terça-feira, 19 de outubro de 2021

LITERATURA

Ensaios lançam luz sobre livros de Murilo Mendes e Maria José de Queiroz

(foto: Fernando Lopes/CB/D.A Press)

Lançamentos de Filipe Menezes e Maria Silvia Duarte Guimarães oferecem outro olhar sobre 'Poliedro' e 'Como me contaram: fábulas historiais'

Rogério Faria Tavares - Esp. para o EM

18/10/2021 04:00 - atualizado 18/10/2021 07:30

"A zoologia metafísica de Murilo Mendes está calcada na influência surrealista. Os animais, os monstros e objetos animados de 'Poliedro' são desenhados, em sua maioria, a partir dessa estética" "Maria José de Queiroz compõe, a partir de Minas, como uma atenta cartógrafa, um mapa ficcional em que cidades reais podem se mesclar ou se deixar enevoar por cidades ficcionais ou invisíveis"

Lançada pela Caravana Grupo Editorial, a Coleção Libertas é dedicada à publicação de ensaios sobre literatura, cinema, fotografia, teatro, música e televisão. Entre os títulos já editados estão “A literatura encarcerada”, de Maria José de Queiroz, e “Línguas em trânsito”, de Lyslei Nascimento e Neide Nagae.

Agora, vêm à lume dois novos livros: “Animais biográficos: um estudo de 'Poliedro', de Murilo Mendes” e “Tecer o visível e entretecer o invisível: cidades invisíveis em Italo Calvino e Maria José de Queiroz”, ambos resultantes de dissertações de mestrado defendidas junto ao Programa de Pós-graduação em Letras: Estudos Literários da Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG), sob a orientação de Lyslei Nascimento.

ANIMAIS BIOGRÁFICOS

O primeiro ensaio é de autoria de Filipe Menezes, mestre em letras pela UFMG, mestre em administração pública pela Fundação João Pinheiro e, atualmente, doutorando em letras e estudos literários pela UFMG. Uma das epígrafes, assinada em 1956 por Eduardo Frieiro, situa devidamente o tema: “Os animais na literatura são velhos como a própria literatura”.

Motivado por essa reflexão, o pesquisador optou por começar a sua investigação pelos registros mais antigos a respeito dos bichos. Em suas incursões pelas primeiras fontes, chegou a Aristóteles, a Plínio, o Velho, e a Claudius Aelianus, referências incontornáveis para todos os estudos que, posteriormente, pretenderam nomear e classificar animais.

Identificando as variadas influências sofridas, ao longo dos séculos, pelos que escreveram sobre o assunto, Menezes mostra como a ciência, a religião e a mitologia se encontram em tais trabalhos, a eles conferindo uma inegável proximidade com a literatura de ficção.

BESTIÁRIO 

Principal precursor do gênero “bestiário”, largamente difundido na Idade Média, “Physiologus”, de origem desconhecida, fazia algumas descrições legendárias de animais e foi amplamente utilizado com a finalidade de ensinar teologia e moral, tendo na “Bíblia” uma de suas inspirações principais.

Os bestiários são considerados versões adaptadas do “Physiologus”, mas acolhem e recombinam contribuições de procedências diversas. Como ressalta Menezes, “com o passar do tempo, os verbetes foram reinventados, sendo revistos e adaptados por vários autores, dando origem a outros textos nos quais os animais ocupam outros contextos. Nestes, a vida dos animais e suas características e hábitos reinscrevem conteúdos variados, diferentes da ênfase na moral e na religião”.

Já os chamados “zoológicos textuais”, como explica o autor, “carregam um complexo sistema semântico, com algumas características trazidas dos zoológicos reais, como os sentidos de reclusão dos animais e o domínio do homem sobre eles, o autoespelhar do visitante nos animais expostos em suas jaulas ou simulacros de hábitat, a intenção de divertir e, em alguns textos mais recentes, o afã de educar e se preocupar com a conservação do meio ambiente. Os zoológicos textuais, assim, são metáforas dos bestiários, recriados para absorver os variados significados que carregam os zoológicos e aquários reais”.

É a Jorge Luis Borges que Menezes recorre para abordar como a literatura moderna e contemporânea apresenta os animais. Guiado pelo escritor argentino, o ensaísta visita Emanuel Swedenborg, Franz Kafka, Lewis Caroll, Edgar Allan Poe, Max Brod e H. G. Wells.

O primeiro brasileiro mencionado é o poeta Sérgio de Castro Pinto, que assina o “Zoo imaginário” (Escrituras, 2006). Murilo Mendes aparece em seguida, como alguém em cuja obra se pode descortinar um “pequeno zoológico pessoal” e sobre quem Menezes escreve: “Seus animais, assim, são insólitos. Alguns pertencem à sua memória de infância, outros apenas às suas divagações. Eles são distantes, alguns nem têm corpos”.

LEGADO 

Decidido a percorrer exaustivamente a obra do escritor juiz-forano, Menezes repassa, um a um, os seus livros na busca da presença dos animais e de sua significação em seu legado literário, para logo concluir: “Eles são seres insólitos, com raras caracterizações físicas, mas, sobretudo, oníricas e surrealistas – são animais metaforizados. Os seres imaginários ou mitológicos presentes (...) são combinações de animais reais com uma zoologia dos sonhos”.

É em “Poliedro” (José Olympio Editora, 1972), no entanto, que Menezes detém sua atenção, a ele dedicando um capítulo exclusivo, para apontar, inicialmente, que “essa zoologia metafísica de Mendes está calcada na influência surrealista. Os animais, os monstros e objetos animados de 'Poliedro' são desenhados, em sua maioria, a partir dessa estética”.

