Qual a trajetória histórica da arte culinária no mundo ocidental? Em que sentidos básicos têm
evoluído as relações do homem com a comida e o papel social da cozinha – da
origem das receitas ao aparecimento do restaurante, e deste último ao self-service? Como se enraízam
historicamente os rituais gastronômico alimentares e a valorização da mesa
como objeto da burguesia?
Essas e outras questões constituem o centro de interesse deste
livro de Maria José de Queiroz. Dos requintes da cozinha do século XVIII à banalização
dos hábitos alimentares nestes tempos atuais em que a experiência e a qualidade de vida se esvaem de maneira alucinante,
da Teogonia de Hesíodo a O linguado de Günther Grass (senão a La grande bouffe de Marco Ferreri),
temos um rico itinerário que a Autora desdobra para nós, de modo a visualizar
a evolução da própria sensibilidade gastronômica.
O leitor poderá então lançar a pergunta: seria esta uma obra
de erudição, no rastro de um Jean-François Revel? Ou ainda: corresponderia ela
a um tratado de história da nutrição ou de fisiologia do paladar, associada à
gastrolatria identificável em tantos manuais de cozinha? Indagações desse tipo
não têm o menor cabimento se atentarmos para o texto de A comida e a cozinha. Texto que extrapola as classificações
redutoras e acolhe sabiamente, no trato daquelas questões, o ponto de vista multidisciplinar.
A despeito da singeleza (diríamos, da singeleza sensualista)
dos temas principais em exame, Maria José de Queiroz, conjugando o senso de
pesquisa histórica (tão evidente em A
literatura encarcerada) e o dom de desatar recordações – lembranças de
cheiros, cores e gostos (tão vivas em seu romance Joaquina, filha do Tiradentes) –, soube produzir uma verdadeira
reforma de compreensão dos prazeres da mesa enquanto objeto de investigação.
Conforme ela própria enfatiza, somente livres do preconceito que atribui à
ordem do gosto e do olfato condição inferior à das ordens da visão e da audição
é que estaremos aptos a participar do banquete da civilização. "Do mito
prometeico à simbologia do cru e do cozido até as artes da mesa, a natureza e a
cultura marcam encontro diante da comida, sob a tutela dos cinco
sentidos." A propósito, é possível concluir que a Autora não cede a um tema da moda (cada vez mais contemplado
pelas seções especiais da imprensa e pelas incríveis tiragens dos manuais de
cozinha); ela procede sim a uma
reavaliação positiva das percepções gustativa e olfativa, e de sua importância
no devir das sociedades ocidentais. Sem dúvida, tarefa admirável que deverá,
por si mesma, assegurar a este trabalho publicado pela Ed.
Forense-Universitária senão o agrado de um vasto público, pelo menos um lugar
de honra no festim do espírito.
Luiz Otávio Barreto Leite
QUEIROZ, Maria José de. A comida e a cozinha, ou Iniciação à arte de comer. Rio de Janeiro: Forense-Universitária, 1988.
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