terça-feira, 26 de outubro de 2021

Resenha

A ficção de crime em Amor cruel, amor vingador, de Maria José de Queiroz*

Crime fiction in Amor cruel, amor vingador, by Maria José de Queiroz


Christini Roman de Lima1 

1Universidade Presbiteriana Mackenzie (UPM). São Paulo, SP, Brasil.

E-mail: christiniroman@gmail.com


Amor cruel, amor vingador é o segundo livro de contos de uma série de obras produzidas pela autora e pesquisadora mineira Maria José de Queiroz. Ela estreou como ficcionista, em 1973, com Como me contaram. Fábulas historiais. É autora de sete romances, sete livros de poemas, duas obras de literatura infantojuvenil, dois livros de memórias e, aproximadamente, 15 volumes ensaísticos. Amor cruel, amor vingador foi publicado em 1996 e relançado em maio de 2021, pela editora Caravana Grupo Editorial. A obra traz como ponto de convergência das histórias a Ficção de crimes, crimes esses motivados (como o título explicita) por sentimentos desmedidos, convertidos na maior parte das vezes em crimes passionais.

O crime, a morte, o assassinato e o suicídio, temas centrais dos contos, sempre fascinaram as pessoas. Conforme Julio França e Pedro Pure Sasse (2016), o crime esteve presente na literatura ocidental desde o Antigo Testamento, passando pelas tragédias gregas e, ao final do século XVIII, pelos registros do Newgate Calendar. A Ficção de Crime, no entanto, será vista como um gênero literário em meados do século XIX, abrangendo características próprias. A literatura policial, tema menos abrangente que a ficção de crime, foi concebida, segundo Fernanda Massi (2011), por Edgar Allan Poe através do detetive Auguste Dupin, protagonista dos contos “Os crimes da rua Morgue”, de 1841; “O mistério de Marie Roget”, de 1842 e “A carta roubada”, de 1845. 

França e Sasse (2016) apontam que, antes do advento de Dupin ou de Sherlock Holmes, de Arthur Conan Doyle, a literatura de crime era muito popular na Inglaterra, sendo o Newgate Calendar a mais emblemática das suas publicações. Esse Calendar era, originalmente, constituído como um boletim da prisão de Newgate que continha informes sobre os novos prisioneiros, seus crimes, o procedimento da detenção, o julgamento e a punição estabelecida.

Essas narrativas, segundo os autores, poderiam ser vistas como antecessoras tanto da literatura policial, como também do romance de sensação britânico, uma vez que o núcleo narrativo consistia em um crime “frequentemente assassinato como uma consequência do adultério e, algumas vezes, da bigamia, nos aparentemente mais respeitáveis e burgueses ambientes domésticos” (BRANTLINGER, apud FRANÇA; SASSE, 2016, p. 81). Alessandra El Far (2004) destaca que, no Brasil, o termo “sensação” era muito utilizado no século XIX, aludindo a situações inesperadas e assustadoras. Segundo a autora, a literatura de sensação consistia em tramas conflituosas e com mortes violentas, crimes terríveis ou eventos imprevisíveis. Álvaro Lins (1954, p. 11) destaca que o romance policial provoca no leitor uma evasão, uma inversão de realidades em que o leitor adentra em um “universo de natureza anormal, o do crime”, o qual apaixona os leitores não apenas pelo fora do comum, mas pela “ligação secreta com este mundo de horrores, operada nas circunstâncias de que no homem mais virtuoso ou tímido existe a possibilidade de praticar o ato anormal do criminoso”.

Maria José de Queiroz (1996) aponta no prefácio “Leitor” que, nas histórias dos contos, “o amor e a morte impõem uma forma de vida, estabelecem a lógica interna dos relatos ao mesmo tempo que enovelam as tramas dos cinco enredos” (p. 13). Amor cruel, amor vingador é composto, portanto, por cinco contos: “O juramento”, “Velho com mulher moça”, “Iniciação ao Tratado do desespero”, “Ritinha-Chiquê ou A hora do carvoeiro” e “A morte ao da letra”. Os enredos do livro de Queiroz trazem, dessa forma, sujeitos que são arrastados pelos excessos de seus sentimentos desmedidos. A autora destaca (p. 11) que:

"Nas
cinco histórias de amor cruel e amor vingador recolhidas neste pequeno volume [...] a vítima se converte em culpado ou vice-versa. Descobri ao epílogo de “A morte ao da letra”, que a tragédia de Sófocles poderia servir de script, em sucessivas versões, ao projeto homicida ou suicida desse ou daquele protagonista. E tudo dependeria da identificação do leitor com seu duplo o herói que lhe propiciasse a desejada catarse." (p. 13)

“O juramento” é o conto ou, como a autora adverte, tendo como parâmetro o neologismo criado por Miguel de Unamuno, a nivola que abre a compilação. Essa história é a mais longa do livro; narrada em terceira pessoa, ela aborda em seu entrecho o assassinato de uma viúva herdeira de um rico espólio. A trama converge em torno do homicídio, da investigação policial e de suas idas e vindas em torno do suspeito principal, o enteado da vítima, Raimundo Silva Guimarães que não ficara satisfeito com a distribuição das propriedades feita pelo pai em testamento, principalmente sobre uma casa de campo de que a madrasta era a usufrutuária.