Quando alude aos verbetes criados por Murilo Mendes no “Setor microzoo”, o autor destaca que eles “apropriam-se da imagem do animal, ser real, físico, palpável, para interpor questionamentos e concluir por meio de aforismos, questões metafísicas ou outras relativas a preocupações filosófico-religiosas do poeta”.

Em seção posterior, Menezes identifica, finalmente, um segundo grupo de verbetes, parecidos com o primeiro, mas portadores de diferença fundamental: a presença de traços biográficos do poeta, o que autoriza o autor a cunhar, a respeito, a expressão “animais biográficos”.

Pesquisa meticulosa, o empreendimento de Menezes é aporte valioso à fortuna crítica da obra muriliana. Atento e perspicaz, o autor entrega ao público um repertório altamente qualificado sobre a relação entre a obra do poeta e os animais. Em linguagem clara e precisa, sem recurso ao hermetismo ou à empolação, conduz os leitores a um agradável e produtivo passeio pelos livros do poeta juiz-forano, renovando a admiração geral pelo que ele foi capaz de construir.

ENTRETECER O INVISÍVEL

O segundo lançamento da Coleção Libertas é assinado por Maria Silvia Duarte Guimarães. Já na introdução, é mais uma vez a epígrafe a chave adequada para a leitura do trabalho da autora: “A palavra associa o traço visível à coisa invisível, à coisa ausente, à coisa desejada ou temida, como uma frágil passarela improvisada sobre o abismo” (Italo Calvino).

Assumindo desde logo as cidades como o ponto principal de sua pesquisa, a ensaísta se interessa pelo discurso que as constrói, o que, segundo ela, possibilita diversas interpretações, dependendo de quem é o leitor. Em sua investigação, selecionou dois autores – Italo Calvino e Maria José de Queiroz – para compreender como cada um lança frágil passarela entre o visível e o invisível.

Citando a crítica que identifica o escritor italiano como alguém que dedicou sua obra a “ensinar a cidade”, Maria Silvia estabelece, aí, a primeira relação entre ele e a acadêmica mineira, que igualmente pode ser considerada “mestra de Minas Gerais”.

CARTOGRAFIAS 

Esse exercício de aproximação entre os dois escritores permeará o trabalho da pesquisadora, sempre preocupada em apurar o modo como cada um inscreve as cidades no território ficcional, o que acaba erguendo “cartografias imaginárias”, “que, simultaneamente, aparentam tocar o real e o ficcional, como se descrevessem o movimento de um pêndulo”.

No exame de “As cidades invisíveis” (Companhia das Letras, 2011), Maria Silvia reflete sobre como, no romance, se dá a elaboração ficcional do espaço, detectando alguns efeitos da comunicação entre Marco Polo e Kublai Khan, quando o viajante descreve ao imperador os lugares por ele visitados. A ambiguidade é um desses efeitos, inevitável quando a interação entre os dois se dá, majoritariamente, por meio de “gestos, saltos, gritos de maravilha e de horror, latidos e vozes de animais”.

Polo lida, de forma clara, com a ideia de que as cidades do império são possíveis, imaginadas ou sonhadas. Bem cuidado, o trabalho menciona cada uma das localidades por ele referidas, com ênfase no modo como ele as comenta, em narrativas estruturadas pelo princípio da imaginação: “(...) as descrições do viajante são ambíguas, voláteis, compostas por palavras, mas também por gestos e objetos, e as cidades que descreve existem e não existem na ficção”.

Para a ensaísta, “a literatura de Calvino parte do mundo para chegar à escrita e da escrita para alcançar a realidade. É nesse ponto de fronteira, limiar entre o escrito e o não escrito, que o escritor pressiona a ponta de sua caneta e com ela traça os contornos de seu mundo ficcional, buscando encontrar, com isso, o desconhecido e o indizível. Assim, Calvino escreve sobre o que há do outro lado das palavras, sobre o que quer ‘sair’ do silêncio, significar através da linguagem, como que dando golpes em um muro de prisão”.

MINAS  

No estudo de “Como me contaram: fábulas historiais” (Imprensa Publicações, 1973), coletânea de textos de diferentes gêneros, Maria Silvia identifica logo o território de Minas Gerais como protagonista, no enredo em que a realidade e a ficção se confundem, no que Calvino chamaria de encontro entre o mundo escrito e o não escrito. Para a pesquisadora, a escritora mineira compõe, a partir de Minas, como uma atenta cartógrafa, um mapa ficcional em que “cidades reais podem se mesclar ou se deixar enevoar por cidades ficcionais ou invisíveis”.

Assim como o escritor italiano, Maria José de Queiroz realiza, segundo Maria Silvia, “um trabalho fabulatório que consiste em entrecruzar história e ficção, em uma tentativa de reconstruir o passado histórico de Minas Gerais e da América Latina”.

Entre as principais reflexões propostas pela pesquisadora no ensaio está a de que “uma cidade não é, portanto, feita apenas do ‘material concreto’ que a sustenta, que pode ser sentido ou tocado, ou contrário, cada uma delas carrega uma carga invisível, que pode ser composta pela memória, pelos desejos ou pela imaginação de seus habitantes”. Em suas conclusões, Maria Silvia ressalta que os mapas ficcionais por ela analisados representam cartografias imaginárias que, no ato da escrita e da leitura, se afirmam como infinitas, tantas são as possibilidades que levantam.

COMPOSIÇÃO 

Rigoroso, o percurso trilhado por Maria Silvia permite ao leitor descobrir o quanto as obras de Italo Calvino e de Maria José de Queiroz se relacionam, e o quanto é rico o trabalho de composição literária a que os dois se lançam, com o talento por todos reconhecido. Em estilo leve, fluido e agradável, sem abrir mão, em nenhum instante, da complexidade do raciocínio requerido pelo seu trabalho, a autora brinda o público com uma contribuição de grande valor para o campo de sua eleição.

