quarta-feira, 31 de dezembro de 2014

A língua de empréstimo

A língua de empréstimo, mesmo aquela que se fala com fluência, e também com prazer, cansa ao fim de certo tempo. A inteligência desperta não pode ignorar, um momento sequer, a sintaxe, a morfologia, o vocabulário. Regras e normas constantemente se impõem. Não é só. Para chegar a falar correta e correntemente, vivemos, em nós mesmos, a língua estrangeira e constantemente a assimilamos, num processo jamais concluído de reelaboração do aprendizado. À língua materna, tal não acontece. Corre livre o pensamento. Deturpa-se a pronúncia, infringem-se leis e uso. Nada importa. É patrimônio próprio. Infenso à dilapidação. E mais: bem ou mal, sempre nos fazemos entender. O medo da censura, o autopoliciamento, o respeito ao idioma que não é o nosso favorece a tensão. Ninguém se sente impune ao pronunciar uma língua estrangeira. Isto é, aqueles que aspiram a uma certa ideia de correção de linguagem. Fluência significa esforço, concentração, vigilância. É fato: pode-se pensar numa língua estranha à nossa. Esse, o grande privilégio dos que dominam um novo idioma. Pode-se, até, sonhar em francês, em russo, em javanês. No entanto - a encontrar-se aí a essência da função fabuladora -, só se fala sem pensar a língua materna. É isso o que ela guarda de próprio e de misterioso. 

QUEIROZ, Maria José de. Ano novo, vida nova. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1978. p. 104-105.

sexta-feira, 26 de dezembro de 2014

Chove em Paris...

























Decretar morte,
impor silêncio,
secar todos os rios.
Na surdez de voz e palavra,
engasgar ternos enleios,
regressar a noites brancas,
povoadas de vazio.
Resignar-me à presença
do eu que vai comigo,
atento e implacável,
lúcido e frio.

Da temeridade me ficou
o gosto do inédito
- sabor de novidade,
com que me regalei,
no desprezo do antigo império,
mercê de todos os sentidos.
Para celebrar o jamais sonhado
- desvario outonal do tempo ido,
proclamei nova ética,
inventei calendário,
vesti novo traje,
recuperei ausências,
fabriquei mitos.
Renunciei ao futuro
no compromisso do agora
mas salvei o meu sempre,
a outros deuses rendido.
Vivi de provisório.
Na nostalgia do paraíso perdido
encontrei razões de santidade,
invoquei platonismo.

Hoje, que resta?
- Do passado, curto e pífio,
  horas furtadas a medo
  a mil olhos escondidos.

Decreto morte.
Imponho silêncio.
Sequem todos os rios!
Cansa-me a lentidão do Sena:
nas suas águas perenes
vejo apenas desafio...
Nada tenho, nada resta.
Chove em Paris...
Que frio!

Paris, verão de 1970.

QUEIROZ, Maria José de. Exercício de gravitação. Coimbra: Coimbra Editora, 1972. p. 62-63.