O segundo conto intitula-se “Velho com mulher moça”. A narrativa autodiegética foca-se na história de um homem humilde, Antônio, que deixa a fazenda dos pais, em Bocaina (Minas Gerais), e testemunha o homicídio do dono do local em que pernoita. Depois de um mês trabalhando em uma fazenda próxima à localidade do crime, Antônio encontra um advogado que estava na região para o inquérito da morte de Raimundo Rodrigues, o idoso que fora assassinado. A coincidência leva Antônio a tornar-se testemunha do caso e a ajudar a desvendar a autoria e motivação do crime.

O conto que segmento ao livro é “Iniciação ao Tratado do desespero”, e ele difere dos demais, porque não aborda um caso de crime e sua elucidação, mas um suicídio. A perspectiva abrange um “triângulo afetivo” formado por dois rapazes e a narradora do conto: Aluísio, Cláudio e Ruth. A amizade se desenvolve nos tempos da faculdade, nos anos de 1953, quando os jovens estavam envoltos pelo Existencialismo em voga e imersos, sobretudo, no filósofo “nebuloso” Kierkegaard: “foi ele que definitivamente nos uniu [...], fascinados que estávamos pelas suas lições de desespero e angústia” (p. 116). Os anos passaram, os amigos se distanciaram e não mais se viram, até Ruth ter a notícia de que Cláudio Sampaio tirara a própria vida. A narradora descobre que Cláudio não se conformara por não ter tido filhos e negara-se terminantemente à adoção. Um recém-nascido, no entanto, foi deixado na porta de sua casa em uma quinta-feira da Semana Santa. A criança chamava-se Aluísio. A esposa de Cláudio, Rosalva, levou o bebê ao juizado de menores e, concomitantemente, Cláudio “suicidou-se dentro da Igreja da Matriz de Belém do Pará, numa segunda-feira de Páscoa” (p. 120). A mulher, após a morte do marido, adotou uma menina a quem deu o nome de Ruth. Os filhos, mesmo que indesejados, repetiam os nomes dos amigos de outrora, mas o “triângulo afetivo” jamais se restituiu.

O quinto conto de Amor cruel, amor vingador é “Ritinha-Chiquê ou a hora do carvoeiro”. A história é narrada por dois narradores homodiegéticos. A intriga concentra-se, portanto, em uma conversa sobre a morte de um carvoeiro pelas mãos de Ritinha, a Ritinha-Miséria. Expedito, o barbeiro da cidade, fala com Miguel Costa sobre o assassinato, enquanto escanhoa sua barba. Expedito comenta a condição social da personagem (era filha única de um fazendeiro do Alto-Paraíba, herdeira de muitos bens e propriedades) e como ela passou de menina educada em colégio interno de freiras a “beata maluca”. Ele busca convencer o cliente de que o crime fora cometido, porque o homem tentara roubar Ritinha. Miguel Costa, de barba feita, toma a palavra e expõe a sua versão sobre o crime falando de modo categórico: “Você é mesmo expedito na navalha. Crime é comigo, barbeiro! Conto-lhe agora, o que, de fato, ocorreu, e como” (p. 128). A personagem assassinara o carvoeiro, porque, após manterem repetidas relações sexuais, ele se negara a continuar satisfazendo os desejos da “beata”. Ritinha teria matado o homem, assim, para impedir sua fuga. O conto, portanto, apresenta duas versões do crime, mas não se sabe qual exposição é mais confiável.