Assim, por tudo o que já foi dito, a Coleção Libertas se firma como o repositório adequado das melhores investigações acadêmicas empreendidas nas áreas por ela abrangidas, dando à sociedade a oportunidade de conhecer o alto nível dos pesquisadores atualmente formados pela universidade brasileira, patrimônio de que jamais abriremos mão.

*Rogério Faria Tavares é jornalista, doutor em literatura e presidente da Academia Mineira de Letras

SERVIÇO:

“ANIMAIS BIOGRÁFICOS: UM ESTUDO DE 'POLIEDRO', DE MURILO MENDES”

• De Filipe Menezes

• Grupo Editorial

• 180 páginas

•  R$ 49,90

• Contato: caravanagrupoeditorial.com.br

“TECER O VISÍVEL E ENTRETECER O INVISÍVEL: CIDADES INVISÍVEIS EM ITALO CALVINO E MARIA JOSÉ DE QUEIROZ”

• De Maria Silvia Duarte Guimarães

• Caravana Grupo Editorial

• R$ 49,90

• Contato: caravanagrupoeditorial.com.br

FONTE: Estado de Minas, 18/10, 2021 - Cultura


sábado, 16 de outubro de 2021

RESENHA

'Amor cruel, amor vingador' é para fãs de requinte e boas histórias

Reedição do livro pela Caravana Editorial torna a prosa sofisticada de Maria José de Queiroz novamente acessível

16/10/2021 04:00 - atualizado 15/10/2021 20:53


José Antônio Orlando*
Especial para o Estado de Minas

Os caminhos e descaminhos das relações amorosas são o tema do livro de Maria José de Queiroz, membro da Academia Mineira de Letras

Com nova edição, após anos fora de catálogo, a coletânea “Amor cruel, amor vingador” (Caravana Grupo Editorial) se abre com um brevíssimo prefácio muito sábio e esclarecedor sobre o amor e os amantes, escrito como um recado ao leitor, à maneira de Machado de Assis. 

Nele, a autora, Maria José de Queiroz, da Academia Mineira de Letras, alerta: “Não há negar: os trágicos gregos diagnosticaram todos os males da alma”. Aos expoentes da literatura e das ciências que vieram depois, nos séculos seguintes, ela destaca, citando Shakespeare, Dostoievski, Flaubert, Zola e Freud, apenas caberia atualizar os sintomas, porque já estava feita, desde a Antiguidade Clássica, a primeira anamnese, o primeiro diagnóstico de nossas paixões e nossos vícios.

Nas páginas seguintes, o leitor encontra cinco histórias curtas e requintadas, construídas com detalhes surpreendentes e reviravoltas que seduzem o paladar literário mais exigente, mas também agradam aos que buscam a distração da leitura sobre tramas policiais e sobre crimes de resolução mais ou menos complicada. 

O que não há aqui, nas histórias de “Amor cruel, amor vingador” são os opostos maniqueístas que o leitor se acostumou a encontrar nos noticiários: do primeiro ao último relato, ninguém é completamente bom ou mau.

Compreender as variações dos tons de cinza e as motivações do herói ou do vilão, dos culpados e dos inocentes torna-se, então, um desafio saboroso diante de cada um dos enigmas que a autora apresenta. Na primeira história do cardápio, “O juramento”, a mais extensa, feita de frases curtas, breves diálogos e revelações que imprimem fôlego e ritmo rápido à leitura, a trama avança pelas variações de caráter e das motivações ocultas nos bastidores de uma investigação policial.

ASSASSINATO  

Há um crime: o assassinato de uma viúva endinheirada; e há Pedroso, o detetive que investiga o caso, confiante no princípio de que entre a pobreza e a criminalidade não existe relação de causa e efeito. Assim como acontece nos clássicos da literatura policial, o investigador carrega seus dramas do passado, enquanto descobre as pistas e os percalços dos envolvidos. E não faltam surpresas. No desfecho, nem tudo o que reluz é ouro, mas ainda restará a sombra de uma dúvida sobre quem seria o verdadeiro culpado – dúvida que o leitor compartilha e confirma.

Em “Velho com moça nova”, a trama tem toques de humor picaresco para contar o caso de Antônio, envolvido a contragosto em um enredo de traição e morte. O caso começa com o protagonista a lembrar os conselhos do pai, que soavam como sina anunciada ou confissão de culpa: “Nunca pare nem aceite pousada em casa de velho com mulher moça”. Na aventura do matuto, desrespeitar o conselho foi como cair no redemoinho – ou como desafiar por acidente o anjo Gabriel com a balança do Juízo Final.

CARTA 

A terceira história ganha pontos já a partir do título: “Iniciação ao tratado do desespero”. Entra em cena um triângulo amoroso – uma mulher e dois homens, os três jovens universitários – com uma voz feminina narrando a trama entre aventuras ingênuas, algumas referências de filosofia e o tempo que passou rápido e dissolveu em definitivo a aproximação entre eles. O desfecho trágico vem por intermédio de uma carta de uma desconhecida, revelando uma estranha coincidência e a oportunidade para um pequeno e passageiro desespero.

O tom trágico surge novamente com toques involuntários de humor em “Ritinha Chiquê ou A hora do carvoeiro”, com o caso amargo da beata que acaba seduzindo um trabalhador braçal e, em seguida, mergulha nas águas turvas e movediças da crueldade e da vingança. Na última história, “A morte ao pé da letra”, o desfecho trágico é precedido pela calmaria e por promessas de felicidade em 1970, na Sorbonne, mas algo de patológico dos males da alma se instala na trama a partir da recriação de uma figura da mitologia grega, Antígona, de Sófocles, e retornamos aos rompantes do amor e seus avessos. 

