quarta-feira, 14 de dezembro de 2016

Acaiaca, 1938

Muro alto, saias longas, portas fechadas. Golas e punhos bem cerrados, janelas trancadas. Nenhum retrato nenhuma identidade. Nada que a obrigasse a sair, a enfeitar-se. Em casa se reza. Em casa se salva. Um, dois, três, oito filhos multiplicados por nove meses de espera fazem seis anos de reclusão entre sala, cozinha e quartos. Mas a morte veio, calada, esconder-se nas tripas de Artur de Lima Gonçalves. O muro caiu, abriram-se as portas, perdeu-se o cadeado. Bisturis, soro, sangue, emplastos: o câncer roía-lhe a carne, as entranhas se lhe convertiam em água. A mão que lhe assinou o óbito deu nome à família, vestiu de noiva a viúva, resgatou-lhe os filhos  da orfandade. A casa aberta a todos os ventos, viveram felizes em Acaiaca.

QUEIROZ, Maria José de. Como me contaram... fábulas historiais. Belo Horizonte: Imprensa/Publicações, 1973. p. 164-165.

domingo, 6 de novembro de 2016

Que o novelo se desenrede...


Que o novelo se desenrede. Sem concessões. Que a minha ficção, em vez de anular-me, me ofereça a possibilidade de encontrar-me. Mais: de melhor conhecer-me e de analisar-me. Uma espécie de ficção indefinida, entre dois planos, um real, vivido, e o outro imaginado. [...] Invenção e vida. Unidas pelo fio sutil da simpatia. É a história que está a programar o vivido. Não tenho, por isso, a impressão  de que o enredo se resolva no epílogo. Como se o tempo, circular, tudo recuperasse sob o signo das letras. Talvez, no momento da revisão do texto, ao chamar Clara, e não mais Patrícia à personagem, eliminando, sempre, a primeira pessoa do singular, eu possa dar à história selo definitivo, estável. Não sei. O que sinto, por enquanto, é que tudo isso não passa de uma restituição. Restituição do fictício à ficção. Se lograr realizá-la, convencendo-me da sua realidade, poderei desaparecer. Ficarei livre de Patrícia nomeando-a Clara.

QUEIROZ, Maria José de. Ano novo, vida nova. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1978. p. 62-63.