O último conto da coletânea é “A morte ao da letra”. A história é narrada em primeira pessoa por uma professora do Instituto de Estudos Portugueses e Brasileiros da Universidade Sorbonne e aborda a relação mantida entre essa narradora e um jovem pesquisador, Pierre Mouzon, a quem ela orientara no período e que, anos mais tarde, acabara cometendo uma atrocidade. A professora destaca que a relação de amizade e orientação se manteve mesmo depois de o jovem ter concluído seu doutorado, de estar estabelecido e, também, de ela ter retornado ao Brasil. Pierre dedicava-se a escrever uma nova versão de Antígona, peça que lia incansavelmente por telefone para a antiga orientadora. Ao final da tragédia reescrita, o jovem converte as personagens em pessoas que lhe eram próximas: “Creonte é meu pai, eu sou Hemom, Antígona é Mademoiselle Sebbar e Eurídice é minha mãe” (p. 136) aspecto que, de certo modo, intrigou a ouvinte, mas que se desvaneceu entre os seus afazeres. Meses depois, no entanto, ela recebeu uma carta com a notícia da tragédia real ocorrida com Pierre e sua família: o pai morrera, suspeitando-se homicídio, e, pouco depois, o jovem matara a namorada e se suicidara. A representação literária, lida para a narradora, tornou-se script do ato final premeditado por Pierre.

Os contos do livro de Maria José de Queiroz estão envoltos, portanto, em assassinatos ou suicídios –, mas apenas as duas primeiras histórias, sobretudo a “nivola” “O juramento”, podem ser elencadas à literatura policial, uma vez que apresentam aspectos próprios ao gênero, tais como a figura do detetive e o mistério circunscrito ao crime e a sua resolução. Segundo Fernanda Massi (2011, p. 15), o detetive se estabeleceu como “figura principal e indispensável de qualquer narrativa” considerada policial. Não bastaria, no entanto, que o detetive figurasse como tema, ele teria de ser “o núcleo do enredo”, o agente da investigação: “A investigação, portanto, deve existir a partir de um crime e, este, a partir de uma vítima e de um criminoso” (MASSI, 2011, p. 15). As demais tramas de Maria José de Queiroz, no entanto, enquadrar-se-iam na categoria mais ampla da ficção de crime.

Na literatura brasileira, conforme Julio França e Pedro Puro Sasse (2016), o protagonismo do detetive perde espaço para o do criminoso. Essa literatura em que o crime é o impulsionador da trama tem expoentes nas letras nacionais desde Memórias de um condenado e Mistério da Tijuca, de Aluísio Azevedo (publicados no início da década de 1880 e modificados em 1900 e 1901, o primeiro tornando- se Girândola de amores, e o segundo, A condessa Vésper), passando pela literatura de sensação, tal como Elzira, a Morta Virgem, escrita por Pedro Ribeiro Vianna e publicada em 1883 (EL FAR, 2011) e chegando à literatura contemporânea com, por exemplo, O cobrador, de Rubem Fonseca, publicado em 1979, e com O matador, de Patrícia Melo, publicado em 1995.

A literatura policial, assim como a ficção de crime, passou, desse modo, de uma literatura considerada menor, a um gênero que se estabeleceu no mundo literário e que teve muitos autores consagrados aventurando-se por seus meandros (VILAS-BOAS, 2015). Maria José de Queiroz insere seu Amor cruel, amor vingador nesse índice de intrigas repletas de sensações surpreendentes e assombrosas; sensações essas que causam fascínio em leitores de todos os tempos.


REFERÊNCIAS

EL FAR, Alessandra. Páginas de sensação: literatura popular e pornográfica no Rio de Janeiro (1870-1924). São Paulo: Companhia das Letras, 2004.

EL FAR, Alessandra. Os romances de que o povo gosta: o universo das narrativas populares de finais do século XIX. Floema (Caderno de Teoria e História Literária), Ano VII, n. 9, p. 11-31, jul./dez. 2011. Disponível em: https://periodicos2.uesb.br/index.php/floema/article/view/1814. Acesso em: 18 ago 2021.

FRANÇA, Julio; SASSE Pedro Puro. O Fascínio do Crime: João do Rio e as Raízes da Literatura Policial no Brasil. In.: VIEGAS, Ana Cristina Coutinho; PONTES JR., Geraldo; MARQUES, Jorge Luiz (Orgs.). Configurações da Narrativa Policial. Rio de Janeiro: Dialogarts Publicações, 2016. Disponível em: http:// www.dialogarts.uerj.br/arquivos/livro_narrativa_policial.pdf#page=71. Acesso em: 18 ago 2021.

LINS, Álvaro. No mundo do romance policial. São Paulo: Ministério da Educação e Saúde: Serviço de documentação, 1954. Disponível em: https://kupdf.net/download/alvaro-lins-no-mundo-do-romance-pol icial_59f3c846e2b6f5904e0cd51f_pdf. Acesso em: 19 ago 2021.


MASSI, Fernanda. O romance policial do século XXI: manutenção, transgressão e inovação do gênero. São Paulo: Cultura Acadêmica, 2011. (Coleção PROPG Digital UNESP). ISBN 9788579832130. Disponível em: http://hdl.handle.net/11449/109189. Acesso em: 18 ago 2021.

QUEIROZ, Maria José de. Amor cruel, amor vingador. Belo Horizonte, Minas Gerais: Caravana Grupo Editorial, 2021.