Esta nova edição de “Amor cruel, amor vingador” vem suprir uma lacuna na extensa obra teórica, poética e ficcional publicada por Maria José de Queiroz, mineira de Belo Horizonte que completou recentemente cinco décadas na Academia Mineira de Letras. O livro teve uma primeira publicação pela Record na década de 1990, mas estava, há anos, fora de catálogo e inacessível, retornando agora pela Caravana Grupo Editorial. 

A prosa sofisticada que volta nesta nova edição tem ainda o mérito de contrariar aquele lugar-comum de que não se deve julgar um livro pela capa. O detalhe de “Ghismunda”, pintura do século 17, de Bernardino Mei, que ilustra a nova capa, traduz à perfeição as tramas do amor cruel e vingador que, nas mais variadas e corriqueiras situações, transforma em vítimas os amantes.

*José Antônio Orlando é jornalista, doutorando e mestre em letras pela Fale/UFMG

''Amor cruel, amor vingador'', de Maria José de Queiroz

. Caravana Grupo Editorial (122 págs.)

. R$ 34,90

Fonte: Jornal Estado de Minas

segunda-feira, 17 de maio de 2021

terça-feira, 4 de maio de 2021



Mestra pela UFMG publica ensaio sobre obras de Italo Calvino e Maria José de Queiroz


Maria Silvia Duarte Guimarães aproxima as cidades, suas histórias e memórias retratadas em As cidades invisíveis, de Calvino, e Como me contaram: fábulas historiais, de Queiroz

terça-feira, 27 de abril 2021, às 11h00atualizado em quinta-feira, 29 de abril 2021, às 22h37

A autora também é bacharel em Letras – Italiano, com ênfase em Estudos Literários, pela UFMG
Reprodução / Caravana Grupo Editorial

Em 1972, Italo Calvino publicou As cidades invisíveis, romance que, ainda hoje, é lembrado como a obra-prima do autor. No livro, o viajante veneziano Marco Polo descreve para o imperador Kublai Khan as cidades que visitou durante a vida. No diálogo fantástico construído por Calvino, Khan busca montar o império ideal a partir dos relatos compartilhados por Marco Polo. Um ano após o lançamento de As cidades invisíveis, Maria José de Queiroz publicou, no Brasil, a coletânea Como me contaram: fábulas historiais. Através da prosa e da poesia, a autora cria um mapa literário de Minas Gerais.

E o que essas duas obras, com histórias tão distintas, possuem em comum? É o que a mestra em Teoria da Literatura e Literatura Comparada pela UFMG Maria Silvia Guimarães busca responder em seu ensaio Tecer o visível e entretecer o invisível: as cidades invisíveis em Italo Calvino e Maria José de Queiroz. Ao aproximar os dois escritores, a autora evidencia as cidades e suas histórias, as memórias que o espaço urbano carrega e o exercício de narrar o visível e o invisível.

Em entrevista ao programa Universo Literário, a autora Maria Silvia Guimarães contou sobre o processo de elaboração do ensaio e sobre a escolha de estudar e comparar as obras de Italo Calvino e Maria José de Queiroz. Ouça a conversa com Michelle Bruck

Produção: Laura Portugal e Marden Ferreira, sob orientação de Luíza Glória

Publicação: Alessandra Dantas

Programa Universo Literário


Fonte: https://ufmg.br/comunicacao/noticias/pesquisadora-da-ufmg-publica-ensaio-sobre-obras-de-italo-calvino-e-maria-jose-de-queiroz

sexta-feira, 30 de outubro de 2020


QUEIROZ, Maria José de. Resgate do real: amor e morte.  Coimbra: Coimbra, 1978.



 






QUEIROZ, Maria José de. Como me contaram: fábulas historiais. Belo Horizonte: Imprensa, 1973.


QUEIROZ, Maria José de. Para que serve um arco-íris? Belo Horizonte: Imprensa, 1982.


 


QUEIROZ, Maria José de. Exercício de gravitação. Atlântida: Coimbra, 1972.

 


QUEIROZ, Maria José de. Exercício de levitação. Coimbra: Coimbra, 1971.

 



QUEIROZ, Maria José de. Exercício de fiandeira. Coimbra: Coimbra, 1974.
 


QUEIROZ, Maria José de. Além da porta e do trinco. In: ______. Exercício de fiandeira. Coimbra: Coimbra, 1974. p. 87.

 

 



    QUEIROZ, Maria José de. Desde longe. Belo Horizonte: Caravana Grupo Editorial, 2020.


QUEIROZ, Maria José de. Três à mesa. In: ______. Desde longe. Belo Horizonte: Caravana Grupo Editorial, 2020. p. 18-19.

terça-feira, 20 de outubro de 2020

As coisas têm alma




 

QUEIROZ, Maria José de. As coisas têm alma. In: ______. Para que serve um arco-íris? Belo Horizonte: Imprensa da UFMG, 1982. p. 17-18.



segunda-feira, 21 de setembro de 2020

Victor Hugo, um coração maior que o mundo


"Victor Hugo, que já inspirou tantos escritores brasileiros, tratou do exílio em todas as suas formas. O leitor ficará apaixonado e irá acompanhá-lo mundo afora. Se ama a beleza, nada há sobre a face da terra que se lhe assemelhe.  É um coração maior que o mundo, como o de Tomás Antonio Gonzaga, quando falava à sua Marília." (Maria José de Queiroz, 2020)
 
