domingo, 13 de setembro de 2015

Antônio Francisco Lisboa, enfim liberto

















Tudo claro, calado.
Nenhuma surpresa na via sacra:
Cristo, os apóstolos, a morte,
dois ladrões, muitos soldados.
Mas no azul largo do horizonte
braços e mãos nos alertam:
no alto do Matosinhos
assiste douta assembleia.

Oh profetas, nobres profetas!
Palavras encarceradas
nas letras mudas, eternas,
no gesto feito de pedra.
A voz desatada em verbo
ameaça partir no gesto.

E como saber que dizem?
Como entender-lhe a fala?
Que vozeio o seu, tão secreto?

O silêncio apenas repete
na insistência da pedra
o sonho frustrado na terra:
na tarde longa dos séculos,
prodígio de mãos e braços
de Antônio Francisco Lisboa,
enfim liberto.

Congonhas, setembro de 1972.

QUEIROZ, Maria José. Como me contaram: fábulas historiais. Belo Horizonte: Imprensa/Publicações, 1973. p. 190-192.

domingo, 6 de setembro de 2015

As coisas têm alma

Para Zibuntas Miksys
As coisas têm alma.
Deveras.
É preciso no entanto desvelar-lhes o segredo:
expô-lo à luz, ao sol, às estrelas,
despertá-lo com a força do grito,
ou com a dureza do diamante ímpio,
trazê-lo à vida, ao rumor, ao ritmo,
à pátria da dor, do relâmpago e do reflexo.

Do subentendido à evidência
emissárias de lembranças,
as coisas falam.
Ilhas de luz e sombra,
pássaros petrificados,
pérolas de profundo sigilo,
sua voz cresce,
e sobe,
cálida, vibrátil.
Numa linguagem secreta,
ali, onde desemboca o silêncio,
o mistério se manifesta:
flecha disparada, súbito aroma,
que o tempo devora
e a quietude consome.

As coisas têm alma:
múltipla, compósita, diversa.
E sua ideia em nós assiste,
queda.
Submissas ao cristal, ao mármore, à tela
- nostalgia de perfeição, chama divina,
simples gesto -
ninguém lhe pode dar senão o que tem,
em si,
benesse ou pobreza.

As coisas têm alma.
É preciso violar-lhes o segredo.

Paris, inverno de 1977.

QUEIROZ, Maria José de. Para que serve um arco-íris? Belo Horizonte: Imprensa, 1974. p. 17-18.

quarta-feira, 26 de agosto de 2015

A vida inventa

















A Riobaldo


A vida inventa, é certo.
E a estória inventada vale mais, muito mais,
que o caso acontecido
contra vontade nossa e projeto.

Amores imaginados,
em mil e uma noite vividos,
com Sherazade ou Boccaccio,
trouxeram-me alegria maior
que o afeto rotineiro,
sujeito a leis, credo e rito.

Em prosa e rima,
a vida que não tive,
no estilo e modo meu,
apetecido.

Na página escrita
- espelho e abrigo -,
o mais belo dia,
de passado ideal
ou futuro sonhado,
inacontecido.

Sei bem:
intrigo,
entreteço enredos
de longos, sutilíssimos fios.
Na cena imaginária
me aposento:
vivo e desvivo utopias.
Rio baldo, baldo rio,
que da nascente à foz
de palavras se alimenta
e ao largo mar aporta
verbo de emoção contida,
sentimento de signos vestido,
lenda, fábula, mito.
Mas tudo real, pensado.
Mais real que o caso acontecido
- acidente fortuito, inesperado,
a que chamamos destino, Providência,
sorte, sina, fatal designo.

Paris, inverno de 1971.

QUEIROZ, Maria José de. Exercício de gravitação. Coimbra: Atlântida Editora, 1972. p. 83-84.


sábado, 22 de agosto de 2015

Além da porta e do trinco

Além da porta e do trinco,
da chave e do ferrolho,
da parede e do muro,
além da última montanha,
da névoa e da bruma,
do arco-íris e do fumo,
além da máscara e do riso,
do gesto e da figura,
do perfil e do vulto,
além da voz e do grito,
do canto, da fala e do sussurro,
além de ti, de mim,
desse murmúrio e do olvido,
- o inferno ou o paraíso?
Belo Horizonte, 1972.

QUEIROZ, Maria José de. Exercício de fiandeira. Coimbra: Coimbra Editora, 1974. p. 87.