VILAS-BOAS, Gonçalo. O crime na literatura. Observatório: De África, América Latina e Caraíbas Outras literaturas: Policial. Universidade do Porto: Repositório Aberto. Disponível em: https://repositorio-aberto. up.pt/bitstream/10216/78758/2/101272.pdf. Acesso em: 18 ago 2021.

Fonte:  https://revista.abralic.org.br/index.php/revista/article/view/718/922

doi: https://doi.org/10.1590/2596-304x20212344crl

 

ISSN 0103-6963 e-ISSN 2596-304X


editor-chefe:

Gerson Roberto Neumann

editor executivo:

Regina Zilberman


como citar:


LIMA, Christini Roman de. 

A ficção de crime em Amor cruel, amor vingador, de Maria José de Queiroz. Revista Brasileira 

de Literatura Comparada, v. 23, n. 44, p. 265-269, set.-dez., 2021. doi: https:// doi.org/10.1590/2596-304x20212344crl


http:// www.scielo.br/rblc https://revista.abralic.org.br


* Resenha a QUEIROZ, Maria José de. Amor cruel, amor vingador. Belo Horizonte, Minas Gerais: Caravana Grupo Editorial, 2021.


terça-feira, 19 de outubro de 2021

LITERATURA

Ensaios lançam luz sobre livros de Murilo Mendes e Maria José de Queiroz

(foto: Fernando Lopes/CB/D.A Press)

Lançamentos de Filipe Menezes e Maria Silvia Duarte Guimarães oferecem outro olhar sobre 'Poliedro' e 'Como me contaram: fábulas historiais'

Rogério Faria Tavares - Esp. para o EM

18/10/2021 04:00 - atualizado 18/10/2021 07:30

"A zoologia metafísica de Murilo Mendes está calcada na influência surrealista. Os animais, os monstros e objetos animados de 'Poliedro' são desenhados, em sua maioria, a partir dessa estética" "Maria José de Queiroz compõe, a partir de Minas, como uma atenta cartógrafa, um mapa ficcional em que cidades reais podem se mesclar ou se deixar enevoar por cidades ficcionais ou invisíveis"

Lançada pela Caravana Grupo Editorial, a Coleção Libertas é dedicada à publicação de ensaios sobre literatura, cinema, fotografia, teatro, música e televisão. Entre os títulos já editados estão “A literatura encarcerada”, de Maria José de Queiroz, e “Línguas em trânsito”, de Lyslei Nascimento e Neide Nagae.

Agora, vêm à lume dois novos livros: “Animais biográficos: um estudo de 'Poliedro', de Murilo Mendes” e “Tecer o visível e entretecer o invisível: cidades invisíveis em Italo Calvino e Maria José de Queiroz”, ambos resultantes de dissertações de mestrado defendidas junto ao Programa de Pós-graduação em Letras: Estudos Literários da Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG), sob a orientação de Lyslei Nascimento.

ANIMAIS BIOGRÁFICOS

O primeiro ensaio é de autoria de Filipe Menezes, mestre em letras pela UFMG, mestre em administração pública pela Fundação João Pinheiro e, atualmente, doutorando em letras e estudos literários pela UFMG. Uma das epígrafes, assinada em 1956 por Eduardo Frieiro, situa devidamente o tema: “Os animais na literatura são velhos como a própria literatura”.

Motivado por essa reflexão, o pesquisador optou por começar a sua investigação pelos registros mais antigos a respeito dos bichos. Em suas incursões pelas primeiras fontes, chegou a Aristóteles, a Plínio, o Velho, e a Claudius Aelianus, referências incontornáveis para todos os estudos que, posteriormente, pretenderam nomear e classificar animais.

Identificando as variadas influências sofridas, ao longo dos séculos, pelos que escreveram sobre o assunto, Menezes mostra como a ciência, a religião e a mitologia se encontram em tais trabalhos, a eles conferindo uma inegável proximidade com a literatura de ficção.

BESTIÁRIO 

Principal precursor do gênero “bestiário”, largamente difundido na Idade Média, “Physiologus”, de origem desconhecida, fazia algumas descrições legendárias de animais e foi amplamente utilizado com a finalidade de ensinar teologia e moral, tendo na “Bíblia” uma de suas inspirações principais.

Os bestiários são considerados versões adaptadas do “Physiologus”, mas acolhem e recombinam contribuições de procedências diversas. Como ressalta Menezes, “com o passar do tempo, os verbetes foram reinventados, sendo revistos e adaptados por vários autores, dando origem a outros textos nos quais os animais ocupam outros contextos. Nestes, a vida dos animais e suas características e hábitos reinscrevem conteúdos variados, diferentes da ênfase na moral e na religião”.