 

quarta-feira, 19 de agosto de 2020

O gozo impuro da comida segundo Maria José de Queiroz


O gozo impuro da comida segundo Maria José de Queiroz

Lyslei Nascimento
UFMG

Os animais pastam, o homem come; mas apenas o homem de espírito sabe comer. E quem sabe comer é gastrônomo. A dignidade da gastronomia apoia-se não só numa forte estrutura econômica, que lhe confere peso, medida e cifra, como se exalta, igualmente, no refinamento da mais imediata das funções fisiológicas. Assim, a alegria de sentar-se à mesa para responder a uma das leis da sobrevivência deve antecipar-se na leitura do cardápio, expandir-se na discussão das iguarias, concretizar-se na degustação e prolongar-se em gesto e palavra de louvor à sua forma, feitio, cor e apresentação. O conviva celebra no silencioso e recolhido ato de saborear a comida o talento do artista criador. Pouco importa o caráter efêmero da obra criada: a receita é partitura que se repete e volta a deliciar indefinidamente.
Maria José de Queiroz

Desde a Bíblia, a comida, a sedução e o pecado encontram-se entrelaçados. Há, na insubordinação de Eva, algo de tão lascivo que comer do fruto proibido tornou-se, misticamente, muito mais do que abocanhar uma vulgarmente apelidada maçã. Há, nesse encontro entre a mulher, a serpente, o fruto proibido e o homem, perigo e transgressão. Afinal, com a desobediência, deixamos de ser meros bonecos de argila e nos tornamos humanos, tendo que, com sabedoria, humor e arte, vencer nossa finitude, nossa mortalidade.
Na história de Branca de Neve, a perigosa maçã se intromete no felizes para sempre. Em vez da serpente, uma bruxa com o suculento e vermelho fruto. Em vez do tolo Adão, um príncipe para salvar Branca. Como é possível perceber, nessas histórias da carochinha, o homem é promovido de patente. A mulher de agente (do mal, é bem verdade) é rebaixada à vítima (apesar de seu duplo ser a Bruxa). Mas a maçã está lá. Linda e suculenta. Vermelha e terrível.
Se é possível acompanhar uma história da alimentação e da transgressão da Bíblia até os contos de fada – em histórias que vão de Abraão, que prepara uma ceia para os anjos que lhe anunciam o filho tão esperado; a Esaú e Jacó, que negociam a primogenitura com um prato de sopa de lentilhas; até o milagre da multiplicação dos pães e a nefasta última ceia, quando Judas recebe das mãos de Jesus um bocado de pão mergulhado em vinho – na literatura, na arte, a relação entre a comida e o gozo impuro da comida é ritual e festa.
Talvez Giuseppe Arcimboldo (1226–1593) possa iluminar, nosso olhar sobre a obra de Maria José de Queiroz. Embora o caráter sensual e, porque não dizer, impuro, esteja também presente no trabalho do grande pintor maneirista, é a multiplicidade que nos guiará. Como todos sabem, a obra do artista italiano inclui as séries “Os quatro elementos” e "As quatro estações". Nessas pinturas, ele usou, pela primeira vez, imagens da natureza, tais como frutas, verduras e flores, para compor fisionomias humanas.
A natureza compósita das figuras como estratégia de construção dirige o nosso olhar para o ensaio de Queiroz. O homem, a partir da perspectiva desses dois artista, um da imagem, outro da palavra, não é só o que come, mas, também, o que ele faz. Daí as pinturas de profissões com a mesma técnica de composição: o jardineiro, o bibliotecário e o cozinheiro.
Walter Benjamin afirma que se houvesse uma musa do romance seu emblema seria o cozinheiro. Ela eleva o mundo de seu estado bruto a fim de criar algo apto para comer, para realçar a plenitude de seu sabor. Pode-se até ler o jornal (ou, mais contemporaneamente, entrar nas redes sociais) enquanto se come, mas será possível, comer e ler um romance? Para o filósofo, essas seriam duas ações conflitantes, porque os livros não devem ser lidos da mesma maneira.
Romances existem para serem devorados, assegura o filósofo. Ler um romance é, assim, um ato voluptuoso, de absorção, não um ato de empatia. Para ele, o leitor não deve se imaginar no lugar dos personagens, mas assimilar o que acontece com eles. Desse modo, o relato vivido das experiências seria uma apetitosa guarnição em que um prato nutritivo chega à mesa. Haveria, assim, uma dieta crua de experiência – assim como há uma dieta crua para o estômago – a saber: as próprias experiências. A arte do romance, como as artes culinárias, começa além dos ingredientes crus. Quantas substâncias nutritivas existem e que não são apetitosas em estado bruto! Quantas experiências são aconselháveis para ler, mas não para ter! Alguns leitores são atingidos com tanta força que teriam sido devastados se tivessem sofrido as experiências diretamente! Assim, é preciso plantar, colher, lavar, cortar, temperar, cozer. Desse modo, uma verdadeira alquimia transforma o cru em cozido.
Voltemos às imagens compósitas de Arcimboldo e à multiplicidade para que possamos voltar à comida segundo Maria José de Queiroz. Para Italo Calvino, em suas propostas para o milênio, trata-se de multiplicidade a noção de obra como enciclopédia (ou seja, um conjunto de saberes que se articulam como um método de conhecimento, uma rede de conexões entre fatos, pessoas e coisas do mundo. Sendo assim, um rolo, uma embrulhada, um aranzel que é estruturado sem se perder ou atenuar sua complexidade inextrincável; também a presença simultânea de elementos os mais heterogêneos que concorrem para a determinação de um evento; cada objeto mínimo visto como o centro de uma rede de relações de que o escritor não consegue se esquivar, multiplicando os detalhes a ponto de suas descrições e divagações se tornarem infinitas; a leitura ou a observação de um trabalho dessa natureza constitui um modo de ler, de onde, de qualquer ponto que parta, o discurso se alarga de modo a compreender horizontes sempre mais vastos, e se pudesse desenvolver-se em todas as direções acabaria por abraçar o universo inteiro.
