sábado, 2 de junho de 2018

Ponto e contraponto



















Outros se mordem,
dilaceram-se.

Passeiam desalento
entre cardo e punhal.

Em cotidiano enleio
arrastam das calçadas
o conflito ao travesseiro.

Exaltam Ionesco
no mui digno parlamento
de lençol e almofada.

De luto vestem máscara e alma
no desempenho esmerado
de tragédia encenada
entre palco e bastidores:
escasso viver, muitos atos,
vida amarga, solidão.

Esse o honesto tributo à indiferença
em descompasso de canto e dicção.

Se há metais em voz alheia,
rebelde a toda descante,
que fazer desta harmonia
de tessituras afinadas
em acorde, clave e tom?

Que fazer das velhas pedras,
aves, rios e mosteiros,
entre outono e primavera cultivados?

Onde esconder sol e sombra,
de claro azul mediterrâneo,
Chopin, Georg Sand, Valldemosa,
prelúdios de tempo sepulto
e imagens ressuscitadas?

Onde guardar sonatas?
Onde ocultar auroras?
Onde aprender discórdias?
Como semear rancores
se só nos visita o soluço,
de funda emoção descalada,
quando, em fibra e memória,
céus distantes, infâmia rara
reintegramos alumbrados
na lembrança de fantasmas
e lares empoeirados? 

Que fazer do verso inédito,
tardiamente nascido,
para celebração da ternura,
do pranto e destino avaro?

Que fazer de nós
        tão distintos,
        tão iguais,
        tão esquivos,
        tão mortais?

Que fazer de passo e ritmo
de ciranda, cirandinha
que salta aos nossos pés
na inocência recuperada?

Que fazer de flor celeste
em jardim de terra exausta?
Que fazer da envergadura
do pássaro recriado?

Que fazer de tanto afeto
se nos devora o relógio
se não nos resta pretexto
para justificar atrasos
se nos perdemos em eco
e o que fomos
já não somos?

Que fazer de nós
se jamais regressaremos
ao ferro, à montanha e ao hábito?

Que fazer de nós?
Que fazer?
Nós?


Paris, 11-04-70

QUEIROZ, Maria José de. Exercicio de levitação. Coimbra: Atlântida, 1971. p. 65-68.

sábado, 27 de janeiro de 2018

Vladslav Ostrov: Príncipe do Juruena, 1999


QUEIROZ, Maria José de. Vladslav Ostrov: príncipe do Juruena.
Rio de Janeiro: Record, 1999. 303p.
 
No romance, Úrsula Bock, uma funcionaria alemã de uma firma importadora de madeira, aves exóticas e plantas ornamentais, apresenta ao leitor Vladslav Ostrov, um aventureiro russo de origem nobre que, entre riscos e desafios, emerge da história do século XX numa biografia memorável. Ao emigrar para a Argentina, Vladimir salva bens de família que o possibilitam ser acionista de um banco polonês em Buenos Aires. Da Argentina à Colômbia e depois para o Brasil, na região amazônica, esse homem culto, de posses e de boa educação, faz da selva o seu reino e entre a população brasileira estabelece seus negócios e vive amores.

“Um amigo meu, dado a esoterismo e fenômenos parapsicológicos, não teve dúvida em classificar esse decalque inexplicável de Olov a Ostrov, ou vice-versa, como "fulgurações da imaginação". Quando lhe perguntei o que entendia por isso, ele me respondeu que são como spots ou clarões que nos põem em contato com tudo o que se passa no universo. Uma espécie de sexto sentido, ou intuição criadora, que nos transporta a formas de conhecimento total. No entanto, imperfeitos que somos, não atingimos o absoluto: nosso conhecimento padece intermitências. Não há revelação total, mas parcial. Por isso, talvez fosse mais correto falar de relâmpagos de vidência ou breves iluminações. A criação do príncipe Olsztyn, personagem de ficção, entretanto vivo em alguma parte do globo, seria um excelente exemplo de como isso ocorre: só me haviam chegado, mercê de breves iluminações, certos episódios de sua vida. O demais continuara oculto no magma universal. Quando se rompe, em súbitos clarões, o véu que o encobre é que acontecem as chamadas "fulgurações da imaginação". (p. 33).


“Era amor à primeira vista. Disso eu não suspeitava. Ainda não. Acreditava-me infenso a tais fraquezas. Cultivava, desde os últimos anos na Argentina, uma misoginia mal resolvida. Aborrecia-me o eterno feminino. Mas Brigitte não era como as demais mulheres... Descobri, passado o frenesi da paixão, que não só o eterno feminino existe, sim, como uma mulher é todas as mulheres. E talvez seja isso o eterno feminino. Quem conhece uma, conhece todas elas. A paixão é que é diferente. É o sujeito que reinventa o objeto amado. Embora ele seja sempre o mesmo...” (p. 84).

“A arte da sedução não é tão simples quanto se imagina. Principalmente se o rival, mantido à distância, participa da intriga e contribui para o seu bom êxito. Claro que houve finta. E com a cumplicidade da vítima. Para que a honradez e os bons princípios prevalecessem. O cornudo saiu invicto do episódio. E a bela lituana prestou valente serviço à causa nazista. Ela sabia que o amor, em tempo de guerra, também é arma. E usou-a com mestria. Para meu prazer. Nosso, talvez... Não, não quero crer que Hitler interferisse no arrebatamento da sua entrega. Nem Goering dela exigiria tamanha assiduidade nem tais caprichos de devoção a Eros.” (p. 85).

“Amargurada, desci à Amazônia com uma frase de Cocteau na cabeça: "J'ai mal d'être homme." Também eu carrego como peso a dor de pertencer à humanidade. Como é que pode haver tanta gente ruim no mundo? Será que pertencemos, todos, ao mesmo gênero humano? Ao fazer essa pergunta a Ostrov, já em convalescença, em casa, ele me respondeu: — Tenho minhas dúvidas. Não conhecendo a frase de Cocteau, contentava-me em repetir o verso de Neruda – "Sucede que me canso de ser hombre" –, bem próximo, no seu pessimismo, da frase que me citou. Mas não creia que alguém escape da miséria humana. Ninguém é perfeito. A ruindade, os vícios, o crime são nosso patrimônio comum.” (p. 159).
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Lyslei Nascimento
Faculdade de Letras, UFMG