Já os chamados “zoológicos textuais”, como explica o autor, “carregam um complexo sistema semântico, com algumas características trazidas dos zoológicos reais, como os sentidos de reclusão dos animais e o domínio do homem sobre eles, o autoespelhar do visitante nos animais expostos em suas jaulas ou simulacros de hábitat, a intenção de divertir e, em alguns textos mais recentes, o afã de educar e se preocupar com a conservação do meio ambiente. Os zoológicos textuais, assim, são metáforas dos bestiários, recriados para absorver os variados significados que carregam os zoológicos e aquários reais”.

É a Jorge Luis Borges que Menezes recorre para abordar como a literatura moderna e contemporânea apresenta os animais. Guiado pelo escritor argentino, o ensaísta visita Emanuel Swedenborg, Franz Kafka, Lewis Caroll, Edgar Allan Poe, Max Brod e H. G. Wells.

O primeiro brasileiro mencionado é o poeta Sérgio de Castro Pinto, que assina o “Zoo imaginário” (Escrituras, 2006). Murilo Mendes aparece em seguida, como alguém em cuja obra se pode descortinar um “pequeno zoológico pessoal” e sobre quem Menezes escreve: “Seus animais, assim, são insólitos. Alguns pertencem à sua memória de infância, outros apenas às suas divagações. Eles são distantes, alguns nem têm corpos”.

LEGADO 

Decidido a percorrer exaustivamente a obra do escritor juiz-forano, Menezes repassa, um a um, os seus livros na busca da presença dos animais e de sua significação em seu legado literário, para logo concluir: “Eles são seres insólitos, com raras caracterizações físicas, mas, sobretudo, oníricas e surrealistas – são animais metaforizados. Os seres imaginários ou mitológicos presentes (...) são combinações de animais reais com uma zoologia dos sonhos”.

É em “Poliedro” (José Olympio Editora, 1972), no entanto, que Menezes detém sua atenção, a ele dedicando um capítulo exclusivo, para apontar, inicialmente, que “essa zoologia metafísica de Mendes está calcada na influência surrealista. Os animais, os monstros e objetos animados de 'Poliedro' são desenhados, em sua maioria, a partir dessa estética”.

Quando alude aos verbetes criados por Murilo Mendes no “Setor microzoo”, o autor destaca que eles “apropriam-se da imagem do animal, ser real, físico, palpável, para interpor questionamentos e concluir por meio de aforismos, questões metafísicas ou outras relativas a preocupações filosófico-religiosas do poeta”.

Em seção posterior, Menezes identifica, finalmente, um segundo grupo de verbetes, parecidos com o primeiro, mas portadores de diferença fundamental: a presença de traços biográficos do poeta, o que autoriza o autor a cunhar, a respeito, a expressão “animais biográficos”.

Pesquisa meticulosa, o empreendimento de Menezes é aporte valioso à fortuna crítica da obra muriliana. Atento e perspicaz, o autor entrega ao público um repertório altamente qualificado sobre a relação entre a obra do poeta e os animais. Em linguagem clara e precisa, sem recurso ao hermetismo ou à empolação, conduz os leitores a um agradável e produtivo passeio pelos livros do poeta juiz-forano, renovando a admiração geral pelo que ele foi capaz de construir.

ENTRETECER O INVISÍVEL

O segundo lançamento da Coleção Libertas é assinado por Maria Silvia Duarte Guimarães. Já na introdução, é mais uma vez a epígrafe a chave adequada para a leitura do trabalho da autora: “A palavra associa o traço visível à coisa invisível, à coisa ausente, à coisa desejada ou temida, como uma frágil passarela improvisada sobre o abismo” (Italo Calvino).

Assumindo desde logo as cidades como o ponto principal de sua pesquisa, a ensaísta se interessa pelo discurso que as constrói, o que, segundo ela, possibilita diversas interpretações, dependendo de quem é o leitor. Em sua investigação, selecionou dois autores – Italo Calvino e Maria José de Queiroz – para compreender como cada um lança frágil passarela entre o visível e o invisível.

Citando a crítica que identifica o escritor italiano como alguém que dedicou sua obra a “ensinar a cidade”, Maria Silvia estabelece, aí, a primeira relação entre ele e a acadêmica mineira, que igualmente pode ser considerada “mestra de Minas Gerais”.

CARTOGRAFIAS 

Esse exercício de aproximação entre os dois escritores permeará o trabalho da pesquisadora, sempre preocupada em apurar o modo como cada um inscreve as cidades no território ficcional, o que acaba erguendo “cartografias imaginárias”, “que, simultaneamente, aparentam tocar o real e o ficcional, como se descrevessem o movimento de um pêndulo”.