Nos mais de 30 livros da escritora é possível vislumbrar uma poética enciclopedista que a faz afeita aos grandes livros, aos temas universais, que terá a comida como um deles. Antes de chegar ao tema central desta exposição, a fim de demostrar o caráter enciclopédico da escritora, cito alguns títulos: A literatura encarcerada, publicado em 1981, e, em sua segunda edição (revista e atualizada), em 2019, pela Caravana Editorial, de Belo Horizonte; A literatura alucinada: do êxtase das drogas à vertigem da loucura, de 1990; A literatura e o gozo impuro da comida, publicado em 1994; A literatura do exílio, ou Os males da ausência, de 1998.
O ensaio A literatura e o gozo impuro da comida foi precedido por A cozinha e a comida: iniciação à arte de comer, publicado em 1988. Nesses dois livros, Maria José de Queiroz revela, na cozinha delirante da literatura, e sob os olhares ávidos do leitor, a mesa e suas relações com a arte, desde Homero até Pedro Nava, passando por Eça de Queirós e Machado de Assis. Do sumário à tábua de matérias, a comida é pasto para a erudição e o deleite do leitor. Como não é possível deixar de perceber, delinear a mesa a partir da literatura amplia o projeto de Eduardo Frieiro, enciclopedista precursor, que em Feijão, angu e couve, de 1982, realiza um precioso ensaio sobre a comida dos mineiros. Ao compor esse nosso cardápio, Frieiro lança as bases para a pesquisa que a discípula, posteriormente, desenvolve e à qual dá dimensões para além das montanhas de Minas.
A despeito de uma aparente singeleza (de uma singeleza sensualista, nos afirma o professor Luiz Otávio Barreto Leite), Maria José de Queiroz conjuga a pesquisa histórica (tão evidente em A literatura encarcerada) com a memória dos sentidos, tão vívidos nos cheiros, nas cores e nos sabores como em seu romance Joaquina, filha do Tiradentes. Em A literatura e o gozo impuro da comida, a ensaísta produziu uma “verdadeira reforma de compreensão dos prazeres da mesa enquanto objeto de investigação”. O estudioso chama a atenção para o fato de que somente livres do preconceito que atribui ao paladar e ao olfato condição inferior à visão e à audição é que estaremos aptos a participar do banquete da civilização. É assim que, a partir dos cinco sentidos, Queiroz promove uma reavaliação das percepções gustativa e olfativa, muito antes da avalanche de “shows de realidade”, das batalhas de bolos, incluindo os bolos de copo, de churrascos, de doces; dos livros de dietas sem glúten, com glúten; com lactose, sem lactose; com açúcar e sem açúcar; também os livros sobre alimentos macrobióticos, energéticos, detox, termogênicos, dietéticos, lights, gourmets, orgânicos, veganos, hidropônicos e funcionais... Essa assombrosa lista quase borgiana parece não ter fim.
Ao estudar a comida na literatura e o papel da gastronomia na arte da palavra, Queiroz elabora um rico painel – desde a Antiguidade clássica até o século 20 – buscando na história, na antropologia, na filosofia, na literatura e em outros tantos saberes a comida, a cozinha, a culinária, o apetite e o prazer de comer, a gula e a fome e todo um imaginário que circunscreve a alimentação. O olhar de enciclopedista da escritora – que tudo quer ver e devorar – é metódico e múltiplo.
Ao reunir textos e escritores da tradição literária a fim de explorar o tema da comida, Queiroz instaura um ponto de origem que é apresentado segundo uma lógica peculiar: ela organiza e classifica os temas por ordenação cronológica, histórica ou geográfica. Essa estratégia é pedagógica, busca, sobretudo, o ensino, mas exibe, também, o método de quem vê a história literária como um fenômeno vivo, em que uma sucessão de acontecimentos, de temas e de ideias se interrelacionam.
Por isso, sua abordagem sobre a Antiguidade na Teogonia, de Hesíodo, ou seja, no mito de Prometeu, que rouba o fogo dos deuses e dá aos homens. Pergunta a ensaísta: “Não foi o fogo que condicionou o tipo de regime destinado aos mortais?”. O castigo infligido a Prometeu, ficar amarrado a uma rocha por toda a eternidade enquanto uma águia devora-lhe o fígado, que cresce novamente no dia seguinte, remete “a fome dos mortais, jamais saciada, que renasce ao correr dos dias e das horas. Num eterno recomeçar, o estômago não lhe permite esquecer o ônus da sua condição”.
Para Hesíodo, a necessidade biológica está associada, de forma negativa, à ideia de maldição: o homem “é escravo do ventre”, “do ventre, do sono e da libertinagem”, completa Queiroz, citando Sócrates. A voracidade, a intemperança e a fome fazem com que a comida (e o ato de comer) se associe menos ao prazer do que a uma necessidade que deva ser domada ou sentida como algo incômodo.
Nos grandes poemas homéricos, Ilíada e Odisseia, a comida, ou o ventre, metonimicamente, aparece ligada a uma série de situações que cumpre finalidades especificas em uma coletividade, ora visto de modo negativo (o “ventre maldito”, o “ventre odioso”, o “ventre funesto”, “que traz tantos males”, “tantas aflições traz aos mortais”), ora desempenhando funções restauradoras do corpo e do espírito. Os banquetes festivos e fúnebres, as ceias, as reuniões em torno da mesa, a comida na cultura grega, em geral, é, para a ensaísta, ligada ainda à hospitalidade, nos quais se selavam, sobretudo, os compromissos sociais.
