sábado, 16 de julho de 2016

Os passos prosseguem

Os passos prosseguem na busca ansiosa. Devem estar no nosso quarto de dormir. Perfumes, vestidos, ternos, sapatos, bolsas, alguma joia desgarrada (quase tudo está no banco), a televisão portátil, o relógio de cabeceira, os nossos relógios de pulso... Tudo inútil. Metade da vida perdida em amealhar, amealhar... O horror ao amigo do alheio. O verbo ter conjugado com ansiedade, temores, calafrio, no olvido dos verbos ser e estar. A propriedade é um roubo, sim. A nós mesmos. Transferimos às coisas a nossa residência: passamos a hóspedes interinos dos objetos. Por isso, ao perdê-los, nós os acompanhamos em degredo. Preciso convencer-me. À minha integridade basta-me, com sobejo, a identidade postiça — nome estado civil, nacionalidade. Tudo mais se sujeita à irregularidade do verbo ter e a todos os desastres da propriedade e da posse, jamais bem guardadas. O melhor, acredito, seja colecionar lembranças. Para que a memória as afeiçoe a seu grado, com direito a retoques e acréscimos, se necessário. Álbum de poucas páginas, sem fotografias e sem notas.

QUEIROZ, Maria José de. Invenção a duas vozes. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1978. p. 25.

quarta-feira, 22 de junho de 2016

Recitação de inverno
















Invenção de roteiro para jornada a dois pés:
recolher carícias à palma das mãos,
prendê-las entre os dez dedos.
Selar os lábios à lírica doçura do verbo,
engolir sílabas ternas, explosivas, fricativas,
renunciar, mesmo, às oclusivas.

Entronizar silêncio,
descobrir entre lábio
e lábio
o repouso horizontal
da inteligência muda.
Aprisionar o incendiado lume
que atravessa os olhos.
Clausurar emoções,
fingir indiferença,
alimentar monólogos.
Triunfalmente só,
reinventar
factícialmente
a alegria de ser
para "gozar a solas
del bien que debo al cielo
a solas,
sin testigo,
sin piedad,
sin amor
ni desconsuelo".


Paris, janeiro, 1970.


QUEIROZ, Maria José de. Recitação de inverno. In: ______. Exercício de levitação. Coimbra: Atlântida Editora, 1971. p. 14-15.

sábado, 18 de junho de 2016

Solilóquio

"mi soliloquio es plática con este buen amigo
que me enseño el secreto de la filantropia."

(Antonio Machado, Retrato)

Encruzilhada de todos os caminhos,
termo obrigado de qualquer empenho,
princípio e fim de todo enredo,
eis-me aqui.

Na diária intensidade do eu,
pronome pessoal primeiro,
em exercício de humana declinação,
construo ilusões, fabrico desvarios.

De egoísmo em egoísmo
me demonstro.
Sob signo de Gêmeos
determino.

Entre dúvida e dilemas
procuro segurança
para vida errante,
varrida pelos ventos
de rosa efêmera,
a que faltou perfume
de constâcia, raiz firme,
permanência.

Belo Horizonte, primavera de 1970 (outubro).

QUEIROZ, Maria José de. Exercício de gravitação. Coimbra: Atlântida Editora, 1972. p. 94-95.

segunda-feira, 13 de junho de 2016

Rosa



















Na cor cambiante,
que se faz, e perfaz
ao sol e à luz da manhã,
a impossível definição.

No mesmo perfume, pertinente,
a resposta aos dons da terra,
fiel, constante.

Na forma plural,
de singular investidura,
o privilégio de ser, a um tempo,
universal e única.

Da raiz ao cálice,
da haste à pétala,
rosa.

A eternidade floresce
no jardim do homem.


Lisboa, 1971.

QUEIROZ, Maria José de. Exercício de fiandeira. Coimbra: Coimbra Editora, 1974. p. 43.