No exame de “As cidades invisíveis” (Companhia das Letras, 2011), Maria Silvia reflete sobre como, no romance, se dá a elaboração ficcional do espaço, detectando alguns efeitos da comunicação entre Marco Polo e Kublai Khan, quando o viajante descreve ao imperador os lugares por ele visitados. A ambiguidade é um desses efeitos, inevitável quando a interação entre os dois se dá, majoritariamente, por meio de “gestos, saltos, gritos de maravilha e de horror, latidos e vozes de animais”.

Polo lida, de forma clara, com a ideia de que as cidades do império são possíveis, imaginadas ou sonhadas. Bem cuidado, o trabalho menciona cada uma das localidades por ele referidas, com ênfase no modo como ele as comenta, em narrativas estruturadas pelo princípio da imaginação: “(...) as descrições do viajante são ambíguas, voláteis, compostas por palavras, mas também por gestos e objetos, e as cidades que descreve existem e não existem na ficção”.

Para a ensaísta, “a literatura de Calvino parte do mundo para chegar à escrita e da escrita para alcançar a realidade. É nesse ponto de fronteira, limiar entre o escrito e o não escrito, que o escritor pressiona a ponta de sua caneta e com ela traça os contornos de seu mundo ficcional, buscando encontrar, com isso, o desconhecido e o indizível. Assim, Calvino escreve sobre o que há do outro lado das palavras, sobre o que quer ‘sair’ do silêncio, significar através da linguagem, como que dando golpes em um muro de prisão”.

MINAS  

No estudo de “Como me contaram: fábulas historiais” (Imprensa Publicações, 1973), coletânea de textos de diferentes gêneros, Maria Silvia identifica logo o território de Minas Gerais como protagonista, no enredo em que a realidade e a ficção se confundem, no que Calvino chamaria de encontro entre o mundo escrito e o não escrito. Para a pesquisadora, a escritora mineira compõe, a partir de Minas, como uma atenta cartógrafa, um mapa ficcional em que “cidades reais podem se mesclar ou se deixar enevoar por cidades ficcionais ou invisíveis”.

Assim como o escritor italiano, Maria José de Queiroz realiza, segundo Maria Silvia, “um trabalho fabulatório que consiste em entrecruzar história e ficção, em uma tentativa de reconstruir o passado histórico de Minas Gerais e da América Latina”.

Entre as principais reflexões propostas pela pesquisadora no ensaio está a de que “uma cidade não é, portanto, feita apenas do ‘material concreto’ que a sustenta, que pode ser sentido ou tocado, ou contrário, cada uma delas carrega uma carga invisível, que pode ser composta pela memória, pelos desejos ou pela imaginação de seus habitantes”. Em suas conclusões, Maria Silvia ressalta que os mapas ficcionais por ela analisados representam cartografias imaginárias que, no ato da escrita e da leitura, se afirmam como infinitas, tantas são as possibilidades que levantam.

COMPOSIÇÃO 

Rigoroso, o percurso trilhado por Maria Silvia permite ao leitor descobrir o quanto as obras de Italo Calvino e de Maria José de Queiroz se relacionam, e o quanto é rico o trabalho de composição literária a que os dois se lançam, com o talento por todos reconhecido. Em estilo leve, fluido e agradável, sem abrir mão, em nenhum instante, da complexidade do raciocínio requerido pelo seu trabalho, a autora brinda o público com uma contribuição de grande valor para o campo de sua eleição.

Assim, por tudo o que já foi dito, a Coleção Libertas se firma como o repositório adequado das melhores investigações acadêmicas empreendidas nas áreas por ela abrangidas, dando à sociedade a oportunidade de conhecer o alto nível dos pesquisadores atualmente formados pela universidade brasileira, patrimônio de que jamais abriremos mão.

*Rogério Faria Tavares é jornalista, doutor em literatura e presidente da Academia Mineira de Letras

SERVIÇO:

“ANIMAIS BIOGRÁFICOS: UM ESTUDO DE 'POLIEDRO', DE MURILO MENDES”

• De Filipe Menezes

• Grupo Editorial

• 180 páginas

•  R$ 49,90

• Contato: caravanagrupoeditorial.com.br

“TECER O VISÍVEL E ENTRETECER O INVISÍVEL: CIDADES INVISÍVEIS EM ITALO CALVINO E MARIA JOSÉ DE QUEIROZ”

• De Maria Silvia Duarte Guimarães

• Caravana Grupo Editorial

• R$ 49,90

• Contato: caravanagrupoeditorial.com.br

FONTE: Estado de Minas, 18/10, 2021 - Cultura


sábado, 16 de outubro de 2021

RESENHA

'Amor cruel, amor vingador' é para fãs de requinte e boas histórias

Reedição do livro pela Caravana Editorial torna a prosa sofisticada de Maria José de Queiroz novamente acessível

