quarta-feira, 1 de outubro de 2014

Nossa Senhora do Ó




















A Geraldo Tymburibá

Ladainha de Nossa Senhora,
Nossa Senhora do Ó:
louvação em cada verso,
súplica em todo ó.

No altar,  o ouro do rio,
nas paredes, dragões da China,
nos lábios, a ladainha.
Macau e Goa trouxeram
desenho, invenção e tinta
para celebrar em Minas 
o parto da Virgem Maria.
Capelinha portuguesa
com nome de ladainha.

Nossa Senhora do Ó (*)
navega em nau da China
e no porto do Rio das Velhas,
no Sabará, Sabarabuçu,
ancora a sua capela.
Capela, capelinha,
barca celeste de ouro
que reza à Virgem Maria
na margem do rio de Minas.

Paris, fevereiro de 1971.

(*) Leia-se, de António José Saraiva, "Les quatre sources du discours ingénieux dans les sermons du Pe. António Vieira", in Bulletin ded Études Portugaises, 1970, nouvelle série, t. 31, p. 177-270, a propósito do culto a Nossa Senhora do Ó na Península Ibérica e no Brasil. Curiosa, engenhosa mesmo, a definição de Vieira que vê no Ó o símbolo da eternidade.

QUEIROZ, Maria José de. Como me contaram... fábulas historiais. Belo Horizonte: Imprensa/Publicações, 1973, p. 34-36.

domingo, 14 de setembro de 2014

Entre ampulheta e clepsidra


Raio de sol,
alegria transeunte,
aroma de efêmera residência,
eis o que sou.

Povoei de escândalo
o teu outono,
ensinei-te comas
e semicomas
de modinhas esquecidas,
com letra, música
e cadência,
de Ovalle e Mignone,
talvez mais.




Desviei teus passos,
incendiei tuas inibições,
dei-te chaves
de desconhecidos falares.

Ensaiaste voo
por atlânticas finitudes,
sereno, altivo, ileso.
Se me esqueceste,
não me traíste,
em aliviado suspiro
confessaste
o gozo e o júbilo
do amor recuperado,
intacto,
no macio colo
de diferente abraço.
Oh irrisão de verbo inocente!
Insensata disponibilidade!

Num maranhão de conflitos
me perdi. E te reencontrei.
Tão distinto, tão mortal,
cotidiano,
integrado à grei humana,
sem auréola ou pedestal.
Ceguei-me.
Queimei indiferenças
no fogo de castos intentos.
Porfiei, apesar de.
Porfiamos, ainda.
Sofremos dúvidas
de cruel padecimento
Azulei melancolias
em crise de alma
e vocação.
Na incerteza do afeto,
desentendeste parábolas.
Pagaste ingrata gabela
de fossas monumentais.

Assumi tuas catarses,
enfrentei dicotomias,
rendi-me a novo sursis.
Curei vacilações
no empenho definitivo
de ajustada sincronia.
Proclamei em alto grito,
indiferente a todo dano,
felicidade a prazo fixo,
sujeita a leis, correios, âncora.
Avoquei responsabilidade
de falência previvida
no lúcido endosso
do título precário.
Em modo teu, muito próprio:
viverei de memórias, justificada.
E atenta ao que é digno, justo e salutar
- como se lê no Prefácio
de antiga liturgia, Ordinário ) -
jamais me ocorrerá
semear maravilha, sonho ou ilusão
em território alheio,
adubado de sal e pranto,
firmado em santa aliança
de fé, papel e casa cristã.
Que me troquem (antes isso!)
em  tempero de eterna paz,
reconquistada.
Na solidão de noites ermas,
lembrarei que és feliz: tanto me basta.
No silêncio,
povoado de palavras,
florescerá o verso
de breve pena,
verso emplumado,
verso alado,
volátil:
redenção de asa e pluma
do delito de amar
em diacronia
entre dois intervalos
de água e areia.


Paris, fim de primavera, 1970. 


QUEIROZ, Maria José de. Exercício de Levitação. Coimbra: Atlântida, 1971. p. 76-79.