segunda-feira, 12 de março de 2012

A serviço do verbo















Estranha fascinação, a da palavra!
Milagre cotidiano ao qual rendo,
extasiada,
devoto preito
de vestal.
Admiro-lhe forma,
cor e sonoridade.
Ao seu prestígio atenta,
esqueço vida, amor, mundo.
Para servi-la, humilde e cauta,
desperto, todas as manhãs,
inquietudes indormidas,
penteio cérebro e ideias
à procura do verbo
que me certifica
da humana existência,
de paisagens improváveis,
e coisas presumíveis.
Atrás do conceito cabal,
fugidio e esquivo,
apalpo a prova exata,
definitiva,
razão de todo empenho
em que me perco, alienada.
Dias, anos, sangue e espírito,
tudo dissipo
em contastante fuga,
distraída.

Transfiro à frase escrita
emoção e sentido:
outros os emprestam
aos guisos de tenra idade,
aos risos da adolescência,
aos anseios amorosos
de três e mais estações.

Minha herança, por páginas semeada,
floresce enquanto padeço
pena e angústias de criação.
Depois, feito o silêncio,
em doido transe me interrogo:
que restará da página plena
e do viver inconcluso.
Mas ante o vazio do branco puro
ao sonho volto,
fugo em quimeras,
alheia ao mundo,
imatura.

Essa, a vida que me dei - reflexo e imagem.
Perdi-me em signos, inventei-me.
Agora me reencontro:
no espelho, e no fim deste verso, maduro.

Paris, primavera de 1970.

QUEIROZ, Maria José de. Exercício de gravitação.Coimbra: Atlântida, 1972. p. 70-72.

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