16/10/2021 04:00 - atualizado 15/10/2021 20:53


José Antônio Orlando*
Especial para o Estado de Minas

Os caminhos e descaminhos das relações amorosas são o tema do livro de Maria José de Queiroz, membro da Academia Mineira de Letras

Com nova edição, após anos fora de catálogo, a coletânea “Amor cruel, amor vingador” (Caravana Grupo Editorial) se abre com um brevíssimo prefácio muito sábio e esclarecedor sobre o amor e os amantes, escrito como um recado ao leitor, à maneira de Machado de Assis. 

Nele, a autora, Maria José de Queiroz, da Academia Mineira de Letras, alerta: “Não há negar: os trágicos gregos diagnosticaram todos os males da alma”. Aos expoentes da literatura e das ciências que vieram depois, nos séculos seguintes, ela destaca, citando Shakespeare, Dostoievski, Flaubert, Zola e Freud, apenas caberia atualizar os sintomas, porque já estava feita, desde a Antiguidade Clássica, a primeira anamnese, o primeiro diagnóstico de nossas paixões e nossos vícios.

Nas páginas seguintes, o leitor encontra cinco histórias curtas e requintadas, construídas com detalhes surpreendentes e reviravoltas que seduzem o paladar literário mais exigente, mas também agradam aos que buscam a distração da leitura sobre tramas policiais e sobre crimes de resolução mais ou menos complicada. 

O que não há aqui, nas histórias de “Amor cruel, amor vingador” são os opostos maniqueístas que o leitor se acostumou a encontrar nos noticiários: do primeiro ao último relato, ninguém é completamente bom ou mau.

Compreender as variações dos tons de cinza e as motivações do herói ou do vilão, dos culpados e dos inocentes torna-se, então, um desafio saboroso diante de cada um dos enigmas que a autora apresenta. Na primeira história do cardápio, “O juramento”, a mais extensa, feita de frases curtas, breves diálogos e revelações que imprimem fôlego e ritmo rápido à leitura, a trama avança pelas variações de caráter e das motivações ocultas nos bastidores de uma investigação policial.

ASSASSINATO  

Há um crime: o assassinato de uma viúva endinheirada; e há Pedroso, o detetive que investiga o caso, confiante no princípio de que entre a pobreza e a criminalidade não existe relação de causa e efeito. Assim como acontece nos clássicos da literatura policial, o investigador carrega seus dramas do passado, enquanto descobre as pistas e os percalços dos envolvidos. E não faltam surpresas. No desfecho, nem tudo o que reluz é ouro, mas ainda restará a sombra de uma dúvida sobre quem seria o verdadeiro culpado – dúvida que o leitor compartilha e confirma.

Em “Velho com moça nova”, a trama tem toques de humor picaresco para contar o caso de Antônio, envolvido a contragosto em um enredo de traição e morte. O caso começa com o protagonista a lembrar os conselhos do pai, que soavam como sina anunciada ou confissão de culpa: “Nunca pare nem aceite pousada em casa de velho com mulher moça”. Na aventura do matuto, desrespeitar o conselho foi como cair no redemoinho – ou como desafiar por acidente o anjo Gabriel com a balança do Juízo Final.

CARTA 

A terceira história ganha pontos já a partir do título: “Iniciação ao tratado do desespero”. Entra em cena um triângulo amoroso – uma mulher e dois homens, os três jovens universitários – com uma voz feminina narrando a trama entre aventuras ingênuas, algumas referências de filosofia e o tempo que passou rápido e dissolveu em definitivo a aproximação entre eles. O desfecho trágico vem por intermédio de uma carta de uma desconhecida, revelando uma estranha coincidência e a oportunidade para um pequeno e passageiro desespero.

O tom trágico surge novamente com toques involuntários de humor em “Ritinha Chiquê ou A hora do carvoeiro”, com o caso amargo da beata que acaba seduzindo um trabalhador braçal e, em seguida, mergulha nas águas turvas e movediças da crueldade e da vingança. Na última história, “A morte ao pé da letra”, o desfecho trágico é precedido pela calmaria e por promessas de felicidade em 1970, na Sorbonne, mas algo de patológico dos males da alma se instala na trama a partir da recriação de uma figura da mitologia grega, Antígona, de Sófocles, e retornamos aos rompantes do amor e seus avessos. 

Esta nova edição de “Amor cruel, amor vingador” vem suprir uma lacuna na extensa obra teórica, poética e ficcional publicada por Maria José de Queiroz, mineira de Belo Horizonte que completou recentemente cinco décadas na Academia Mineira de Letras. O livro teve uma primeira publicação pela Record na década de 1990, mas estava, há anos, fora de catálogo e inacessível, retornando agora pela Caravana Grupo Editorial. 