A mesa exerceria, assim, uma função civilizadora que, como afirma Queiroz, “alcança no simpósio de Platão a sua mais alta relevância”. A ensaísta associa a comida, agora, a sua quase e inevitável aproximação com o apetite sexual. Fome e amor se complementariam, e ela vê, no simpósio, nessa forma de encontro “inventada” por Platão, em O banquete, a transformação do vinculo mesquinho que Ulisses via nas necessidades do estômago com o novo modo como a comida, a culinária e os rituais de convivência são convertidos, sublimados, em algo que, não só remete aos prazeres do ventre quanto aos do espirito. Os textos analisados gravitam em torno de um subtema, que completa uma ideia cujo fim volta ao ponto de origem.
No posfácio, a estudiosa explicita o seu método como “um encadeamento natural que não nos permite, por exemplo, ler Pedro Nava antes de Rabelais ou Fielding antes de Cervantes. Há um fio condutor, mais do que uma ordem lógica, que une todos esses escritores: é a sua maneira de sentir. De sentir o mundo. De cheirá-lo. De sorver a vida, de devorá-la. Ou de oferecer-se como alimento e deixar-se devorar”.
Para além do saber que está inscrito no texto de Queiroz, a ensaísta cria um modo de conceber essas relações, não só dando uma amostragem do tema gastronômico na história literária, e o tratamento dado a esse tema nas grandes obras da literatura, mas rastreia essas relações (desde um suposto inicio), e faz leitor observar que há uma espécie de tradição do assunto e o tema da comida e suas diversas manifestações se apresentam como um topos literário.
Da Roma antiga, Queiroz enfoca “O banquete de Trimalquião”, fragmento do inclassificável Satíricon, de Petrônio. Nesse estudo, ela aborda as descrições detalhadas do jantar luxuoso, extravagante e decadente oferecido pelo que se poderia chamar um "novo-rico" romano. Segundo a pesquisadora, nasce, com esse texto, um gênero “explorado, com êxito, no teatro e no cinema”, como nos filmes de Luis Buñuel e Peter Greenaway”.
Nesse itinerário, Queiroz não se furta de analisar, também, uma espécie de tratado dos excessos gastronômicos que é Gargântua e Pantagruel (1532), de François Rabelais. A comida, nesse texto, reflete a infinita gula desses dois gigantes, que bebem lagos de vinho e comem rebanhos de gado. Gargântua, pai de Pantagruel, nasce em um extravagante banquete, sua mãe Gargamelle se empanturra de tripas e no meio da confusão dá à luz a Gargântua, que nasce gritando: “Beber! Beber! Beber!”. A mordaz sátira de Rabelais é descrita e analisada por Queiroz que busca acompanhar as aventuras dos dois gigantes, vendo, nos excessos alimentares, a paixão criadora, gulosa e fecunda.
Já no périplo de Lazarrilo de Tormes, de 1554, “a fome passa a ser o seu tema de estudo. Segundo a autora, “não se cuida, nesse enredo de inspiração picaresca, do requinte da mesa nem da qualidade das iguarias aí servidas. O que importa ao pobre Lázaro, guia de cego, é matar a fome.” De Quevedo, a ensaísta trata de A vida de Buscón. Também nele, a fome aparece, mas também o deleite para com a comida. O personagem fecha os olhos para melhor degustar o saboroso vinho. Um jarro é chamado de “doce e amargo jarro”. Ao contemplar pães, guardados em uma arca, chama-a de “aquela cara de Deus”, e como não podia comer os pães, enchia a arca de “mil beijos”. Desse modo, ele beija, amorosamente, o que não pode comer apontando, com essa atitude, a ato amoroso, desejo, encantamento.
Do século 19, Maria José de Queiroz estuda a gastronomia francesa. Para a ensaísta: “A obra de Balzac virá à luz. Encruzilhada gastronômica das letras, a Comédia humana abre diante do leitor o copioso cardápio francês.” Parte desse imenso roteiro gastronômico vai sendo deliciosamente descrito e analisado de forma a exibir ao leitor uma verdadeira enciclopédia da comida francesa a partir de Balzac.
Na Comédia, de Eugenie Grandet, Queiroz investiga um pecado capital: a avareza. O sovina Grandet “estendia aos gestos e às palavras a mesma parcimônia com que dirigia a economia doméstica e os negócios. Resolvia, com quatro frases curtas, todas as dificuldades da vida e do comércio: “não sei”, “não posso”, “não quero”, “veremos”. Nessa sovinice material e linguística, Queiroz observa como ela se desdobra na rebeldia da sobrinha Eugenie (e de seu amor por Charles) e da criada Nanon. O açúcar roubado da despensa do velho Grandet, por Eugenie, para adoçar o café de Charles, é, sugestivamente, aproximado à paixão pelo primo.
Na parte dedicada ao século 19 no Brasil e em Portugal, a mesa portuguesa ganha merecido espaço. Nos romances O crime do Padre Amaro, O primo Basílio, Os Maias, A ilustre casa de Ramires, As cidades e as serras, de Eça de Queirós, a ensaísta encontra o requinte do tema gastronômico no escritor português. Afinal, citando o crítico José Quitério: “nem mesmo [em] Camilo ou Aquilino – são tão constantes, copiosas, quase avassaladoras as alusões, referências, descrições e sequências de índole gastronômica”.
O século 19, no Brasil, contrariando opiniões de críticos que diziam que entre nossos escritores havia ”uma indiferença pelos prazeres da mesa”, uma “ausência do ‘senso gastronômico’”, que nossos escritores “não se detiveram muito em comezainas”, Queiroz com fartos exemplos retirados de Machado de Assis, Aluísio Azevedo, Raul Pompeia, busca corrigir essa ideia, mostrando que há na literatura brasileira um “sensualismo alimentar”, não, como “uma tradição gastronômica, à francesa”, mas que revelam que comida e linguagem se associam de forma contundente.
