se desabroche e floresça
em jardim de muitas veredas,
dedilhado à flor da pele.

Um homem, uma mulher:
a nudez edênica de todos os princípios,
o sagrado ritual de todos os começos.
Esplende a carne casta
na apoteose do mistério:
sangue, músculo e nervo.
Rendida ao primeiro olhar
- tímido, furtivo, discreto,
hesita, disfarça, entrega-se
não, não se entrega,
dividida entre o pudor e o desejo.

De todas as vozes,
o eco:
quantos somos? de quantas noites viemos?
De todas as frases,
o sentido denso:
da adolescência guardamos
a angústia, a culpa, o receio.
De todos os ritmos,
a cadência:
cedem os pulsos cerrados,
rompem-se velhas algemas.
Compassos em pausa
sustentam o silêncio:
noite colorida de tons,
acordes, escalas, arpejos.
Alargam-se em fermata
breves, semibreves enleios.

Nosso tardio evangelho
reescrevemos a medo:
reiventamos o mundo,
a carne faz-se verbo.
Primeira página, Livro 1:
é tempo de amor.
Dissipa-se a solidão das trevas.

QUEIROZ, Maria José de. Resgate do real: amor e morte. Coimbra: Coimbra Editora, 1978. p. 15-16.

domingo, 1 de setembro de 2013

A língua absolvida, de Elias Canetti


A grande repercussão de A língua absolvida. História de uma juventude, a que se seguiram Uma tocha em meu ouvido e Jogos de olhar, conferiu-lhe [Elias Canetti] larga notoriedade na Europa, granjeando-lhe fama internacional. Fama tardia, já nos anos maduros. Ainda assim exaltante. Especialmente após o encalhe de Auto-de-fé e a pálida repercussão de Massa e poder. Donde procede tão súbito entusiasmo? Não mudaram o autor nem o público; mudou o gênero. E nenhum outro, senão as memórias, parece menos rígido nem mais propício à defesa de princípios, à exposição das ideias nem, tampouco, à livre expressão dos sentimentos e das emoções. Porque nele se confundem, dentro dos limites do testemunho pessoal, o romance de figura, o romance de evolução e o romance de formação. Sob os auspícios do pacto autobiográfico exprimem-se, ao abrigo da censura, de toda censura, aptidões, gostos, preferências, ideologias e conhecimentos. O leitor refaz, no curso de uma vida, todo o itinerário percorrido pelo autor. Assimilam-se ao discurso, de palpitante vivacidade, o auto-retrato, o diário, o mergulho introspectivo, tudo isso permeado à crônica do momento político e social, na sua infinita variedade humana. E o que mais interessa: o estilo coloquial, do Eu com o seu duplo, traz o leitor para junto do sujeito.

QUEIROZ, Maria José de. Tempo histórico. Tempo literário. Rio de Janeiro: Topbooks, 1996. p.113.
Refrações no tempo

segunda-feira, 26 de agosto de 2013

A obsessão do espelho

A obsessão do espelho nas mais variadas implicações com o mito de Narciso constantemente se reelabora. Na busca incessante de si  mesmo, da sua verdade, o homem descobre na imagem refletida a prova física da existência. Só ela lhe oferece o sujeito como objeto, guardada a sua identidade e semelhança. Sucede às vezes apoderar-se o espelho da imagem-objeto para transformá-la em sujeito aos olhos do original. A partir de então, o sujeito só se encontra na contemplação da figura aprisionada pelo cristal. É ela que o assegura da sua existência como personagem. É ela que lhe sugere gestos e posturas. A fábula da rainha vaidosa endossa não só o comportamento da coquette, que se mira a cada instante no espelhinho da bolsa, como a conduta do homem cuja maior preocupação é a figura que faz  aos olhos (espelho) dos outros. Transfere-se, portanto, ao espelho a essencialidade humana.

QUEIROZ, Maria José de. Cesar Vallejo: ser e existência. Coimbra: Atlântida, 1971. p. 87.