A prosa sofisticada que volta nesta nova edição tem ainda o mérito de contrariar aquele lugar-comum de que não se deve julgar um livro pela capa. O detalhe de “Ghismunda”, pintura do século 17, de Bernardino Mei, que ilustra a nova capa, traduz à perfeição as tramas do amor cruel e vingador que, nas mais variadas e corriqueiras situações, transforma em vítimas os amantes.

*José Antônio Orlando é jornalista, doutorando e mestre em letras pela Fale/UFMG

''Amor cruel, amor vingador'', de Maria José de Queiroz

. Caravana Grupo Editorial (122 págs.)

. R$ 34,90

Fonte: Jornal Estado de Minas

segunda-feira, 17 de maio de 2021

terça-feira, 4 de maio de 2021



Mestra pela UFMG publica ensaio sobre obras de Italo Calvino e Maria José de Queiroz


Maria Silvia Duarte Guimarães aproxima as cidades, suas histórias e memórias retratadas em As cidades invisíveis, de Calvino, e Como me contaram: fábulas historiais, de Queiroz

terça-feira, 27 de abril 2021, às 11h00atualizado em quinta-feira, 29 de abril 2021, às 22h37

A autora também é bacharel em Letras – Italiano, com ênfase em Estudos Literários, pela UFMG
Reprodução / Caravana Grupo Editorial

Em 1972, Italo Calvino publicou As cidades invisíveis, romance que, ainda hoje, é lembrado como a obra-prima do autor. No livro, o viajante veneziano Marco Polo descreve para o imperador Kublai Khan as cidades que visitou durante a vida. No diálogo fantástico construído por Calvino, Khan busca montar o império ideal a partir dos relatos compartilhados por Marco Polo. Um ano após o lançamento de As cidades invisíveis, Maria José de Queiroz publicou, no Brasil, a coletânea Como me contaram: fábulas historiais. Através da prosa e da poesia, a autora cria um mapa literário de Minas Gerais.

E o que essas duas obras, com histórias tão distintas, possuem em comum? É o que a mestra em Teoria da Literatura e Literatura Comparada pela UFMG Maria Silvia Guimarães busca responder em seu ensaio Tecer o visível e entretecer o invisível: as cidades invisíveis em Italo Calvino e Maria José de Queiroz. Ao aproximar os dois escritores, a autora evidencia as cidades e suas histórias, as memórias que o espaço urbano carrega e o exercício de narrar o visível e o invisível.

Em entrevista ao programa Universo Literário, a autora Maria Silvia Guimarães contou sobre o processo de elaboração do ensaio e sobre a escolha de estudar e comparar as obras de Italo Calvino e Maria José de Queiroz. Ouça a conversa com Michelle Bruck

Produção: Laura Portugal e Marden Ferreira, sob orientação de Luíza Glória

Publicação: Alessandra Dantas

Programa Universo Literário


Fonte: https://ufmg.br/comunicacao/noticias/pesquisadora-da-ufmg-publica-ensaio-sobre-obras-de-italo-calvino-e-maria-jose-de-queiroz

sexta-feira, 30 de outubro de 2020


QUEIROZ, Maria José de. Resgate do real: amor e morte.  Coimbra: Coimbra, 1978.



 






QUEIROZ, Maria José de. Como me contaram: fábulas historiais. Belo Horizonte: Imprensa, 1973.


QUEIROZ, Maria José de. Para que serve um arco-íris? Belo Horizonte: Imprensa, 1982.


 


QUEIROZ, Maria José de. Exercício de gravitação. Atlântida: Coimbra, 1972.

 


QUEIROZ, Maria José de. Exercício de levitação. Coimbra: Coimbra, 1971.

 



QUEIROZ, Maria José de. Exercício de fiandeira. Coimbra: Coimbra, 1974.
 


QUEIROZ, Maria José de. Além da porta e do trinco. In: ______. Exercício de fiandeira. Coimbra: Coimbra, 1974. p. 87.

 

 



    QUEIROZ, Maria José de. Desde longe. Belo Horizonte: Caravana Grupo Editorial, 2020.


QUEIROZ, Maria José de. Três à mesa. In: ______. Desde longe. Belo Horizonte: Caravana Grupo Editorial, 2020. p. 18-19.

terça-feira, 20 de outubro de 2020

As coisas têm alma




 

QUEIROZ, Maria José de. As coisas têm alma. In: ______. Para que serve um arco-íris? Belo Horizonte: Imprensa da UFMG, 1982. p. 17-18.