Machado de Assis, modelo de temperança e sobriedade, é lido e descrito a partir de uma sucessão de exemplos que trazem, ao contrário de seu comedimento, uma volúpia e uma grande delícia. Afinal, ao dedicar as memórias póstumas ao verme que lhe come as carnes, o personagem Brás Cubas dá o tom do livro: o destino do homem é comer e ser comido. Desde “o primeiro encontro de Brás Cubas com a espanhola, as metáforas alimentares condicionam-se às pulsões da libido”, escreve Queiroz. As palavras e o apetite também se juntam, em Machado, deixando vislumbrar um alto teor de sugestão carnal. Personagens que apalpam com olhos, ouvem, cheiram e gostam. “O requinte dos “temperos”, a “ternura” da carne, o “rebuscado” das formas, “o comer virgulado de palavrinhas doces”, “palavras de mel”, “línguas de rouxinol”, “peito de perdiz à milanesa”, “faisão assado”, “pastelinhos”, “compotas de marmelo”.
O libidinoso vocabulário de Machado é, assim, explorado de forma surpreendente, como uma lista de deliciosos deleites. Ela refere-se, nesse contexto, ao narrador Brás Cubas: “corria um burburinho alegre, um palavrear de estômago satisfeito; os olhos moles e úmidos, ou vivos e cálidos, espreguiçavam-se ou saltitavam de uma ponta à outra da mesa, atulhada de doces e frutas, aqui o ananás em fatias, ali o melão em talhadas, as compoteiras de cristal deixando ver o doce de coco, finamente ralado, amarelo como uma gema, – ou então o melado escuro e grosso, não longe do queijo e do cará”.
Do conto “As bodas de Luís Duarte”, ela ressalta que “o menino do conto, O Tonico, se antecipa às visitas e quer gelatina. Pra evitar uma “cena grave”, a mãe atende, contrariada o seu pedido. Satisfeito o capricho, Antonico come sem vontade: “levava uma colherada à boca, demorava-se tempo infinito rolando o conteúdo da colher entre a língua e o paladar, ao passo que a colher, empurrada por um lado formava na bochecha direita uma pequena elevação. Ao mesmo tempo agitava o pequeno as pernas de maneira que batia alternadamente na cadeira e na mesa. O mole dos olhos e o mole da gelatina, o cristal líquido deixando ver o doce, a consistência do melado, a descrição da criança mimada, primor”.
Já do século 20, Queiroz estuda o hilário e revelador conto “O peru de natal”, de Mario de Andrade; a deliciosa deglutição do Bispo Sardinha por nossos índios antropófagos, lembrada por Oswald de Andrade; a festa do apetite e dos ritos religiosos de Jorge Amado, entre outros tantos escritores mais frugais, como Érico Veríssimo e Ciro dos Anjos. Mas foi em Pedro Nava que ela viu um modelo do que seria um escritor que tratou com maestria a comida.
Para a escritora, “nenhum outro escritor brasileiro se ocupou, com maiores vagares, de nossos hábitos culinários. E como a história da sua vida, enxertada em frondosa genealogia, se arraiga em terras de Minas, mato dentro, derivando, serra abaixo, na direção do Atlântico até os confins do Ceará e do Maranhão, marcam encontro, no seu paladar, os gustemas de metade do país. Impossível passar ao largo de sua mesa. Além de abrir-nos, de leste a oeste, o mapa das cozinhas regionais, seus livros nos sugerem cardápios, reproduzem receitas seculares, divulgam tabus e mostram que podemos aspirar sem complexo, a um verbete no Larousse gastronomique. Também sabemos comer”.
A ensaísta vai descrevendo as metáforas, os símbolos, as associações e as analogias cujas imagens de comida e de bebida vão se entretecendo com as descrições que o memorialista faz da infância, da família, da sua terra. O linguajar mineiro, por exemplo, descrito por Nava é lembrado pela escritora nos seguintes termos: “os dizeres de Minas valem ouro. Suas expressões, frases feitas, são como bom-bocados do seu queijo, como um golão de cachaça escorrendo no queixos, um naco de carne de porco, de toucinho, de torresmo”.
Para Queiroz, a obra de Nava comunica em silêncio um mundo de todos os sentidos, vividos na memória e repostos no instante do presente, são madaleines proustianas que vão do caviar ao suspiro, do queijo à carne, do vinho ao beijo. De acordo com Luiz Horta, Nava seria o Proust brasileiro, se Proust não fosse tão frágil e conseguisse descrever uma feijoada como Nava o fez. Tema, aliás, recorrente também na Música Popular Brasileira.
Cozinhar, desse modo, para Maria José de Queiroz, é um milagre esperado, no lar e fora dele; escrever bem de cozinhar é excelência de receituário; escrever bem dos mistérios do paladar, de suas implicações políticas, científicas, é melhorar o convívio da espécie humana, tornando inteligível, poético, inesquecível o difícil pão de cada dia. Esse itinerário gastronômico, à maneira da multiplicidade presente na obra de Arcimboldo, instiga a leitura da obra dessa grande escritora brasileira, e, também, estimula a leitura dos grandes livros e dos grandes autores por ela elencados nesse verdadeiro cardápio literário. Porque, como afirmou Maria-Antoine Carême, “quando não houver cozinha no mundo, não haverá literatura, nem inteligência brilhante e rápida, nem inspiração, nem relações duradouras; não haverá tampouco unidade social”.

segunda-feira, 17 de agosto de 2020

Deus e os cavalos

Caballo blanco, Diego Velazquez (1634-1635)



QUEIROZ, Maria José de. Deus e os cavalos. In: ______. Para que serve um arco-íris? Belo Horizonte: Imprensa Universitária, 1982. p. 36-38.