Vil e cuidosa espera!
Enovelam-se ausências
na tela bem urdida.
Selam-se lábios e ouvidos
no serviço das mãos,
de esperto e aplicado ritmo.
Para Ulisses, o barco,
todas as tentações do mar
e a sedução das sereias
no eterno convite da distância
e no apelo do vento.
Para Penélope, agulha e silêncio:
meses e anos
de entretido e complicado enredo.
No labirinto de longos fios:
idas e voltas, fundos suspiros,
nenhuma surpresa,
nenhum risco.
O heroísmo navega
longe de linhas e rendas
olhos presos ao infinito.
Vil e cuidosa espera!
Em tinta e letra
o fogo se converte.
Na página branca e fria
lavram labaredas:
sem pudor nem comedimento
porque o resto (se o sabemos!)
é silêncio.
Nas cartas sem resposta,
no amor sem endereço,
o alívio e a pena.
Vil e cuidosa espera!
Na praia se levantem fogueiras,
de vivas e altas chamas,
nelas se lancem lembranças,
ternura, vulto e nome.
E ao largar da nave
Enéias não mais veja
pira a declamar-lhe afeto
sem razão e sem pretexto.
Dido soberana,
olhos enxutos, morto anseio,
no ar escreva adeuses
e ao mar entregue despojos
do amor vivido - cinza breve.
Paris, 1971.
QUEIROZ, Maria José de. Exercício de fiandeira. Coimbra: Coimbra Editora Ltda., 1974. p. 32-34.